AS TRÊS MARIAS - capítulo 04 - BERTA E SALUSTIANO

Alguns meses após a partida, através da troca de mensagens e telefonemas, foi ficando clara a impressão de que Ana reagia bem ao trauma, no novo ambiente em que vivia. Mesmo que ainda preferisse ficar calada, a maior parte do tempo, já começara a frequentar a escola de jornalismo, passear, fazer alguns amigos e escrever. Suas crônicas, contundentes e objetivas, passaram a ser publicadas por um periódico português de renome.

Como Berta não gostasse muito de escrever, Cíntia se encarregava da correspondência, enquanto a irmã anexava fotos e pequenos filmes caseiros, nos quais se fantasiava e buscava interpretar personagens cômicos, o que era próprio de seu feitio. Aliás, por aqueles dias estava já investindo muito em sua carreira teatral, preparando-se para viajar pelo país com uma troupe de artistas, apresentando-se em pequenos teatros e até praças públicas de cidades do interior.

Durante quase um ano a casa paterna se tornou local silencioso e meio sombrio, devido à ausência da artista e à permanência da mais velha das irmãs, tão metódica quanto reclusa. Chegou a receber a visita da mãe (Ana não veio) e, em outra ocasião foi visitá-las em Portugal, mas no resto do tempo estudava, procurava emprego (coisa difícil, depois de ter largado o que tinha, por causa do incidente) e se dedicava aos afazeres domésticos. Não tinha amigos, saía o mínimo possível, somente durante o dia e apenas para compromissos inadiáveis. Assim se manteve, até aquele domingo ensolarado, em que Berta apareceu, logo pela manhã, alegre, acompanhada de um rapaz alto, forte, sorridente e . . . negro.

- Oi irmãzinha! Voltei pra ficar e quero te apresentar o Salustiano, meu namorado.

Nunca antes houvera qualquer tipo de conversa sobre racismo na família, nem situação que pudesse sugerir alusão ao tema. Cíntia não se considerava racista, mas agora, diante de uma pessoa tão próxima, em sua casa, que parecia compartilhar da intimidade de sua irmã, não estava à vontade, não conseguia simpatizar com o rapaz, que a cumprimentava, efusivo, e tentava entabular um diálogo de aproximação. Berta não demorou a perceber o desconcerto da mana, e diante de sua hesitação, tomou a iniciativa de preparar um desjejum para os três. A outra empacou, com um olhar meio perdido, ouvindo a tagarelice do garoto, sem uma reação.

Salustiano, ou Sal, como preferia ser chamado, nem se deu conta da estranheza que a menina lhe endereçava, tal era seu jeito prazenteiro e descontraído. Por conta disso, sentou-se à mesa com as duas, falou muito, comeu, riu e logo se foi, prometendo voltar no dia seguinte. Mal ficaram sós, olhavam-se em silêncio, tentando imaginar como iniciar a conversa.

- Ele não percebeu seu espanto, Cíntia, mas eu sim. Não me passou pela cabeça que você pudesse ter essa reação, enquanto vinha pra cá. O que a incomoda? A cor dele?

- Para ser sincera, sim. Ele não é moreno ou mulato, mas bem negro.

- Então é uma questão de tonalidade? Se fosse mais claro, seria mais bem aceito?

- Não sei dizer. Sempre imaginei que você arranjasse namorados mais . . .

- Brancos? Loiros? Olhos azuis ou verdes? Assim estaria mais a seu gosto?

- Nunca pensei muito no assunto. Não sei o que se passa em meu íntimo, mas sei que estou muito incomodada. Você o conhece bem? Sabe de seus antecedentes?

- Perguntaria isso se ele fosse branco? Se fosse condizente com sua expectativa?

- Talvez não. O que posso dizer, Berta?

- Que vai tratá-lo bem, como meu namorado. Que ele vai ser bem vindo nesta casa.

- Tentarei ser educada, mas é o máximo que posso lhe prometer. Sinto muito.

Dizendo isso, retirou-se e trancou-se em seu quarto, chorando, desconsoladamente.

Berta ficou parada, taciturna, meditando sobre qual atitude tomar, até que resolveu sair e encontrar com seu amado. Foi até a casa de uma tia, do outro lado da cidade, e lá soube que ele estava em um asilo, não muito distante dali. Encontrou-o em uma sala, rodeado de idosos, para os quais lia um romance antigo, enquanto outros três rapazes cantarolavam algo. Todos o ouviam atentos, embevecidos, e nem se deram conta da presença da menina, a observá-los.

Por longo tempo ela ali ficou, calada, assistindo à terna cena, e ao fim da leitura, ele levantou os olhos e lhe sorriu aquele sorriso amplo e singelo, que a impressionava. Estranhou sua presença, mas a abraçou contente, ao mesmo tempo em que Berta, chorosa, contava-lhe a reação da irmã. Ele ficou sério por alguns segundos, riu em seguida e lhe disse:

- Ela não me repeliu. Apenas sente dificuldade em me aceitar. É bem mais do que podia esperar, princesa. Temos de fazê-la entender, aos poucos, que a amizade é daltônica.

nuno andrada
Enviado por nuno andrada em 16/06/2016
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