Caminhos tortuosos - Capítulo I

Passos apressados e pequenos são observados por alguns moradores curiosos que botavam a cabeça para fora das casas para verem. A cena se dá em uma rua sem muitos movimentos, tanto de carros quanto de pessoas. Esses passos eram de um menino que tinha por volta dos seus 10 anos de idade, pele queimada pela exposição constante ao sol, os olhos assustados, trajava um uniforme escolar, provavelmente estaria vindo de algum colégio.

De repente, uma mão grande e grossa lhe pega pelos braços e puxa com força, coloca-o na garupa de uma bicicleta e desaparece na pequena cidade de Ourém; cortando ruas, desviando dos buracos que vez ou outra apareciam na avenida Padre Ângelo Morretti, atravessaram a ponte de madeira de cortava o rio Guamá, saíram da cidade em sentido a Capitão Poço. Entraram em um ramal. Depois de cerca de três quilômetros entraram em uma casa. A casa era simples, feita de barro, coberta com cavaco, não se via televisão, geladeira ou sofá. Já dentro da casa, o homem olhando bravamente para o menino, que procurava desviar o olhar, disse:

— Por que você não voltou para casa assim que terminou a aula?

O menino nada respondeu. Demonstrava medo, uma lágrima rolou na sua face. Uma mulher adentrou a casa com um balde de água na cabeça, ao ver o menino disse:

— Resolveu voltar para casa, foi?

O menino continuava calado. O homem aparentava ter trinta anos, barba crescida, pele morena; tomou uma cinta, dobrou-a ao meio, puxou o menino com violência e deu-lhe uma surra. De longe se ouvia o choro do menino. A mulher apenas assistia a cena, e quando o homem terminou, simplesmente disse:

— Isso é para você aprender a respeitar seu tio. — O menino foi para o quintal. Subiu em uma mangueira e lá ficou por um tempo. Horas depois a mulher o chamou:

— Arnaldo, Arnaldo.

— Senhora!

— Seu tio está lhe chamando lá na roça, vai lá ajudar ele, seu preguiçoso.

Arnaldo, era o nome do tal menino, desceu da mangueira, tomou uma enxada e foi para a roça. A roça ficava próximo a casa. Na verdade, o homem no qual a mulher dizia ser seu tio, era o padrasto. Tratava-se de Zé Picão, era assim conhecido. Trabalharam a tarde inteira sem trocar uma palavra.

Zé Picão não tinha terminado a quarta série do ensino fundamental, era um homem trabalhador, sério, não gostava desse negócio de estudar, pois acreditava ser perda de tempo: “no meu tempo...” dizia sempre, “agente começava era cedo a ajudar o pai na roça, não tinha esse negócio de perder tempo de ir para a escola”. Além do mais, não gostava de ser contrariado, ainda mais dentro de casa. Sua esposa tinha que ser submissa em tudo. Aprendera a resolver as coisas e obter respeito por meio de métodos violentos.

A casa em que morava a pequena família ficava afastado de tudo. As terras em que moravam pertencia a família de Zé Picão, a mesma tinha sido herança de seu pai, que falecera quando ainda era jovem. Não se via vizinhos em volta, o mais próximo ficava a 500 metros. E lá Arnaldo gostava de ir sempre, pois tinha luz elétrica e televisão.

A mulher se chamava Elielza, aparentava ser uma pessoa sofrida, tinha os olhos fundos de tanto chorar, as pernas finas de tanto carregar água na cacimba que ficava uns cinquenta metros de casa, onde todos os dias tinha que ir lá pegar água.

Embora gostasse dos livros, Arnaldo, lia pouco devido a sua rotina corrida. Quando saia da aula sempre passava na biblioteca da cidade e pedia para alguém, que lá estivesse, livros para ler. Gostava de contos, piadas, romances. Aos sábados à tarde e aos domingos ia para o sítio de seu vizinho mais próximo, pois lá tinha Janinha e o Loro, seus únicos amigos. Passavam a tarde toda brincando. Quando não, ambos os meninos, gostavam de se embrenharem na floresta caçando de baladeira. Outras vezes iam pescar no poção, assim chamavam um lugar bastante fundo que tinha no igarapé que passava nas terras de ambas as famílias.

Embora essas atividades que gostava, tinha apreço por histórias, de ficar lendo e tinha uma razão maior por isso, seu avô materno estava acamado e ele não tinha nenhum outro meio de ter contato com coisas diferentes a não ser as histórias que Arnaldo lhe contava. A sessão de história começava sempre após a janta. Todos os dias era uma história nova, muitas delas inventadas pelo menino. Já o avô, retribuía o carinho do neto e ficava lhe contando as suas aventuras de quando era moço, anedotas, piadas.

O menino queria estudar e sair daquela vida miserável, dizia sempre para si mesmo que uma hora ainda teria coragem de retribuir todo o sofrimento que seu padrasto causava a sua mãe. Mas também sabia que apesar de toda a situação, se não fosse ele, estariam bem piores. Afinal, era ele quem trazia comida para dentro de casa.

— Sabe, Arnaldo — disse seu avô em certa conversa — hoje contarei sua história.

