Esta crônica é um pouco longa, para estes tempos de pressa, de narrativas curtas, frases.  Exitei postá-la, com receios de não ser lida, comentada menos ainda. Refletindo melhor, conclui que há leitores e leitoras que gostam de conteúdos densos, com análises mais profundas da realidade. Espero ter alcançado o obejtivo proposto. Ela faz parte do meu livro de bolso Crônicas do Cotidiano Popular - Edição do Autor - 2006 - Primeira edição: 2.000 exemplares.  Esgotados. Boa leitura, obrigado.

 
Um beco sem saída



 
Lena estava sentada sobre o meio fio com o olhar perdido e um cigarro aceso entre os dedos, respondendo com voz quase inaudível aos cumprimentos dos raros transeuntes da rua Nascimento T., em frente ao número 400, que dá entrada a um beco sem saída, onde diversos barracos construídos desordenadamente com material usado, ou de terceira categoria, formam um pequeno cortiço, onde orações, sexo, drogas, álcool, violência, submissão e opressão convivem em tácita cumplicidade, o sortilégio dos indefesos.Tinha uma expressão de tristeza que seus olhos ternos, sempre iluminados, não conseguiam ocultar. Não se entregara ao desespero, porque ainda restava um pouco de fé em seu coração, porém, os últimos acontecimentos abalaram sensivelmente sua estrutura emocional. A mãe se entregava ao álcool mais e mais, na tentativa de esquecer a dor e a solidão. Lena sofria a dor da separação. O amante com o qual planejara construir um lar feliz, a expulsara de casa. Seu castelo de sonhos desmoronara-se de modo patético: após ser espancada com brutal violência, fora obrigada a juntar a trouxa e sair de casa com duas crianças nos braços, ofendida e humilhada. Substituída por outra sem dar o tempo sequer de o colchão esfriar. Sofria a dor da rejeição. Rejeitada por ser negra, pobre, lascada na vida, sem rumo e ferida em sua dignidade.
     Colocou as palmas das mãos sob o queixo e estendeu o olhar sobre o pequeno espaço de terra próximo à parede do barraco. Levantou em silêncio e pôs-se a cavoucar a terra. As lágrimas caiam em silêncio sobre a terra em que Lena começava a plantar uma nova esperança com mudas de rosas, guinés e arrudas. Deu um leve sorriso de ternura ao filho caçula que surgiu de repente, acariciando-lhe os cabelos.
     Os dias passavam. Policiais davam batidas no beco, onde as brigas eram constantes. Todos lascados na vida, sem perspectiva. Brigando entre si por causa das misérias do cotidiano. O ex não dava sinal de vida. Nem mesmo os filhos eram lembrados. Enquanto isso, ela levava a vida que podia. Lavando roupas, fazendo faxinas. O barraco precisando de telhas. Quando chovia era um Deus nos acuda. Esperava ansiosamente o período eleitoral, uma oportunidade de vender o voto em troca de material de construção. Mas Lena começava a dar sinais de cansaço, perdendo a esperança de que trilhando por aquelas trilhas, sua vida melhorasse. Estava tudo errado. Tomou, então, uma decisão: doravante, sem olhos vermelhos e roxos de espancamento. As notícias de corrupção nos altos escalões dos governos entravam em seu ouvido, deixando-a indignada. E ela trabalhando duro e passando necessidades. Pois bem, o caminho estava ali em frente, afinal, estava mesmo com as opções reduzidas. Jurou para si que em sua pequena cozinha não faltaria alimento, que seus filhos e a mãe teriam roupas decentes e que não se submeteria mais a salários aviltantes, a patroas arrogantes, nem a amores ordinários. Lena iria seguir caminhos perigosos, mas, a vida que levava era menos perigosa?
     Apesar da condição de negra e pobre em uma sociedade preconceituosa, Lena não vacilou, foi à luta com as armas que possuía: fé e coragem. Mas, contava com outros atributos. A vida fora generosa com o seu corpo. Tinha um belo par de pernas, um sorriso que deixava à mostra dentes claros, isentos de cárie, tão comum em seu meio.
   Possuía, também, seios firmes, pulando para fora do sutiã e uma fala mansa, que aumentava a sua sensualidade. Era capaz de amar e de se entregar ao prazer de forma verdadeira e envolvente. Exercia uma forte atração nos homens e tivera inúmeras oportunidades de ter alguém de posses, que pudesse garantir-lhe uma boa mesada, mas ela sempre recusava, alegando que isto era prostituição. Lena, apesar do pouco estudo que tinha, era dotada de uma inteligência e de uma percepção à cerca da realidade, que ultrapassava as fronteiras do senso comum. Graças à ajuda de sua amiga Ana, uma marxista convicta, adquirira consciência de classe e um pouco de consciência política. Sabia que as suas chances e de seus pares de levarem uma vida confortável, eram mínimas. Mas, não faria como tantos, não se renderia.
   - Não vou dar aos meus inimigos o prazer de ver as lágrimas caírem do meu rosto – dizia com um misto de raiva e determinação à sua amiga Ana.
Começou com pequenos furtos em lojas de departamentos e supermercados. Pegava de tudo que precisava: alimentos, roupas, calçados, medicamentos, bebidas caras. Vendia o excedente, para pagar passagens e outras despesas. Não achava que estava roubando.
   - Eu não tive outra opção. Foi esta sociedade, injusta e mal organizada, que me conduziu por este caminho. Os governantes também, que nada fazem para os pobres, tá pela ordem. Não tô a fim de transar drogas, acho perigoso e a polícia só pega peixe pequeno. Só bandido pé de chinelo é que fica pendurado em pau de arara, tá ligada?
    - Qual é Lena? Você pensa que os homens estão preocupados com isso? Você vai acabar caindo e eles vão te quebrar no pau, tá ligada? Furto dá uma cana retada! Pegar mercadorias nas Lojas Americanas, no Carrefour, minha amiga, é fria! São potências do capitalismo, eles te ferram. Farão com você o que fizeram com o Dunga. Você conhece a história, quando ele foi flagrado, na tentativa de salvar a pele, entregou toda a galera, agora está comendo capim pela raiz.
    - Tô ligada, só que o Dunga transava o branco, conhecia as bocas.Tô fora destas paradas, não sei de nada. Eu fumo, tá ligada? Mas, não fico por aí dando bandeira. Fumo porque não vejo nada demais, acho até que o brau devia ser legalizado.
    - Pela ordem, mas vai dizer isto para as autoridades! Ouça bem o que te digo: furtar dá cana e se te pegarem, vai ser o Ó.
    - Entendi, mas agora eu quero saber, estes caras do governo, deputados, empresários, são todos safados, de rocha! Uns ladrões. Já sei, você vai me dizer que não se pode generalizar, mas eles ficam aí, na televisão, jogando um sete um na gente, tá ligada? O tal do Alcenir, cara! Mochilas, bicicletas. O Magri, a mulher do Presidente, tá ligada? Não acontece nada! A gente tem mais é que dar um rolé. O Jabes Rabelo é o bom da boca, um tremendo traficante. Dizem que até o Presidente é chagado num branco. Dizem até que ele fez cirurgia, tá ligada?
