Caminhos tortuosos - Capítulo III
As próximas horas se transformaram em dias; os dias, em semanas; as semanas, em meses; e os meses, em anos. Nem nenhuma notícia de Arnaldo. Zé Picão não chegou a falecer, pelo contrário, recuperou-se. A partir daí a vida de Elielza transformou-se em um verdadeiro inferno.
— Ainda me separo de você.
— Faça isso, que mato você, Aninha e depois me mato. E digo mais, se me denunciar, sairei da prisão e matarei as duas.
Os olhos estavam roxos. Ficaram assim depois de tomar Aninha dos braços do homem. A menina chorava no quarto. A essa altura, já com seis anos de idade.
— Mãeee!
— Que foi minha filha? Eu prometo que ele não te fará mais mal.
A menina não frequentava a escola. Ficava o dia inteiro em casa. Sofria abusos por parte do pai. Principalmente quando a mãe se ausentava por muito tempo.
Janina também teve uma linda menina, Marina. Tinha os olhos azuis, iguais os da mãe. Era esperta, gostava de ouvir as histórias que sua mãe contava. Estavam brincando no quintal, subiam e desciam de um pé de muruci:
— Mamãe?
— Diga meu amor...
— Eu te amo.
Disse isso e foi correndo se atirar nos braços da mãe. As duas rolavam pelo chão nas terras brancas do sítio dando altas gargalhadas.
Longe dali, na agitação da cidade e da vida, as pessoas andavam apressadas, sem tempo para olharem para os lados e perceberem o que se passa em sua volta. O dia estava nublado, havia dado uma leve chuva. Arnaldo, aparentava ser um homem maduro, embora só tivesse 22 anos, era sonhador, queria transformar o mundo com o conhecimento. Não gostava de usar coisas caras, achava superficial se preocupar tanto com coisas materiais, mas também não tinha muitos recursos financeiros. Usou o dinheiro que sua mãe lhe deu para conseguir se matricular na faculdade. Morou por muito tempo nas ruas de Brasília. Começou a vender balas nos ônibus, metrô, nas ruas. Tomava banho na faculdade. Usava todas as suas economias para aquisição do material do curso. Era um aluno aplicado. Conseguiu um auxílio-moradia do governo e começou a pagar uma kitinete.
Estava no último ano do curso de filosofia, com muitas dúvidas na cabeça (coisas da maioria dos estudantes de filosofia). Tinha dúvidas sobre quase tudo, nem mesmo sabia como explicar sua própria existência. Uma de suas dúvidas era: a vida tem sentido?
Todos os dias pegava o ônibus na mesma parada e quase sempre estava imerso em seus pensamentos, com os olhos fixos em seus livros. Porém, numa certa manhã, resolveu não ir lendo para a faculdade, resolveu ler outro livro, os rostos das pessoas. “Há tantos rostos, cada um deve ter uma história interessante” — pensava consigo. Ao chegar na parada viu um senhor do outro lado da rua, parecia que era um mendigo. “Qual será a história dele? Terá família, mas por que se encontra nessa situação deplorável?”. Indagava-se em solilóquio. Sempre que via alguém mendigando pensava em sua trajetória e na vida de sua mãe e de sua irmã. Pensava como elas estariam. Se já poderia voltar, mas tinha receio de Zé Picão estar vivo, ao mesmo tempo tinha vontade de ir lá sem ninguém saber, e dar cabo, se tivesse vivo, da vida dele.
Na faculdade a aula era sobre epistemologia (na filosofia a epistemologia estuda o problema do conhecimento), começou a aula e o professor discursou empolgado para seus alunos. Arnaldo era do tipo de aluno que não se envolvia muito nas discussões, era mais ouvinte.
— O que é o conhecer? — Indagava o professor com o olhar sobre a classe silenciosa. — Será que é preciso passar por algo (experiência) para saber que conheço aquilo ou isso? O nosso conhecer estar baseado em nossas experiências, pensamentos, sentimentos e pelos nossos sentidos. Mas o que é a experiência? Podemos dizer que a experiência é um conhecimento que se tem a partir da prática. Porém o conhecimento vai além, pois você não precisa se jogar do décimo andar de um prédio para saber que irá se esborrachar no chão, ou melhor, nós também aprendemos com a experiência dos outros.
Uma ou outra vez se ouvia um suspiro profundo de um dos alunos. Arnaldo pensava durante a aula: “o que esses ensinamentos dizem para a minha vida?” E o professor, sem ser interrompido por ninguém com alguma pergunta ou comentário, continuava discursando empolgado: — quando uma pessoa quer lembrar alguma coisa geralmente diz: puxa eu tinha isso em mente; e dificilmente: puxa eu tinha isso no cérebro; os médicos analisam o cérebro das pessoas, e se tiver algo errado com os neurônios, logo percebem. Podemos ver o cérebro de uma pessoa, mas não podemos ver a sua “mente”.
