DEPOIS DO APOCALIPSE - PRIMEIRO CAPÍTULO

Quando ele dormiu acordou mais uma vez na mesma floresta cinzenta e no frio da noite. Sua boca estava seca e o estômago roncava. Estendeu o braço para tocar a esposa que dormia ao seu lado, mas só via o cinza. Como um daltonismo insistente e indiferente que apagava progressivamente o mundo. Tocou o chão, se apoiou e se levantou cambaleante. Olhou para o leste, depois para o norte, sul e acima, em busca de alguma fonte de luz. Em vão. Então passou a andar a esmo, até chegar a um monte. Lá chegando olhou abaixo. Pessoas, rostos apagados como sombras, o chamavam acenando com as duas mãos, lembrando a morte ou quem sabe assassinos mascarados e possuídos.

Ao apertar os olhos percebeu que eles tinham buracos profundos na face em vez dos olhos, dos quais um líquido escuro jorrava e pingava sem cessar. Era nessa hora que uma luz se acendia. Como no momento em que o personagem principal de um filme de horror percorre um corredor e as luzes do teto se apagam. Porém ali se acendiam. E agora os vislumbrava parados, vestidos com capas escuras. Ao lado deles, se revelaram amontoados de concreto e ossos.

Mais uma luz se acendeu e, adiante, um lago negro e antigo lançava suas águas em direção a uma enorme cratera que espalhava no céu uma densa fumaça avermelhada. E na margem oposta uma criatura colossal, corpo escamoso e retorcido escancarava sua boca esticando a língua e fitando a luz com olhos brancos e mortos, cegos como os da cobra. Ela esticava a cabeça para a luz e mantinha-se ereta como se tentando desafiá-la. Depois o monstro balançou a cabeça e a cauda, para um lado e para o outro, soltou um bramido furioso, saltando e se afastando com uma guinada para dentro da escuridão melancólica.

Com o primeiro toque do despertador Jonas abriu os olhos e deu um pulo da cama. Apertou os olhos e esfregou o suor que escorria por sua testa. Ajeitou os ombros enquanto controlava a dor em seu peito e o coração descompassado.

Levou as mãos à cabeça e esfregou as têmporas para se situar.

Embora só se recordasse desse pesadelo da infância, a sensação de angústia era a mesma e precisava tomar um gole da bebida para resolver o problema.

Então se levantou, tomando o cuidado para não fazer nenhum ruído que acordasse Ingrid. A única luz era o fosco clarão avermelhado do alvorecer que cruzava a cortina de seda, balançando com o vento na janela aberta. Para uma manhã de maio, forte mais do que exaustivamente quente.

Jonas correu até a janela.

O céu tinha o tom de sangue e as nuvens passavam por ele numa rapidez descomunal, como se sopradas por um furacão ou, de repente, o céu vermelho era uma tela gigantesca exibindo um filme em altíssima rotação.

Fechou a janela com força e desânimo. Ele arfava, vestindo a camiseta pólo que o esperava no cabide pendurado na porta do guarda roupas. Ele queria se mudar, mas o dinheiro não dava. O salário de chefia que recebera nos últimos três meses, após ter assumido o cargo com a morte do ex-chefe, era alto, porém, pelos cálculos, Jonas demoraria cerca de 60 anos para conseguir o necessário para se mudar para o trópico, no Pólo Norte, o único lugar agradável no planeta, porém, pelo que via, somente para ricaços e gente de poder. Desde 2018 a humanidade amargou aumentos de temperaturas bianuais na média de 0,5 graus Celsius, até o ano de 2100. A temperatura se estabilizara em arfantes 60 graus Celsius, nos verões e 45 no decorrer das outras estações. Mesmo nos invernos mais rigorosos, o termômetro registrava na Rússia, a mínima de 25 graus e, no Rio de Janeiro, os estafantes 40 graus. Pelo que soubera, através de informações secretas, porque não era divulgado pela mídia manipuladora, no Pólo Norte, a máxima beirava aos 30 graus e mínima de 10 graus positivos na maior parte do ano, o que, mesmo sem precisão, era, ao mesmo tempo, animador e desanimador.

Ele balançou a cabeça, abrindo os olhos para encarar mais um dia de trabalho para, quem sabe, deixar o sonho do novo lar como uma herança para seu filho. Na verdade ele nem mesmo sabia se o filho realmente o amava, se sua família o amava, mas ele sim estava fazendo sua parte. Amar era atitudes de bem. Sua esposa vivia o acusando, dizendo que ele tinha mania de perseguição, porém não podia se enxergar dessa maneira. Ele apenas via o que era real. Nos últimos três meses ela não dissera que o amava, coisa que fazia todas as manhãs, desde que se casaram há dois anos. Ela nem sequer fazia mais massagens nele, carinhos em suas têmporas. Ele apertou os lábios e respirou fundo, engolindo o gosto amargo em seus lábios.

