Fireflies in the Dark - parte 1 - broadway street
Pois é, eu tinha acabado de fazer minha terceira tatuagem. É um dragão meio cobra que começa no antebraço e vai até o bíceps. Acho que fica muito chique uma tatuagem na dobra do braço. E agora que fiz vejo que fica mesmo. Eu tenho uma tatuagem de um barco no meio do braço esquerdo. É pequenino e preto. Já tá meio desbotado, meio azul mas eu gosto muito dele. Fiz por causa de um ator, o John Schneider. O cara fazia o Bo Duke no seriado The Dukes of Hazzard e eu gosto disso pra caramba. The Dukes of Hazzard deve ser a única coisa que me faz dar uma risada gostosa nos últimos dez anos, mesmo sendo tudo repetido. Eu também tenho uma tatuagem no peito, do lado esquerdo, em cima do coração. É uma tatoo vermelha escrito Paty. Fiz por causa da minha garota. Não me arrependo.
Desde que eu parei de beber a vida ficou meio diferente, meio lenta. Eu vejo as porcarias das pessoas nas ruas e penso lixo. Não penso nada, sei lá. Não me interessa também. Aí eu sento aqui pra escrever essa merda. Mas eu não estou com muita vontade de escrever. Eu estou com vontade de contar sobre isso, mas não sou muito chegado nas letras. Foda-se. Eu não ligo a mínima. Ninguém vai ler essa porcaria mesmo. É claro que quando a gente diz isso espera que esteja errado e que um dia todo mundo leia e goste e fale bem da merda toda que a gente escreveu. E venham cumprimentar e dizer que estava legal. Apesar de eu não querer reconhecimento se algum dia chegar a fazer qualquer coisa decente. Não gosto de fama. Acho uma coisa terrível. Só atrapalha a vida, vira tudo um inferno. Odeio a fama assim como odeio os comunistas, os imbecis, os radicais e os escandalosos. Só aí eu já devo odiar pelo menos metade da humanidade. Acho que se tirarem os bichas, os imbecis e os safados do mundo não sobra ninguém. Ninguém mesmo, talvez um ou dois pingados por aí, mas aí eu gostaria de chegar neles e falar, cara, você viveu pra que? Sabe, não sou bicha nem imbecil, mas admiro todos eles. Gosto de ver esses tipos por aí. Eu sei que enquanto eles existirem a humanidade vai continuar evoluindo. Se pra trás ou pra frente não sei, mas vai evoluir de algum modo. O caos, é disso que a gente tá precisando mesmo... um pouco de caos... Coisa fina.
Aproveitei pra mascar um Copenhagen Southern Blend pra me sentir vivo. Ainda tava com aquele plástico que os tatuadores colocam no braço da gente quando acabam de fazer a tatoo quando saí do estúdio. Pra falar a verdade não sei por que essa frescura de chamar aquele antro de estúdio. Tudo quanto é biboca de tatuador fede pra caralho. Parece uns chiqueiros os lugares. Se não fedem sangue fedem a pinga. Mas eu não bebo mais, já passei essa fase loca. Pra falar a verdade tive de parar por motivos de força maior. Talvez mais pra frente eu conte se me der vontade ou se eu não esquecer, senão fica pra outra.
Arranquei o maldito plástico, não gosto de ficar andando por ai com esse negocio. Infeccionei as outras duas tatoos porque não fuder essa também? No fim sara tudo mesmo. Quando a gente é jovem o corpo se recupera bem pra caramba. Quando eu for mais velho eu penso no que vier. Vai saber se eu vou chegar a porra da velhice.