     - Estou entendendo, mas eles têm costas largas, muita grana, advogados e muitas vezes têm ligações com Juizes. E por falar nos gambés, veja, estão vindo...
   Um camburão, com quatro policiais dentro, passou em marcha lenta, quase parando, encarando o grupo, avaliando. Lena olhou com ódio e revolta. Sua irmã mais nova fora abordada meses atrás por policiais que faziam a ronda no bairro e a empurraram para dentro do camburão e conduziram-na a um local ermo e tiraram-lhe as roupas, sob ameaças. No dia seguinte, em companhia da irmã, Lena foi a uma delegacia e denunciou os policiais, que após um longo e burocrático inquérito policial, foram expulsos da corporação.
    - Esses filhos de uma égua vivem rondando meu barraco, depois que ferrei os colegas deles. Agora vivem na minha cola. É o Ó.
      - Mais um motivo para você não fazer bobagens, tá ligada?
Em seguida as amigas se despediram e Lena puxou o filho caçula pelo braço, entrou no barraco assobiando, balançando os quadris. Trajava um short branco, curtíssimo e apertado, que teimava em ficar enfiado no rego da bunda. Havia passado creme nas pernas e nas coxas torneadas, que brilhavam. Ela sabia que os homens ficavam fissurados, por isso tinha prazer em exibir todos os seus atributos, toda sua sensualidade.
     - Tem uma coisa xará, não banque o atrevido comigo. Só saio com quem eu estiver a fim, tá ligado?
  Ana, a amiga loura com quem Lena se abria, tivera um passado tumultuado, marcado por traumas de infância. Tivera uma mãe repressora, um pai megalomaníaco, que não assumira a sua paternidade. Talvez, por isso, Ana havia percorrido vários caminhos. Frequentou terreiros de umbanda, fez psicoterapia, psicanálise, análise transacional, foi militante de esquerda, kardecista e, finalmente, dizendo-se em harmonia com o Universo, lia filosofia oriental. Acreditava na espiritualidade e na imortalidade da alma e que a humanidade estava caminhando rumo a uma nova era, com as forças Yang e Yng se equilibrando, rompendo com o paradigma cartesiano, reducionista e mecanicista, para estabelecer um novo modelo econômico e social, sem patriarcalismo. Uma visão holística e ecológica.
     - Ana, Ana, não aguento mais – desabafava Lena no dia seguinte – estou cansada. Aquele miserável do Cássio não manda um tostão furado para os filhos. Eu vou entrar na justiça. Pô, Ana, o Cássio foi sacana pacas! Eu trabalhando, ralando pra cacete, cuidando da nossa casa, fazia a marmita dele numa boa. Sabe, Ana, os meninos estavam felizes, eu estava fora da malandragem, o Dudu ia todos os dias para a escola, uma gracinha. Agora anda por aí, calado e triste. Cê precisava ver, Ana, eu cuidava dos cadernos dele, fui até à escola dele várias vezes, conheci a professora dele, uma moça legal. Agora tô aí nesta vida, pegando coisas em lojas! Uma hora dessa me flagram, não queria nada disso. Queria um amor, uma casinha, cuidar dos meus filhos na boa. Ah, vamos enrolar um fumo, melhor esquecer, não sei o que fazer!
       - Esquenta não, amiga, você vai encontrar um grande amor, alguém que te valorize, um amor verdadeiro. O Cássio não te merece. Não fique por aí, desatinada.
      - É isso aí! – continuou Ana, após dar uma tragada - você vai para a sua casa, faz o Sin Sokan. Amanhã a gente vai consultar o Pai Ambrósio, ele te receita um banho de ervas, faz um descarrego, purifica o corpo e a alma, combinado?
    - Eu não penso no Cássio como o amor da minha vida. Eu tenho é raiva do que ele fez. Pô, ele foi sujo. Não quero nem ver a cara dele, mas e os meninos? Nem dos filhos ele se lembra, tá ligada?
    - Esquenta não, amiga, tudo vai dar certo.
    - Fumo bom este, Ana. Tem pouco dele na área. Quer que eu descole uns dez paus dele para você?
    - Quero sim! Você já ouviu falar no Santo Daime? É uma planta, um cipó. Fazem um chá com ele, algo assim. Bebem e ficam todos doidões. Mas, tem todo um ritual. Não sei porque tanto preconceito, é preciso levar em conta o prazer. Carlos Castañeda escreveu alguns livros em que narra suas experiências com plantas alucinógenas. Tinha um índio, Dom Juan, que era o seu guia espiritual, não é um barato?
    - Bom, amiga, o papo tá legal, mas o bicho tá pegando. Preciso cuidar da vida, “meu vizinho jogou, uma semente no meu quintal, de repente nasceu um tremendo matagal”, conhece este samba do Bezerra da Silva?
    - Legal!
    - Inté mais...
    - Inté.
   A galera estava bebendo cerveja no bar da esquina, quando o camburão da polícia civil foi se aproximando em silêncio e parando. Dois policiais desceram e ficaram encostados no carro, observando um grupo atentamente. Em seguida eles se aproximaram, indo diretamente até Lena, chamando-a para ir até o carro, para uma conversa particular.
   - Agora entre aí, que vamos dar uma volta – disse um dos policiais.
   - Esperem, preciso avisar a minha mãe.
   - Entre logo, vai ser só uma conversa rápida.
  Lena sentiu uma friagem no corpo. Intuiu que eles não estavam para brincadeira. Tentou transmitir uma mensagem com os olhos para os colegas, que prosseguiam bebendo como se nada estivesse acontecendo. O seu coração pedia ajuda, mas parecia que ninguém do grupo queria se comprometer. Alguns tinham passagem pela polícia, outros não queriam saber de confusão. Enquanto isso Lena molhava a testa de suor. Olhou no fundo dos olhos dos policiais, para ver se eles tinham um pouco de compaixão com o seu sofrimento. Era uma pobre coitada, mal amada, com dois filhos para criar, que eram a razão da sua existência. Quis dizer-lhes que estavam enganados, não era a pessoa que eles procuravam, contudo, tinha um nó na garganta e não conseguia se expressar. Tomada de uma súbita impotência, deixou-se levar. Nem bem entrou no carro, levou um leve empurrão e quando percebeu, o carro estava em movimento. Olhava com olhos tristes e submissos através do vidro embaçado, a rua deserta.
O camburão seguia em marcha lenta pelas ruas e o coração de Lena batia acelerado. Entorpecida, esgotada, pensou em sua amiga Ana surgindo de repente para salvá-la. Ato contínuo concentrou o pensamento em seus guias espirituais. Levou a mão no seio esquerdo, junto ao coração, e tocou suavemente com as pontas dos dedos as folhas de arruda sob o sutiã.
   - Preste atenção, pilantra – disse o policial, apertando-lhe o dedo - se você colaborar, nada vai lhe acontecer. Não tem ninguém para lhe ajudar. Nem mesmo essa merda de direitos humanos.
  Neste momento Lena fazia um esforço enorme para não fazer xixi na roupa. Pedia ajuda aos guias, que não se manifestavam. Tudo estava confuso, a cabeça girando. As imagens surgiam e esvaneciam e retornavam sem nitidez. Identificou o semblante da mãe, bêbada e infeliz, chorando, pedindo amor e proteção. As crianças clamavam pela sua presença. Ana, a amiga, apareceu em uma imagem deformada, transmitindo-lhe solidariedade em meio a tanta desordem.