Deitada, Ingrid roncava feito uma criança. Até parecia rodeada por anjos. Mas ela não o enganava: se o pegasse bebendo mais uma vez na semana o despedaçaria. Ele já estava cansado de tanta reclamação quanto ao seu gosto pela bebida. Ela não entenderia nunca que ele conseguia se controlar, droga. Ela nunca entendia nada mesmo. Afinal de contas as mulheres são assim, sempre complicaram as coisas para ele. E apesar de considerá-la uma grande dona de casa e uma esposa dedicada e zelosa tinha esse defeito de ser controladora ao extremo. E de, é claro, não lhe fazer mais afagos.

Jonas se abaixou e, esticando o braço, tateou em busca da garrafinha de wiskye em baixo da cama, enquanto sua mente soltava flashs de momentos em que tomavam café da manhã juntos. Que ela acordava com ele para isso. De repente, num piscar de olhos, tudo se apagou e ele se via num mundo seco, como sua boca, precisando de algo para resolver logo esse problema.

Então não teve dúvida e segundos depois, sentia o prazer da bebida queimando-lhe a garganta.

Caramba, já? –pensou, enquanto observava a garrafa vazia, o álcool tomando seu cérebro, amaciando-o.

Mesmo assim, uma tristeza o aplacou. Precisaria comprar mais dessas, nem havia chegado o fim do mês e já havia bebido tudo. Mas tudo bem, o dinheiro não estava tão curto assim. Ainda mais agora que ganhara o tão sonhado cargo de chefia. Sentia-se preparado para enfrentar mais um dia de estresse e, no final da tarde, compraria mais duas garrafas que daria até a segunda feira.

Puxou a mala de baixo da cama e colocou a garrafa vazia dentro. Ali abaixado, ficou olhando para a maleta. Jonas realmente não entendia por que tinha se agarrado aquilo - ou por que aquilo tinha se agarrado a ele. Achou que não deveria ter tomado tudo assim, de uma só vez. Na verdade, o certo era nunca ter enfiado na boca qualquer tipo de bebida. Não se lembrava quando esse vício tinha começado. Provavelmente nos jogos de despretensiosas trancas, nas mesas em que se sentava para acompanhar o avô e o pai se divertirem, enquanto tomavam uma e outra cervejinha. Algumas vezes sobrava uma molhadinha de dedo no copo deles. Talvez fosse a origem daquela maldita dependência.

Um profundo e arrepiante suspiro o tirou de seu estupor. Quando se virou Ingrid estava de braços e pernas cruzadas sobre a cama.

-Bom dia, amorzão! Olha, vejo que tomou seu café! –Disse em um tom cortante, desafiador. Jonas sabia a qual “café” ela se referia. Não conseguiu responder enquanto ela balançava a cabeça.

Jonas sentiu-se corar. Tentou fingir que não era com ele e dar-lhe um sorriso. Mas sabia que, ma maioria das vezes em que a esposa o pegava bebendo, o sorriso dele servia apenas como um mecanismo de defesa para um Jonas nervoso e envergonhado.

-Estou atrasado. Depois conversamos! –Já sabia o rumo que a conversa tomaria.

-Tão bêbado. Não percebe mais nada! –Em um rompante, Ingrid pulou da cama e abriu a janela.

-Ei! Fecha!

-Um minuto! Tem...uma...névoa...

Jonas se aproximou da janela, apertou os olhos. As ruas estavam agora tomadas por uma densa neblina cinzenta.

Quando Ingrid se virou, sobrancelhas franzidas, Jonas esperava o pior.

-Então...-Disse ela, cantarolando.

Ele praguejou.

Ela o observou por alguns segundos, a expressão dura.

-Bem…sabe...

Ela o mediu no fundo dos olhos e suspirou.

-Já disse pra você...acha que ele não sabe, não é?

Por alguns segundos Jonas mal conseguiu respirar. Seu filho estaria sabendo? Mas Jonas não tinha tempo para conversas longas naquele momento. Precisava trabalhar e como já havia tomado um bom gole de bebida sabia que não conseguiria raciocinar muito bem para resolver questões complexas como aquela.

Então, disse que continuaria a conversa mais tarde e que aquele não era um assunto para se resolver de manhã cedo. Jonas disse à Ingrid que nem mesmo havia tomado o café da manhã. Em seguida, caminhou para a porta do quarto.

Ingrid o seguiu, dizia que Guilherme tinha apenas doze anos, que não podia dar mau exemplo e outras coisas que Jonas sabia muito bem que não destruiriam o principal: ele amava a família que tinha construído. Fazia tudo por ela. Trabalhava, como um louco, doze horas por dia, e não podia chegar atrasado no emprego que garantia as necessidades principais da família.

Jonas repetiu.

-Tenho de ir -finalizou sem olhar para trás -Tenho que ir...o ônibus tá passando. E além disso...

Enquanto descia as escadas ouvia o arfar da esposa logo atrás dele.

-Jonas...

-Ele não me vê bebendo.

-Jonas!

Aquela voz começava a irritar Jonas.

-Nem precisa dizer que é assim que resolve os problemas, não é?

Jonas se virou e a encarou friamente...ou tentou fazê-lo. A raiva já estava se dissipando. Era simplesmente impossível ficar furioso com Ingrid, esse era o problema. Que ela fosse controladora ou não, ele a amava. E de pessoas que se amam é impossível guardar algum ressentimento. Duvidava que alguém, algum dia, tivesse conseguido guardar rancor de Ingrid. Um pensamento tão absurdo que ele não pode deixar de sorrir.