— Minha história? — Surpreendeu-se o menino.

— Sim, quer saber?

— E qual é minha história?

— Seu padrasto, às vezes, te chama de filho de boto...

— Verdade, mas o que significa?

— Ele quer dizer que você é um menino sem pai.

— Hum!

— Segundo a lenda que contam o boto cor-de-rosa sai das águas do rio, vai às festas e conquista as moças, leva-as para o fundo do rio, engravida-as e depois some. Aí ficam os meninos e meninas órfãos sem os pais.

— Eu sou filho de peixe?

— Claro que não! Sua mãe não gosta de falar sobre seu pai. Mas ele foi um homem de verdade. Pegue aquela caixa ali, por favor! Diga-me, o que tem aí dentro.?

— Tem uma fotografia de um homem.

— Este é seu pai.

— Meu pai!

— Sim; e parece com você, não acha?

— Égua, parece um pouco.

— Ele mora em Brasília; e....

A partir daí, Arnaldo ficou com vontade mais do que nunca de encontrar o pai. A rotina da família era a mesma de sempre: pela manhã o padrasto ia para a roça, a mãe cuidava dos afazeres domésticos, o menino ia para a escola e a tarde ajudava o padrasto na lavoura, e o seu avô que não saia de casa, era do quarto para a cozinha e depois o mesmo processo.

Certa manhã, Arnaldo fez sua rotina de sempre. Acordou bem cedo, por volta das 5:30 da madrugada, deu comida para as galinhas, tomou café que sua mãe lhe tinha preparado no dia anterior e foi para escola caminhando os três quilômetros.

A aula era sobre Geografia e o tema era sobre árvore genealógica. Após a aula os coleguinhas ficaram perguntando uns aos outros os nomes de seus pais e avós e contando sua descendência até três gerações, já Arnaldo só tinha como referência sua mãe e seu avô. Tinha seu padrasto, mas inúmeras vezes ele fazia questão de lembra-lo que não era seu pai. Que fora abandonado pelo mesmo.

— Diga, Arnaldo, você sabe dizer quem são seus avós paternos e maternos? — perguntou um de seus coleguinhas.

O menino deixou uma lágrima cair, virou e saiu de mansinho. Desde pequeno ouvira de seu padrasto que era filho do boto. Depois da conversa que teve com seu avô, entendia o que isso queria dizer, embora insistisse, a mãe dificilmente falava sobre seu pai. Dirigiu-se para a biblioteca, passou horas olhando para as prateleiras cheias de livros. Quando se deu conta já passava do meio dia. Saiu correndo do estabelecimento, certamente iria levar mais uma surra de seu padrasto, por não chegar na hora de ir para a roça.

Chegou em casa cansado pois viera correndo. A mãe apenas o olhou de canto de olho. O padrasto que nesse momento acabara de almoçar, também o olhou com cara de reprovação, indagou-lhe:

— Onde você estava até essa hora?

— Esta...— Começou a chorar.

— Fala seu filho de uma égua.

O menino abaixou a cabeça chorando.

— Olha aqui — continuou, bravo, Zé Picão — Quando terminar a porcaria das suas aulas é para voltar para casa, seu preguiçoso.

A mãe assistia toda a cena calada. Muitas vezes Arnaldo sentia ódio dela por não fazer nada. Depois de almoçar, tomou sua enxada e foi ajudar o padrasto na roça. Começou a trabalhar capinando, depois de alguns minutos, distraído, arrancou um pé de melancia. O padrasto gritou tão alto que assustou o menino:

— Égua, que diacho é isso. Está com os olhos aonde?

— Desculpa, não vi.

Ao dizer estas palavras, foi arremessado ao chão com um tapa no pé do ouvido, caiu chorando em meios aos tocos. Umas semanas depois Zé Picão chegou bêbado em casa. Era Domingo, por volta das oito horas da noite, Arnaldo já tinha se recolhido para dormir. Ele saíra de manhã para vender a farinha que tinha feito durante a semana e comprar comida para os próximos dias. Chegou sem nada e muito bêbado.

Bateu a porta com violência, foi até o quarto, chamou a mulher:

— Elielza, cadê a minha janta? Mulher preguiçosa da porra.

Ela se levantou, foi até a cozinha e disse para o marido:

— Mas que comida, você saiu para comprar de manhã, e só voltou agora, eu é que te pergun...

A frase foi interrompida com um soco. Elielza caiu no chão com o nariz sangrando.

— Mulher do diacho, égua! Vá responder desse jeito para o seu pai.

Arnaldo escutava tudo de sua rede. Ouvia o choro da mãe, tremia de tanta raiva que sentia do padrasto, mas era pequeno demais, e caso se metesse poderia apanhar também. Na madrugada, acordou novamente com o choro e gemidos da mãe. Pelo que já entendia, sua mãe estava sendo forçada a fazer sexo.

Assis Silva

Todos os direitos reservados, no Brasil, por autor Assis Silva.

 

Assis Silva
Enviado por Assis Silva em 16/03/2018
Reeditado em 16/03/2018
Código do texto: T6281500
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2018. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.