   - Só queremos saber onde o Mequinho está escondido – disse o policial, sem olhar para ela.
   - Meu Deus! – exclamou Lena em voz baixa – eu não sei de nada.
   - A bonequinha preta fala! Pensei que tivesse perdido a língua. Acho bom ir se preparando, sua piranha – gritou o policial. Esse pilantra – continuou – nos meteu numa baita encrenca.
   Todo corpo de Lena se estremeceu. Que diabos o Mequinho aprontou? Perguntava para si. Eu sempre disse ao otário para não se meter com este negócio de cheque roubado, olha aonde eu vim parar.
    O camburão estacionou nos fundos da delegacia. Lena foi arrancada para fora com brutalidade e em seguida trancafiada em uma cela escura. Os policiais desapareceram. Ela não enxergava um palmo à frente do nariz, todavia, percebeu que não se encontrava só, pois ouviu um gemido.
   - Quem está aí? – perguntou com receios de estar em companhia de algum estuprador.
  Lembrou os vários casos, contados por ex-presos em que a polícia colocava prisioneiros que cumpriam prisão perpétua, junto com bandidos pés de chinelos, para que fossem violentados. Tremia apavorada ante a possibilidade de um estupro. Pela primeira vez teve consciência do inferno em que se metera. Neste exato momento poderia estar trabalhando na casa de D. Eulália, ganhando uma mixaria, mas, não sofrendo tanto medo. Sentiu um liquido quente descendo pelas pernas. Levou a mão à calcinha. Estava molhada. Chorou copiosamente em silêncio.
    - Lena, sou eu, Tina – disse acariciando-lhe os cabelos.
    - O quê? Não acredito – respondeu Lena, erguendo os olhos – Nossa mãe vai ficar louca de pedra. Por quê você está aqui?
    - Provavelmente pelo mesmo motivo de você. A Vânia também está aqui, encontra-se dormindo, coitada. Está toda machucada. Pegaram o Flávio, também!
    - Pelo amor de Deus, fala baixo – pediu Lena, assustada.
    - Bateram com o cassetete na sola dos pés dela. De tão dolorido, ela não consegue ficar de pé. Ainda bem que está dormindo.
   - Mas, por quê?
 - Você já deve saber. Querem que ela conte onde o Mequinho está escondido. E ela sabe – disse Tina, baixinho, no ouvido de Lena.
   - Meu Deus! Belo amante ela arrumou.
   Após um breve silêncio, Lena falou em voz baixa, mais para si:
   - O que será que este imbecil fez?
Tina respondeu:
   - Ele quebrou o vidro da porta de um carro e roubou um talão de cheques. Sabe de quem é o talão? De um delegado, pode uma coisa desta?
   - Puta que pariu! Que merda, que bosta, que azar. Estamos fudidas. E agora?
  - Acho que quem está fudido é ele, porque a polícia vai acabar o encontrando. A Vânia disse que não conta, sabe como é, gamada e medrosa do jeito que ela é. O Mequinho é o bicho! Mesmo se for preso, acaba sendo solto e se souber que foi alguma de nós quem contou, sai de baixo. O melhor é deixar rolar.
   - Deixar rolar, uma ova! Quero sair daqui hoje mesmo, com pena de entregar este filho da puta.
    Lena estava apavorada diante da possibilidade de ser torturada.Ouvira casos de espancamentos, queimaduras com pontas de cigarros, surras com toalhas molhadas, telefone e o temido pau de arara, sem falar em choque elétrico. Alguns de seus amigos que foram presos voltavam com hematomas, mãos e pés inchados. Bagres, que ficavam ripando fumo para uns curiós, alguns ficaram tan tans de tanto levar cassete dos canas.
Ela não entendia porque uns apanhavam e outros não. Tutuca desfilando de motoca 250 cilindradas por todos os lados, sem ser incomodado, curtindo com a cara dos outros. Ele dominava umas paradas lá no Rato Molhado. “Aí tem coisa”, pensava Lena. “Claro, ele é protegido pelos gambés, divide a grana, só pode ser isso, a comunidade sabe que Tutuca é o rei da boca”. Subitamente Lena começou a pensar em Ana nos casos que ela contava dos tempos da repressão política. Fazia comparações. Muitos presos políticos eram amarrados em carros, com os rostos colados no cano de descarga e arrastados, respirando monóxido de carbono. As torturas eram terríveis, mas, muitas pessoas em liberdade, lutavam para liberar os presos políticos. De certa maneira o mundo inteiro reagia, pois, estes presos eram diferentes, lutavam por uma ‘boa causa’, conforme Ane dizia. “Mas, a minha causa é menos boa? Por acaso não estou lutando pela vida? Os guerrilheiros sequestravam embaixadores, que eram trocados pelos presos políticos, eram notícias. Uns viraram heróis, outros viraram escritores, políticos e estão nos governos, ganhando uma nota preta. E nós? Quem vai nos defender? Nós podemos levar porrada? As ditas pessoas de bem não estão nem aí pra gente, somos nocivos à sociedade”.
   Lena pensava, Lena alisava, Lena orava. Não era isso que queria. Nem sabia porque estava ali, não foi flagrada. As coisas foram acontecendo, de repente o beco ficou escuro, sombrio, haveria saída? Lembrou do dia em que vira um pivete apanhar da polícia no meio da rua e as pessoas aplaudindo.   Ficou indignada, teve vontade de matar, de morrer, de fugir, de não ter nascido. Voltou para casa arrasada. “Lugar de vagabundo é na cadeia, não se pode tratar bandido com flores”, era o que ouvia.
   - Até parece que não somos gente – disse Tina, olhando a amiga deitada no chão frio, gemendo.
   - Não – disse Lena voz baixa – eu não queria nada disso. Só queria que meus filhos tivessem um lugarzinho decente para morar, comida, roupa, remédios. Por mais que eu tente, não entendo de política, o pouco que sei foi Ane que me explicou, ela entende, mas, no meu modo de ver, as coisas estão erradas, está tudo errado. Não é justo. Tenho filhos, minha mãe, coitada, deve estar desesperada. As minhas plantas vão morrer, você viu, Tina, como o canteiro está bonito? A roseira, então, está ficando uma maravilha. Tina, quem vai aguar as minhas plantas?
   - Ah Lena tem dó! A gente aqui neste sufoco e você pensando em rosas? Ajuda aí...
    - Meu jardim está ficando tão bonito!
    - Cê chama aquilo de jardim? Cê tá pirando!...
   - Ana me deu uma muda de avenca, ela está verdinha. Vou fazer uma oração com muita fé, pensar em minhas arrudas e pedir ajuda aos meus guias espirituais, eles vão ajudar a gente a sair daqui. Eles vão proteger a gente!