Saí na Yamhill Street e comecei a andar, exibindo pra mim mesmo a minha nova tatuagem, coisa de besta. Como eu amo essa rua. Só tem imbecil. Mas é um lugar bonito sem duvida. Essas construções enormes e luxuosas, esses escritórios acarpetados e esses mendigos fedidos passando fome junto de suas mulheres gravidas caídas a beira da calçada. Território selvagem. Já estava anoitecendo, deviam ser umas sete, sete e meia. Fui andando em direção a Broadway Street. Essa rua nunca morre, dia ou noite não importa a hora sempre cheia. Se esse povo todo conseguisse ler meus pensamentos, só por um minutinho, tenho certeza de que ficaria sozinho na merda da calçada. Entrei no fliperama pra jogar um Daytona. Jogo de corrida feroz, gostoso paca. Sempre me alivia o stress. Queria Ter uma dessas maquinas em casa. Sai do fliper com a cabeça mais sossegada, podia arrebentar uns narizes numa boa. Tava cantando uma musica dos Stones, uma tal de Ruby Tuesday, bem legalzinha. E me veio na cabeça uma historia maluca que um tio meu contava quando eu era criança. Continuei descendo e vendo os imbecis que habitam esse mundo quando me deparei com um daqueles poetas malucos que ficam recitando poesias na rua. O cara recitava um pouquinho e parava e só continuava se a gente colocasse um moedinha na caneca dele. Jeito cachorro de se ganhar a vida. Só na porcaria dessa rua mesmo. Seria triste se não fosse tão cômico. A maioria desses poemas é uma merda mas eu parei pra ver assim mesmo. Tava com a cuca fresca e não tinha nada pra fazer mesmo. Sensação gostosa essa. Geralmente eu fico esculhambando os imbecis que caem no meu caminho quando estou assim.
Fui num boteco e troquei uns dois dollares em moedas só pra azucrinar o tal poeta. Queria ver até onde ia esse gênio todo. Dei algumas moedas pro cara e ele começou a narrar:
ó rua velha com suas calçadas duras
tens um peso triste em tu ‘alma
Parou. Tava na cara que ela tava falando daquela rua. Resolvi ouvir mais um pouco. Coloquei outra moeda:
desafia aqueles que caminham por ti
e teu fantasma sempre chora
Até que estava interessante aquela baboseira toda. Tinha parado mais algumas pessoas pra ouvirem o maluco. E eu coloquei mais algumas moedas pra ele:
troxeste-me felicidade sem igual
e desgraças tão grandes quanto
ainda ouço teu fantasma chorar.
e saudades de um tempo ido
num grito mudo ouvido por todos que em ti caminham
eternamente segue chorando teu fantasma
Parou de novo. Dessa vez foi uma tia gorda com um chapéu verde que colocou umas moedas. Nem tinha visto ela chegar, mas tava uma coisa linda com aquele ornamento tão suntuoso na cuca:
choro soturno, o teu
que muda mentes, suas estradas, seus destinos
Dei o resto das moedas pra ele e fui embora. Estava afim de tomar alguma coisa. Uma cerveja talvez. Não bebo, mas de vez em quando gosto de tomar algo. Ainda dava pra ouvir o sujeito ladainhando... mas teu fantasma persegue, sempre chorando, por nunca sentir realmente a dor... É isso que eu não gosto em poetas- dor, essa angustia que eles tentam mostrar pra todo mundo. Eu não tenho nada contra poetas mas... é isso! Essa coisa de ficarem recitando palavras com duplo sentido fazendo versos e se lamentando. Eu gosto de um tipo de poetas, aqueles que ficam calados e escrevem seus livros numa boa e não enchem o saco de ninguém.
Fui andando pela rua até achar um botequinho que não era tão porco. Tava rolando Stones. Resolvi entrar mas antes me deu vontade de falar com a Paty. Liguei pra ela. Uma voz meiga atendeu. Tava um barulho alto no fundo:
-alô...
-oi.
-quem tá falando?
-sou eu, ora
-eu não te disse pra não me ligar mais?
-só queria saber como você esta- respondi.
-tou bem, e você?
-se você tá bem eu tou bem. Escuta, acho que vou te ver qualquer dia.
-tudo bem- ela disse.
-onde você esta?- perguntei
-no salão, porque?
-barulho. Mês que vem, que tal?
-tudo bem. Olha vou Ter que desligar. Tenho que ir.-ela disse.
-tá bem. Até mais. Você sabe, né?
-sei.
ela desligou.