A essa hora já nem prestava mais atenção na aula, estava com um olhar distante, sem direção. Empolgado, o professor continuava seu discurso para uma plateia que já não demonstrava tanto interesse:
— Será que podemos saber o que se passa na mente de outra pessoa? Sim, através de seus atos, pensamentos expressos por palavras, isto é, caso a pessoa esteja falando a verdade. Um exemplo, alguém pensa alguma coisa, para saber o que está pensando esta pessoa irá falar o que pensou, e a ouvinte tentará retransmitir aquilo que entendeu, e a que pensou irá julgar se o que ouviu é realmente aquilo que pensou antes. Será que o nosso conhecer depende só da nossa mente ou só do corpo (físico) ou de ambos? Eu fico com a última o nosso conhecimento depende da mente e do corpo. Um exemplo, quando nos deparamos com uma comida pela primeira vez, nós não iremos saber o seu sabor só a olhando e sim provando — o toque físico com língua — saberemos o seu sabor (e aqui entra os sentidos: a visão, o tato e o paladar), então ao provar a comida as impressões vão para o cérebro e daí para a mente que por sua vez irá detectar se é uma coisa nova ou se já tem coisa semelhante.
Arnaldo procurava em vão ouvir atento a aula sobre conhecimento, porém pensava naquele senhor que vira na parada de ônibus. Refletia sobre a imagem que teve dele e se deu conta que poderia estar errado.
— A única maneira para conhecê-lo é conversando com ele e esperar que seja sincero e veraz nas suas palavras. Será que a vida tem sentido? Mora na rua, não tem família, nem amigos, não tem lugar (casa). Por que não conseguiu vencer na vida? Mas será que vencer na vida é ter tudo isso: casa, dinheiro, família e amigos? — Indagava-se em soliloquio, depois deu um suspiro profundo — Só tem uma maneira de conhecê-lo, amanhã falarei com ele, quem sabe não posso ajudá-lo.
A aula terminou e os alunos saíram apressados. Arnaldo concluiu sua fala sobre os olhares surpresos de suas colegas.
— Está decido, então amanhã...amanhã! — Depois da gafe saiu envergonhado da sala.
Arnaldo morava sozinho, tinha poucos amigos, não usava telefone celular, usava roupas simples, a maioria de doações. Era um jovem não se importava com muito luxo, se preocupava mais em comprar livros do que com qualquer outra coisa. Estava atrás de um trabalho para poder juntar dinheiro e buscar sua mãe e sua irmã. A situação financeira do país não era a das melhores, só se falava em crise, gente perdendo emprego, empresas fechando, uma situação difícil. Porém, uma luz no fim do túnel, foi chamado para uma entrevista de emprego no dia seguinte.
Acordou nervoso e ansioso no dia da entrevista, afinal poderia melhorar sua condição financeira com o emprego. Saiu de casa para a parada de ônibus, observou e percebeu que o senhor não estava ali, do outro lado da rua. Não deu muita bola para isso, estava mesmo era pensando na entrevista. Embarcou no ônibus e se dirigiu para a estação 114 do metrô. Ao passar na estação na parte subterrânea deparou-se com uma figura que não lhe era estranha. Sim era ele, o senhor da parada de ônibus. A entrevista estava quase na hora, não pôde parar para conversar. Achou melhor falar na volta.
O emprego em vista era em um colégio para trabalhar com estagiário, o salário não era alto, mas ao menos melhoria um pouco mais. O entrevistador gostou da postura de Arnaldo. Pediu para que esperasse em uma sala por uns minutos. Arnaldo saiu e ficou ansioso, estava na expectativa de ser contratado. O entrevistador saiu e o chamou novamente à sala:
— Senhor Arnaldo, gostamos muito do seu currículo e da sua postura. Porém para assumir o cargo o senhor precisa melhorar na vestimenta. O cargo como já foi dito é de estagiário, estávamos esperando contratar uma mulher, mas depois da entrevista com o Senhor, chegamos à conclusão que esse cargo deve ser seu. O Senhor se importa de começar na segunda-feira?
Abrindo um sorriso, ratifica:
— Com certeza. Na segunda-feira estarei aqui para começar a trabalhar.
— Bem-vindo à nossa escola, só peço que passe agora mesmo na RH e leve seus documentos.
Arnaldo saiu da escola esperançoso de que agora sim as coisas iriam melhorar, embora o salário não fosse muito alto, ao menos daria para comprar algumas coisas que ele, às vezes, tinha vontade, mas não conseguia, devido o dinheiro ser pouco. Por exemplo: uma cerveja uma vez ou outra, uma saída com alguns dos seus colegas da faculdade, uma vez que várias vezes teve que recusar convites por falta de dinheiro, tinha vergonha de na hora de rachar a conta não ter dinheiro ou se tivesse, iria faltar para outras coisas.  
 Assis Silva
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