   Subitamente a porta foi aberta com brutalidade. Um policial musculoso, com uma cicatriz que começava no olho esquerdo, indo até a altura do maxilar, entrou gritando:
   - Prepara-se crioula, vou fazer sair sangue de dentro da sua xoxota, vou quebrar a sua fuça, arrancar com alicate e sem anestesia, seus lindos dentes...Não é que a que a putinha tem dentes bonitos? Uma gracinha, vou deixar estes olhos roxo de porrada, o esquerdo vou comer ele com omelete. Não sei porque, mas detesto tudo do lado esquerdo, pode ser olho, pernas, mas você tem umas pernas deliciosas, hein! Na rua, só ando pela direita, acho que é porque me faz lembrar dos tempos em que enfiava gargalo de garrafa no cu daqueles esquerdistas de merda e deixava o camundongo fazer a festa lá dentro do reto daqueles comunistas, você precisava ver, os caras faziam caretas horrorosas, urravam. Mas, como agora a esquerda de merda se fudeu, você sabe putinha, que lá no Leste Europeu - cê nem sabe pra qui lado fica isso, os comunas foram pro saco, dançaram sem música. O muro caiu, portanto, fofinha, vamos fazer neném, vou comer o seu rabinho, adoro rabinho pretinho, quero ouvir seus gritinhos, mas, grite devagar, que é pra eu gozar. Primeiro vou entrelaçar esta bic em seus dedos e apertar, vai doer um pouquinho, só um pouquinho só, ah ah ah! As juntas dos dedos ficam um bagaço, durante pelo menos uma semana você não vai conseguir bater umas punhetas em seu gigolô, nem segurar um baseado de tão inchado, negra fedorenta, mas ocê é feia pra caralho! Você nunca mais vai esquecer o tamanho da rola do Tucão, tá legal? Mas, antes, vou te dar uma chance: diga logo onde está aquele traficante de merda, de meia tigela, pé de chinela, o Mequinho? Senão, quem vai virar presunto é você e suas amigas, certo? Como já falei, agora que os comunistas de bosta não fazem mais suas gurrilhaszinhas, nós vamos comer o rabo dos traficantes, porque, para mim, comunistas, traficantes, trombadinhas, amigos do Noriega, do Fidel, do Chavez, são tudo farinha do mesmo saco, por isso, é bom ir abrindo a boca, não vacila e vamos logo tirando a calcinha que quero ver a sua bundinha pretinha Gostou da rima? Quero ver o seu cuzinho todo sujo de merda, puta nojenta. Mas até que seu rabinho tá no jeito, anda logo, porra! Tá me achando com cara de otário? Isso, assim mesmo e levanta a cabeça, quero ver os seus olhos medrosos, me dá um tesão... Ai, tô gozando, vai, depressa, chupa meu pau, bate uma punheta, assim, assim, isso, pô, você é boa nisso. Quero ver o pessoal dos direitos humanos te ajudar, comunistas disfarçados de democratas, onde eles estão? Estão bebendo cerveja no Maleta! Comunistas frustrados, sem bandeira, sem palavra de ordem. Agora se metem a defender bandidos. Quando morre um policial, que protege a sociedade, eles não dizem nada. Olha aqui, neguinha, lugar de bandido é na cadeia, ou melhor, morto. Comigo não, vira presunto, enterrado em pé pra não ocupar espaço. Ontem mesmo mandei três pro inferno, elementos nocivos à sociedade, entende? Você não entende nada, só sabe dar o rabo. Sabe, neguinha, o mundo é dos fortes, dos ricos e nós estamos do lado deles, bobagem navegar contra a maré, quem sabe você ainda venha a fazer parte do nosso time, quem sabe ainda vai bater muita punheta para mim. O nosso time, só tem campeão. O delegado diz pra gente ir com cuidado, pois, segundo ele os tempos mudaram. A Democracia, a imprensa, esta, então, fuça tudo. Quero ver Imprensa, Democracia, Direitos Humanos, comunistas, preta feiosa! Quero ver eles te ajudarem. Comigo é assim: negro, prostituta, veado, pivete, é tudo na porrada. Pra deixarem de serem trouxas. Cheiradores de cola, maconheiros, comigo vira tudo presunto. Agora vou apertar a bic em seus dedos, assim, está doendo? Tadinha dela, só mais um pouquinho... Ô dó! Por enquanto chega, mas, depois eu volto. Toma, um tapa nesta cara feia. Pense bem, ponha a memória para funcionar e nos conte onde está o vagabundo do Mequinho, certo? Senão, você vai cagar de dor.
    Lena jamais sentira tanta vergonha e humilhação na vida. Não tanto pela caneta apertando-lhe os nós dos dedos, nem tanto pelo que o carrasco dissera, nem tanto pela ejaculação. Mas, o tapa na cara, lhe doera profundamente, o máximo de humilhação. Sentiu-se diminuída, insignificante, pequena. Brotaram lembranças esquecidas.Lembranças de uma infância sofrida em que o pai dava-lhe tapas no rosto na presença de pessoas. Neste momento sentia tanta dor e tristeza, que não teve forças para chorar. Permaneceu em silêncio remoendo o passado e o presente, sem perspectivas futuras, envergonhada por fazer parte da espécie humana. Ficou encolhida num canto e esperou. Esperaria a vida inteira. Finalmente alguém entrou.
    - Vocês estão liberadas – disse alguém, que tinha o rosto coberto por um gorro – podem ir para suas casas. Quanto a você, Lena tome muito cuidado, estamos de olho. O delegado quer conversar com você. As outras podem ir.
Tina e Vânia recusaram-se a ir sozinhas. O policial permitiu que elas aguardassem na sala de espera.
    Ao se aproximar do delegado, Lena abaixou a cabeça com um misto de ódio e vergonha. Jurou para si, que jamais colocaria os pés em uma delegacia, enquanto o delegado a observava. Após alguns segundos de um pesado silêncio, o delegado disse com voz pausada:
   - Pode sentar aí. Olha aqui, menina, levante esta cabeça. Isto! É o seguinte: você está encrencada!
     Lena esfregava as mãos, quando respondeu:
     - O que o senhor quer de mim? Ninguém pode provar nada contra mim!
     - Olha aqui, menina, não confunda as coisas, certo? Eu sou a autoridade! Acho bom ir abaixando a crista. A polícia sempre tem provas, temos meios de conseguir, se é que me entende. Nós resolvemos qualquer parada, portanto, não banque a espertinha.
     - Sim senhor, mas, eu não sei de nada. O Mequinho...
    - Não estamos interessados no Mequinho, este assunto é página virada. Estou falando de você. Está me achando com cara de otário? Prendemos o receptador de mercadorias que você furta nas lojas. Você poderá ser enquadrada por formação de quadrilha. Vai mofar atrás das grades, nem sol quadrado poderá ver.
    Lena pensou: “Estou ferrada”, martelava na cabeça.
   - Mas – continuou o delegado – as coisas podem se ajeitar, não precisa ficar com esta cara de pavor, desde que você...
    - Eu não posso ficar presa, por favor!
    - Só depende de você, basta colaborar!
    - Tudo bem, desde que não seja X-9, prefiro ir presa.
   - Que bobagem. Olha aqui, menina, estar viva e em liberdade é o que importa. Não temos dedo-duro, nós trabalhamos com informantes anônimos. Mas, não estamos falando disso. O Mequinho é carta fora do baralho, um frouxo. E burro. O mundo do crime exige QI. O otário do Mequinho perdeu a grande oportunidade que a vida lhe deu. Agora é a sua chance, agarre-se a ela. Além do mais você é uma mulata bonita. Vai fazer sucesso no meio.