-O que está insinuando? –disse em tom mais despojado.

-Ele viu, Jonas –disse ela -Ele sabe que você guarda a garrafa dentro da mochila do trabalho.

Ele parou, por uns segundos, olhando para o chão. Por alguns momentos, não conseguia se mover e nem dizer nada. Mordeu os lábios, preocupado com tudo ao mesmo tempo. Mas não tinha como pensar naquele momento.

-Jonas –Ingrid chamou – você se lembra da conversa eu tivemos sobre influências não é?

O mundo caiu sobre a cabeça de Jonas. Seu filho...ele realmente via o que ele fazia e a voz de Ingrid o ameaçando fez retornar em sua mente o dia em que elas foram ditas. Você pensa que pode beber sem que as pessoas percebam. O dia em que qualquer pessoa influenciar meu filho negativamente, de duas uma: ou nunca mais falarei com essa pessoa ou sumo! Aquelas palavras ecoaram fazendo doer sua consciência.

-Mas como....eu nunca fiz na frente dele...eu....eu....tomo cuidado! –Ouviu sua voz enfraquecendo a cada palavra.

-Hã-hã –ela sorriu brevemente.

Jonas foi até a janela da sala e deu uma olhada na praia de Copacabana. Um surfista corria com um Long Board. Queria estar no lugar dele. Jonas se tornou padrasto de Guilherme há dois anos. Agora, com apenas trinta anos, se dava conta do que perdia por conta das responsabilidades de se ter uma família, de trabalhar até tarde. Corria para o emprego e ainda tinha que se justificar para a mulher, que cada vez pegava mais no seu pé.

O fato mais engraçado ou irônico era que o lugar em que os dois se conheceram fora justamente no bar da faculdade, bebendo que nem alcoólatras. Em casa, Ingrid queria dar uma de santinha, mas Jonas sabia muito bem que ela também adorava uma cachaça. Ingrid sempre fora espirituosa e nunca o deixara sem graça como estava fazendo agora.

Um som de panelas batendo tirou Jonas de seus pensamentos fazendo se virar para o corredor.

Sua mão se fechou com força. Seu filho deveria estar acordando mais cedo. Jonas se lembrou da época da adolescência em que adorava pegar o pai bebendo escondido no quarto. Ficava lá, espiando pelo buraquinho da fechadura. Agora era ele. Só havia um detalhe terrível que talvez estivesse deixando Ingrid daquela maneira. Jonas não era pai de Guilherme.

A expressão de Ingrid, lábios e olhos apertados, expressavam tristeza, um estilete no coração de Jonas.

-Eu não poderia imaginar, desculpe. –sussurrou Jonas.

-Era isso que eu estava querendo dizer a você há alguns dias...-Ingrid sussurrava -Ele vem acordando, há um tempo, mais cedo, para saber o quanto você anda bebendo.

Jonas realmente queria parar e abraçar a esposa, mas o que fez foi apenas colocar a mão no ombro dela e lhe dizer que precisava ir embora. Antes de abrir a porta de saída, um arrependimento o atingiu e ele se virou.

-Eu...eu...sei que devo parar de beber, mas não consigo.

Ingrid se aproximou. Por um momento, seu olhar parecia a paz de uma maré vazia, mas, de repente, se agarrou ao braço de Jonas, como uma tigreza.

-Precisa querer parar! –disse incisiva

Jonas olhou para o relógio. Era nove e quarenta e oito. Tinha doze minutos para chegar ao trabalho. Era sexta-feira, teriam todo o fim de semana para acertarem aquela situação constrangedora. Jonas queria dizer isso para a mulher, mas não tinha tempo.

-Preciso ir, amor. Lamento! –disse Jonas, a cabeça testava pesada novamente. -Mais tarde a gente conversa...

Jonas iria se virar para sair, mas, Ingrid apertava seu braço quase a ponto de machucá-lo. Ela o encarou, olhos azuis, profundos, arregalados como se fossem destruir os de Jonas.

-Vai esperando, senhor Jonas! – a voz de Ingrid era cadenciada, formal. -Vai esperando...

-Ah, meu Deus! –disse Jonas

Seus pensamentos giravam. A esposa nunca tinha o olhado daquela maneira. Jonas se sentia mal, muito mal mesmo. Um vazio no peito. Um gelo repentino na garganta. Uma dificuldade de engolir. O olhar cabisbaixo, difícil de erguer diante do pescoço, de súbito, endurecido.

Viu-se perdido, mas pediu licença para Ingrid e apertou o passo em direção ao ônibus antes que se atrasasse mais um dia. E hoje precisaria entregar os relatórios de estatísticas para a imprensa.

Virou a cabeça para sua esposa que batia com os nós do dedo na mureta de sua casa, muito brava e não foi capaz de encarar Ingrid pela última vez antes de subir no coletivo.

Alexandre Scarpa
Enviado por Alexandre Scarpa em 22/09/2018
Código do texto: T6455870
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