Ainda fiquei uns dois minutos pensando em nada lá no telefone. Sempre que eu falo com ela eu penso em tudo que a gente já passou. Eu tava pensando que eu amo ela mesmo. Não há nada que se possa fazer. Eu nunca tatuaria o nome de alguém que não amasse. E nunca tatuaria dois nomes. É... ela é linda. Pode ter quem ela quiser. Falo serio. Digo sem medo de errar que ela se encaixa numa boa entre as dez mais do pais. Na boa.
A musica dos Stones já tinha acabado mas dava pra ouvir um Motorhead vindo de dentro do bar. Entrei e pedi uma coca. Sei lá, minha coragem pra beber já tinha passado. Sou um bunda mesmo. Fiquei lá tomando minha coca até que a balconista veio me trazer uns amendoins:
-oi- ela me disse.
-oi- ela era uma mulher duns trinta e tantos anos, não era casada, não usava aliança nem nada. E tinha uns lábios muito bonitos com um batom rosa. Deviam chupar bem.
-que faz por aqui? Está sozinho?
-tenho uns assuntos pra resolver mais lá pra baixo- respondi.
-na área das casas?
-é.
-que vai fazer lá? Fica por aqui, depois a gente sai.- ela disse num tom meio safado.
-sei lá, talvez eu volte mais tarde então.
-o que você faz?
-professor- não devia ter dito isso. As mulheres adoram conversar com caras que elas julgam ser “inteligentes”. Mas na hora não me veio outra resposta na cabeça.
-que legal, professor de que? Espera! Vou adivinhar... português!- ela disse.
Nunca imaginei que eu tinha cara de professor de português. Coisa brega. Gosto de português, mas odeio as regras. Sempre odiei e nunca obedeci.
-qual nada- respondi- dou aula de filosofia. Mas só pro colegial. Não posso lecionar na faculdade sem um mestrado.
-que legal- ela disse- nunca tinha conhecido um professor de filosofia.
E isso era uma puta coincidência porque eu também nunca tinha conhecido uma garçonete que se oferecesse desse jeito. Mas não disse isso a ela. Fiquei com pena, tadinha. Ela era tão sozinha. Parecia a mais carente das mulheres aquela noite. Ainda bem que eu não tinha bebido.
-pois é, conheceu agora- respondi.- quanto deu a conta?
-são dois e vinte e cinco, mas você já vai embora?- ela disse meio tristonha.
-é a vida. Qualquer noite eu volto- dei três pilas pra ela e fui saindo quando ouvi ela gritando:
-ei, ei... qual é o seu nome?- fingi que não era comigo e cai fora pra respirar o ar puro da Brod de novo. Dentro do bar rolava um Pink Floyd.
Fui descendo a rua em direção ao meu destino safado quando cruzei um daqueles barzinhos de meia entrada, bem rústicos mesmo. Tinha uma galera jogando um bilhar e eu resolvi entrar. Fiquei zanzando lá dentro e pedi uma coca. Comprei uma ficha e esperei o jogo da rapaziada acabar. Disse que podíamos jogar quem perdesse pagava as fichas. Começamos. Eu paguei umas cinco fichas, a rapaziada jogava bem. Resolvi incrementar o jogo e dei a ideia de jogarmos a dois ou três dollares a partida. Depois aumentou pra cinco. Sai do boteco com uns quarenta dollares. Isso era bom porque agora eu já tinha dinheiro pra dormir em algum lugar.
Mexi na carteira do cara que eu tinha pegado lá no bar mas o sujeito não tinha mais de dez pilas dentro, alem de algumas fotos de pessoas estranhas, alguns botons, adesivos fedidos e um ingresso pro jogo do Trail Blazers no Domingo. Peguei o dinheiro e o ingresso e joguei o resto fora. Tratei de sumir rapidinho de perto do bar antes que eles descobrissem algo.
Já eram dez e quarenta e cinco. Eu comprei uns três maços de cigarro e fui procurar uma pensão barata. Achei uma muito boa do lado de um hotelzinho bem luxuoso, do lado de fora dava pra ver os gringos se enchendo de comida fedida pra depois irem se divertir nas casas, com aquelas barrigas brancas e geladas. Credo. Não gosto nem de pensar muito nisso. De qualquer forma, entrei pra dentro da pensão e pedi um quarto que não passasse de trinta mangos a noite.