Lena observava o delegado: um quarentão bonito, sedutor, olhar penetrante. Lembrou novamente de Ane. Ela dizia que os torturadores mudavam de técnica o tempo todo, a fim de arrancar a confissão dos presos políticos. Alternavam violência e bom trato, para minar a resistência do preso. “Tortura psicológica”, dizia a amiga. Um torturador violento era substituído por um manso, que se dizia contrário à violência e com voz suave, transmitia conforto, aliviando a dor do preso. Ao ganhar a confiança do preso político, o torturador conseguia arrancar muitas confissões. Ao notar que começava a ter simpatias pelo delegado, Lena se controlou.
     - Vocês fecharam o Mequinho – perguntou de repente.
  - Olha aqui, menina, calma! Ele que continue pensando que está escondido. O povo é quem vai dar um fim nele. Amanhã vai sair em todos os jornais a lista de crimes que ele cometeu: assalto à mão armada, homicídios, estupros e roubar os cartões de banco dos velhinhos. A sociedade detesta bandido.
     - Isto é um absurdo! Ele pode até ter feito muitos furtos, mas estuprar ele não estupra.
    - Olhe aqui, menina, você por acaso é advogada? Ele não é primário. O próprio já confessou dois estupros. Olhe aqui, menina, a polícia sabe como arrancar confissão.A polícia tem poder, mais do que você imagina.
    - Não pode ser verdade – disse, estarrecida.
   - Pode, claro que pode! A polícia pode tudo. Agora pense bem: vai para casa, pense em seus filhos, na sua vida. Daqui uns dias você será procurada por alguém, um dos nossos, que lhe dará algumas instruções. Mais cuidado daqui pra frente; ninguém pode saber o que se passou aqui, até porque, se você disser, ninguém vai dar crédito. O peixe morre pela boca. Pode ir.
   Lena saiu em silêncio, não acreditando no que ouvira. Que diabos eles estavam querendo? Não seria melhor denunciar estes policiais corruptos? Ou será que se metera em um inferno de onde nunca mais sairia? Tina e Vânia esperavam aflitas.
   - E aí? – perguntou Tina.
   - Vamos rachar daqui antes que eles mudem de idéia. O bicho tá pegando.
   - Mas, vamos deixar barato? – gritou Vânia, caminhando com dificuldades.
   - Vai sujar? Vamos embora logo, também não é assim! – disse Lena, entre dentes.
   - Então vamos, fazer o quê?
   Lena só pensava em chegar em seu barraco, abraçar as crianças e dizer-lhes que nunca sairia de perto deles. Tudo não passava de um terrível pesadelo. Iria procurar um emprego qualquer, catar material reciclável, qualquer coisa, menos se envolver com bandidos de qualquer espécie. Descobrira que a vida era o seu maior tesouro, uma dádiva divina. Afinal, não viera ao mundo por acaso. Tinha uma missão a cumprir: cuidar da mãe desamparada, educar os filhos no caminho do bem.
   - Sabe Tina – disse subitamente – tudo que está acontecendo de uns tempos para cá é um aviso. Meus guias espirituais apontam o caminho que devo seguir a todo instante e que teimo em fugir. Eu tenho uma missão, não vim ao mundo por acaso. Tudo tem uma explicação.
     -  Missão uma ova! É tudo titica – gritou Tina.
   - A gente – prosseguiu Lena – fica apavorada à toa. Não podemos desperdiçar a chance de sermos felizes. As oportunidades aparecem e não sabemos aproveitá-las.
    - Minha vontade – gritou Vânia – é de cortar as mãos daquele filho da puta, que me arrebentou.
    - O melhor a fazer é esquecer e perdoar. A vingança é uma coisa negativa e só prejudica a nós mesmos, é uma reação de espíritos inferiores.
   - Ser espancada e perdoar, tá riscado! Sou um espírito inferior...
   - Ah, vocês vão ver – disse Tina – vou limpar tudo quanto é loja, ripar fumo a zói e ninguém vai pôr a mão em cima de mim. Tem mais, vou comprar um berro, meter bala, tá pela ordem! Eles ficam na cola da gente, pra enrabar e tomar bagulho, qualé? Vou ralar, correr riscos e dividir com os gambés? É ruim, não vou mesmo. Deixam eles tentarem me pegar, tirar minha roupa, mando um pro inferno!
     - Vai, valentona, vai. Quem vai se ferrar é você. Pois eu desisti. Vou ficar na miúda, arranjar um emprego de carteira assinada, de rocha, quero sossego – disse Lia convicta.
   - Pra ganhar esta mixaria de salário mínimo? Nem a pau. Ganho mais ripando fumo, dando o rabo.
    - E cagando de medo, sendo humilhada abrindo as pernas para qualquer um.
    - Foda-se, tá pela ordem! Está vendo, Vânia, a Lena vai mudar de vida. Pago pra ver. Você não consegue largar nada, está no sangue – disse Tina com firmeza.
    - Mudei sim. Estou a fim de ser explorada, não tem problema, pode ser salário mínimo, não tenho uma profissão, sou mesmo uma merda! Nem mesmo no crime a gente é respeitada. Cada um querendo foder o outro.
     - Quê isso, mana? Tô te estranhando!
    - É difícil de explicar. Ana me ensinou muita coisa. Só sei que até no meio da merda, continuamos por baixo. Bandidos pés de chinelo vão pra cadeia. A polícia corrupta faz média com o povo. Vão pra imprensa e exibem os desdentados em cadeia nacional. Nós servimos de exemplo, para provar que a polícia está agindo, protegendo a sociedade. O povo aplaude o espetáculo. Peixe miúdo leva ferro, fica preso no anzol. Enquanto isso, os grandes estão soltos, aparecendo na televisão, de terno e gravata. Gente fina é outra coisa. Um destes engravatados, um delegado, um juiz, um deputado, pode ser o chefe de uma quadrilha. Tudo fingimento. Fazem discursos de combate ao crime, mas vivem roubando. Até no mundo do crime nós fazemos os piores serviços, quer dizer, eles não sujam as mãos. Em qualquer lugar é a gente que limpa a fossa deles. Pelo menos quero limpar a fossa, mas com dignidade. Chega, tô fora!
    - Tomara, mas pago pra ver – respondeu Tina.
    - Escreve aí: eles não vão me encurralar!
    - O que foi que o delegado conversou com você? Foi um papo longo.
    - Nada importante. Lição de moral, só isso.
   - Ei! Parem com esta conversa mole – interveio Vânia – e me esperem. Não estão vendo que não consigo correr?
    - Quer que te carregue, belezoca?
    - Até que eu ia gostar – respondeu fazendo uma careta.

   Lena tocava a vida, contando os dias nos dedos. Começava a crer que fora esquecida pelos policiais e a ansiedade dos primeiros dias arrefecera. Desistiu de continuar se arriscando com furtos em lojas e supermercados. Sobrevivia fazendo biscates, lavando roupas, fazendo faxinas. Olhava a vida com outros olhos, dedicava-se ao espiritismo, frequentando o Centro Espírita Irmão Cláudio, um centro kardecista, mas, frequentava, também, terreiros de umbanda, sempre em companhia da amiga Ana.
    - Sabe Ana – Lena falava com um breve sorriso – acho que os homens saíram da minha cola. Acho que o delegado estava me testando.
    - Também acho – respondeu a amiga, pousando a mão em seu ombro – aliás, não há motivo. O que você fez não é nada diante dos grandes problemas que a polícia tem para solucionar. A justiça não pode perder tempo com miudezas.
    - É, tem nego aí envolvido em altas transações, de rocha!
   - Não só nego, branco também. Sabe Lena, o caminho para a solução das injustiças é o amor. Quando o povo eleger um presidente honesto, alguém que veio do povo, que conhece o sofrimento e não a elite, as coisas poderão mudar. Temos de lutar, denunciar, participar, mas, se o amor não estiver no coração de cada um, não chegaremos a um porto seguro. A violência gera violência, com ódio e vingança não chegaremos a lugar nenhum, ou melhor, chegaremos à destruição, ao caos.
     - É isso aí, o que fiz está feito. Agora quero sossego, distância do crime, nem ficar por aí batendo cabeça. Penso muito nas crianças, queria dar a eles uma vida decente, de rocha!
    Quando falava nos filhos os olhos de Lena se enchiam de lágrimas, que ela tentava disfarçar com as mãos, sorrindo. Abaixava a cabeça por alguns segundos, para levantá-la em seguida e dizer com voz embargada: - fico aqui falando de sonhos, castelos de areia.
    - Quê isso, amiga? Você quer algo mais belo do que sonhar? O sonho é tudo, sem ele, o que seria de nós?
    - Eu sei, se eu perder meus sonhos, será pior. Acontece que não posso passar uma esponja na realidade. Se pudesse, passava e criava um mundo colorido, de rocha! Fico falando em sair deste beco, mas, para onde posso ir? Não há saída – completava com um suspiro.
    - Você pode, sim – intercedia Ane, consolando a amiga – pode construir sua felicidade neste beco. Vivendo em paz e agradecendo o pouco que tem. Com saúde, o resto virá por acréscimo.
   - Obrigado pela força, mas, falar de esperança é bem mais fácil para você. Tem uma casa, que comparada ao meu barraco é uma mansão. Tem um salário razoável e uma pessoa que te ama, um companheiro legal. E eu? Minha vida, que Deus me perdoe, é o Ó.
  - Fica assim não, tenha paciência. Você é inteligente, vai arranjar um emprego numa fábrica, não é isso que você quer? Você vai conseguir, mas, não pode perder a esperança. Você sabe qual é o maior ódio dos opressores e exploradores do povo? A esperança, querida. Eles odeiam a esperança que o povo teima em ter, querem nos ver de cabeças baixas, humilhados, silenciados. Impõe-nos a fome, o desemprego, a miséria. Roubam tudo em nome da livre iniciativa e odeiam-nos por não conseguirem nos roubar a esperança. Aqui pra eles, oh! Esquenta não. Dias melhores virão e as coisas acontecem no tempo certo. Sua boa hora está chegando.
    - Ah, Ana! Tomara que chegue logo. Gosto de conversar com você. Fico mais animada.
   No instante em que tinha mais fé e esperança, aconteceu o que Lena menos desejava.
   Era uma tarde de sol embaçado por nuvens e poeiras que saiam das chaminés das fábricas e ela se encontrava sentada sobre o mesmo meio fio, extensão do seu barraco, com um cigarro aceso entre os dedos, pensando na vida, ou esquecendo um pouco dos problemas da vida, quando um Fiat preto estacionou a uns cinqüenta metros do seu barraco, do lado oposto. Ela sentiu um mau presságio e levantou-se para entrar, quando alguém ergueu, de dentro do carro, o braço em sua direção, pedindo-lhe para se aproximar. Lena fingiu não entender e caminhou em direção ao beco. Neste momento um homem desceu do carro e ficou encostado no capô. Lena parou, observando, não queria demonstrar insegurança. Um negro forte, bonito, vestindo uma jaqueta jeans, aproximou-se. Ele tinha uma cicatriz nos dois lado do rosto, sob as maçãs, entre o maxilar superior e inferior, como que perfurado por uma bala, que lhe dava um ar assustador. Lena observava atentamente a fisionomia do negro e quando ele falou, os lábios se contorceram horrivelmente.
    - Tenho um assunto importante a tratar com você.
    - Sobre o quê?
   - Bom para você, mas, não dá para conversarmos aqui. Vamos dar uma volta.
    - Não posso, estou ocupada. Quem é você?
    - Fique tranquila, nada de ruim vai acontecer. É para o seu bem.
    - Eu sei o que é bom para mim.
    - Se você não vier, aí sim, sua vida vai virar um inferno.
    Lena sentiu um calafrio no corpo, que saia da cabeça, indo até as pontas dos pés. Ato contínuo pensou em Ane. Quem sabe ela pudesse ajudá-la. Sabia que a amiga tinha alguns amigos influentes. Vereadores, deputados. Arrependeu-se de não ter contado tudo em detalhes à amiga.
    - Acho melhor você procurar outra pessoa. Não quero me envolver com estranhos, quero viver na legalidade.
    - Deixa de bobagem – respondeu o negro – você está em boas mãos. Somos profissionais.
      - Como assim? É um emprego de carteira assinada?
     - Sua vida vai mudar para melhor. Vai entrar uma boa grana como você nunca viu, que resolverá todos os seus problemas. Mas, vamos sair logo daqui.
    Lena entrou no carro, que saiu lentamente, sem que nenhum vizinho percebesse. Enquanto circulavam, o negro ia passando as instruções: - Tem alguém esperando por você na rua Amadeu C., número 15, você sabe aonde. Ao chegar lá, sente-se no último banco do lado esquerdo, debaixo da janela que dá para a rua, fingindo ler alguma coisa. Hoje, sem falta, às 17h35.
      - E se eu não for?
     - É melhor você ir. Melhor para você e muito melhor para seus filhos, se é que me entende – disse o negro em tom ameaçador.
     - Além do mais – continuou o negro – somos profissionais, não queremos que o trabalho saia do nosso controle. Tudo vai dar certo.
    - Mas, eu sou uma pobre coitada, uma amadora. Vocês não parecem tão profissionais assim ao contratar alguém que nem conhecem. Eu poderia denunciá-los.
     - Nada disso, você é inteligente, não faria isso. Sabemos bem quem você é e ninguém iria acreditar numa pessoa fichada na polícia por formação de quadrilha. Sua situação não é boa. Use a inteligência e a sua beleza, garota. Tudo bem?
   - Está certo, entendi. Agora, deixe-me aprontar, porque é tarde, mas, promete não me amolar mais?
     - Quem sabe! – respondeu o negro de modo enigmático.
     Lena desceu do carro, que desapareceu rapidamente.
   Novamente a vida de Lena dava um giro de 180 graus. Melhor não confidenciar à amiga, não envolvê-la, pois Ane poderia tentar ajudá-la, o que seria perigoso.Quando tudo teve início, Lena não acreditava, achava que era um blefe, uma armadilha, um tipo de investigação, não soube avaliar bem e preferiu esquecer.
    Entrou atrás do biombo e vestiu a melhor saia. Bem curta, deixando à mostra um palmo de coxas. O filho mais novo brincava com carrinho imaginário, um toco de madeira e ao perceber que a mãe se preparava para sair, perguntou, sem desviar a atenção do brinquedo:
    - Vai sair, mãe? Você me leva?
    - Não posso, fofinho, mamãe vai trabalhar.
    O filho não insistiu. Continuou brincando e em sua fantasia, disse:
    - Mãe, quando eu crescer vou ser igual ao Airton Senna.
    - É mesmo? Legal!
A mãe olhou o filho com um misto de ternura e tristeza. Teve vontade de chorar, mas espantou a dor passando um batom vermelho nos lábios. Foi até a rua e chamou e chamou o filho mais velho que jogava bola com outras crianças.
    - Olhem aqui, meus filhos. Mamãe vai sair para trabalhar e talvez demore alguns dias, por favor, obedeçam a sua avó.Tina vai levá-los para passear numa fazenda. Lá tem muitas frutas, mangas, laranjas, bananas.Tem muitas árvores, mas cuidado, não subam nelas, pois é perigoso e vocês podem cair e machucar. Tem leite tirado do peito da vaca, uma delícia. Agora eu quero um abraço apertado. Assim!
   Lena saiu depressa com medo de cair em prantos. Caminhou a esmo pelas ruas em direção do ponto de ônibus. Assim que ele parou, ela atravessou a roleta, sentando-se no banco mais alto, para observar melhor o trânsito. Neste horário os ônibus iam para o centro com poucos passageiros, o que era bom, pois a possibilidade de encontrar algum conhecido era menor. Olhava com um olhar perdido o movimento ao redor, não querendo pensar em nada. A viagem foi rápida e chegou ligeiramente adiantada. Aproveitou o tempo para recuperar o equilíbrio, sentando-se num banco do Parque Municipal, escondido dos transeuntes. Retirou um espelho da bolsa e olhou o rosto, mordendo os lábios. Tinha uma expressão fria e distante. Retocou a maquiagem e em seguida levantou-se e caminhou decidida rumo ao encontro do seu destino. Lançou um olhar indecifrável para um rapaz que passava, observando-a de cima a baixo.
    Ao chegar ao local, sentou-se no banco indicado, com as pernas cruzadas sensualmente. Acendeu um cigarro e perscrutou o ambiente. Um negro baixo e atarracado, sentado num terceiro banco à sua esquerda, olhava fixamente em sua direção. Lena notou, pelo volume da camisa, que ele trazia um revólver na cintura. Em seguida o homem levantou-se e foi em sua direção. Lena descruzou as pernas, abrindo-as ligeiramente, para que o negro pudesse ver sua calcinha branca. Continuou fumando com ar provocador; consultou o relógio furtado em uma relojoaria chique da cidade. Faltavam quatro minutos da hora marcada. Repentinamente o negro desviou da sua direção e desapareceu por um corredor.
     Lena ainda não havia notado. Ao erguer os olhos constatou que o número 15 da rua Amadeu C era o endereço do Pronto Socorro Policial. Ambulâncias entravam e saiam, trazendo pessoas mutiladas e transferindo feridos para outras unidades hospitalares. O Pronto Socorro só atendia a casos de urgências. Alguns policiais passavam e a observavam ostensivamente, até que às dezessete horas e trinta e cinco minutos, em ponto, o negro atarracado retornou, pedindo para que ela o seguisse discretamente. Ambos entraram em uma das ambulâncias estacionadas no final do corredor, um local sem movimento. Dentro dela encontrava-se um homem muito branco, “um macarrão de hospital”, diria Lena mais tarde, usando um óculos escuros e um boné preto. Em seguida, o homem branco ligou o motor e colocou a ambulância em movimento. Após rodarem cerca de vinte minutos, passando por diversas ruas que Lena não conseguir identificar, o motorista estacionou o veículo debaixo do viaduto da Av. Contorno, próximo da rodoviária.
   - Agora preste muita atenção – disse o negro atarracado, saindo do silêncio e entregando-lhe uma sacola de plástico da loja Nova Brasília, com algo dentro. – Aqui dentro desta sacola tem uma mercadoria embrulhada num papel de presente, para você entregar a alguém. Muito cuidado, pois este presente vale mais que ouro. É um trabalho simples, pelo qual você será bem compensada. Não abra o pacote.
      - Quero pelo menos a metade em adiantamento!
      - Fica fria. Por enquanto quem dá as cartas somos nós. Depois da tarefa cumprida, você receberá sua parte. Preste atenção nas instruções e guarde tudo nesta cabecinha, pois não há anotações. Dentro desta sacola tem duas passagens de ônibus da Viação Cometa, para o Rio de Janeiro. Tem grana para as despesas. O ônibus vai sair às 22h45, uma passagem de ida e outra de volta, mas a de volta está sem data e horário. Ao descer na rodoviária do Rio um dos nossos estará à sua espera. Não se preocupe em identificá-lo. Tudo está arranjado. Ao vê-la, ele irá na sua direção, para abraçá-la e ao se abraçarem, cada um de vocês colocará suas respectivas sacolas no chão. Tudo muito rápido. Em seguida, após um breve diálogo, uma conversa mole, vocês trocarão de sacola, entendeu? Você pega a dele e ele pega a sua. Siga as instruções do nosso amigo carioca, tudo, inclusive sobre o seu retorno. Um táxi estará conduzindo você pelas ruas da Cidade Maravilhosa, por um bom tempo, até deixá-la em local seguro, onde você irá aguardar as instruções quanto ao retorno à nossa linda BH, certo? Mas, muito cuidado, muita atenção.Vamos hospedá-la em um hotel aqui perto até chegar a hora do embarque. Você só pode sair do quarto na hora do embarque. Fique ligada, temos espiões observando o movimento, não tente fazer nada além das instruções. Tome este revólver para o caso de uma eventualidade, sabemos que você sabe usar, mas, nada vai acontecer.
     O motorista ligou o carro e seguiram rumo ao hotel. Lena olhava para os lados com receio de encontrar algum conhecido. Mesmo numa cidade com mais de dois milhões de habitantes, nesta hora sentia-se rodeada de conhecidos que poderiam vê-la em companhia sabe-se lá de que tipos. Sentiu uma dor na mão direita e só então percebeu que apertava com força a tranca da porta do carro. Ao chegar no hotel, não conteve o espanto:
   - Vocês chamam esta espelunca de hotel? Isto aqui sim, desperta suspeita! Parece mais um esconderijo de mendigos. Vocês são burros, desorganizados.
     - Fica na miúda, garota. Está tudo sob controle. Por acaso a belezinha estava pensando num hotel cinco estrelas? Para fazer faxina até que você consegue. Preciso repetir as instruções? Um último aviso: faça a coisa certa e ninguém sairá ferido. Quanto ao hotel, pode ficar sossegada, apesar da aparência, o ambiente é da melhor qualidade, a sua aparência sim, está pra lá de Bagdá. Quem sabe, um dia, quando tiver a confiança do “chefe”, você poderá ficar num hotel três estrelas, porque de cinco, só a chefia. Quanto à sua irmã, ela está em um local seguro, juntamente com seus filhos. Sabe como é, seguro morreu de velho. Boa sorte!
    Lena não respondeu. Pelo menos por enquanto a sua vida e a dos meninos estavam seguras. Faria tudo com muita cautela, pois estava no fio da navalha. Entrou no hotel, ouvindo o ronco do motor da ambulância que saiu em disparada, com a sirene ligada. Subiu as escadas de madeira corroídas por cupins e com o verniz desbotado. Ao se aproximar da recepção, que ficava no segundo andar, foi atendida por um funcionário, que cochilava atrás de um balcão sujo. Lena tocou com os nós dos dedos no balcão e o funcionário esfregou os olhos preguiçosamente, entregando-lhe a chave do quarto com um leve sorriso cúmplice, como se ali estivesse apenas para cumprir esta tarefa. Lena puxou a chave com força e foi para o quarto. Não queria perder tempo conversando com um membro idiota da quadrilha. Acendeu um cigarro e sentou-se na cama, observando a sacola com o embrulho dentro. Conferiu as passagens e o dinheiro das despesas: dez mil em notas de cinqüenta! Seriam falsas? Encostou-se na cabeceira da cama, fumando e olhando a sacola. Durante um longo intervalo, não conseguia desviar o olhar do estranho pacote. Levantou-se, andou de um lado para o outro, em seguida, caminhou até a janela e olhou pelas frestas. Lá fora, um trânsito agitado ditava o ritmo da cidade. Belo Horizonte crescia assustadoramente, não era mais a cidade do final dos anos sessenta, cantada em prosa e verso pela amiga Ane e que as pessoas podiam sair à noite, andar tranqüilos, subindo a rua Bahia, frequentando os barzinhos do Maleta. “O golpe militar de 64 fodeu com tudo”, dizia sua amiga e confidente. Coçou a cabeça e jogou o toco de cigarro no chão, amassando-o com a sola da sandália, uma Azaleia surrupiada na Elmo. Tirou a roupa e ficou só de calcinha. Como sempre, não estava de sutiã. Aproximou-se de um espelho quebrado e observou o corpo algum tempo.
     Puxou a bolsa para perto e retirou o embrulho, virando-o de um lado para o outro, examinando. Balançou-o levemente, mas, não dava para adivinhar o que era. Havia algo compacto. Por quê não abrir? Olhava e pensava. Sacudia o objeto, levantava, olhava a janela. Voltava ao pacote depositado sobre a cama. Estava curiosa, mas com medo. Não, melhor deixar pra lá. Acendeu outro cigarro e encostou-se no catre, pensando. Alisava o corpo enquanto fumava e pensava. O tempo passando. Havia um banheiro apertado, com toalha e sabonete. Aproveitou-se para tomar um banho e enquanto esfregava o corpo pensava nas crianças. Onde eles estariam neste momento? E a mãe, não estaria bêbada? Viu-a nitidamente pedindo ao vizinho cinqüenta centavos para comprar pinga. E o Cássio, o grande amor de sua vida, o que estava aprontando? Estava ao lado da outra. Nem ao menos nas crianças o desgraçado pensava. Não mandava grana, um presente, um bilhete. Não lembrou do aniversário do filho. Ah os pais! Não são como as mães, que jamais esquecem os filhos. Os homens são egoístas, machistas. Uma mãe jamais abandona um filho. Lena pensava, Lena tocava a vida. Saiu do chuveiro enxugando o corpo.
     - Não é hora de ficar pensando nestas coisas. O melhor a fazer é cumprir esta tarefa e receber a recompensa. Que se dane o mundo – disse Lena a meia voz, atirando-se sobre a cama.
    Acordou assustada e foi até a janela. A cidade estava toda iluminada. Esqueceu-se de olhar e relógio, enquanto vestia a roupa depressa. Apanhou a sacola e saiu apressada. Ao passar pela recepção, o funcionário chamou-a:
       - Onde você vai?
       - Quantas horas são?
    - Fique tranquila, pode voltar ao quarto, ainda faltam meia hora. Pode até tirar uma soneca, na hora certa eu te chamo – concluiu o recepcionista num flerte despudorado.
“Filhos da puta”, disse Lena em pensamento. Contudo, olhou o recepcionista e sorriu sensualmente, levantando discretamente a saia, deixando a calcinha aparecer rapidamente.
- Meia hora é tempo suficiente para nós passarmos momentos de intenso prazer, mas, pelo que vejo, você está de serviço, e eu também, portanto, não vamos correr risco, certo?
Voltou ao quarto balançando os quadris sob o olhar de desejo do bandido.

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   Lena desceu na rodoviária do Rio de Janeiro, que estava entupida de pessoas andando de um lado para o outro. Tudo correra conforme o planejado.Entregou a sacola e pegou outra, recebendo instruções para voltar a Belo Horizonte no primeiro horário. Foi recebida na rodoviária de BH pelo mesmo negro atarracado, que disse a ela para ficar com o troco da viagem e que dentro de quinze dias ela seria procurada para receber pelo trabalho.
Voltou ao velho beco e ao seu cotidiano com os filhos e a mãe bêbada. Ao abraçar os filhos, disse que tivera de passar duas noites fora, por causa da patroa, que precisou da sua companhia. Mas, que não gostou do emprego e não voltaria mais lá.Comprou alimento com fartura e uma mesa nova com cadeiras, material escolar e uma televisão de vinte e nove polegadas.
     - Mãe – gritou o menino – quando é que nós vamos passear no sítio do tio Pedro?
      - Que tio Pedro, menino?
      - O tio Pedro, mãe. Lá é bom, a Tina foi também.
    - Ah, o tio Pedro! Tinha até me esquecido. Qualquer dia a gente vai passear lá.
       À noite Lena foi até a casa da amiga Ana e contou tudo.
       - Eu sei o que você levou – disse Ana calmamente.
      - Eu não quis saber. Pensei em abrir o pacote, mas desisti. Tive medo, achei melhor seguir a orientação, até porque, poderia rasgar o lacre, eles descobrirem e aí, não sei o que poderia me acontecer. Os meninos estavam reféns deles, Tina também.
      - Você fez bem, só que agora o Brasil inteiro está sabendo. Passou no Jornal Nacional.
     - Vira esta boca pra lá! Não me assuste, pois fiz parte deste negócio, sem querer. Se a Polícia Federal investigar, chegarão até a mim e estarei no pau da goiaba. Até um revólver eles me deram, mas devolvi.
      - Não se preocupe, você está fora de perigo. Pelos menos em relação a este tráfico. O seu perigo agora é outro. A falta de perspectivas, mas você tem fibra, tudo vai dar certo.
      - Mas, conta logo, o que passou no jornal Nacional?
    - É o seguinte: uma alta funcionária do Ministério das Relações Exteriores foi presa ontem pela Polícia Federal, quando embarcava no aeroporto internacional do Galeão com dois quilinhos do pó branco.
      - E daí?
      - E daí que se tratava de dois quilos de cocaína. É pouco ou quer mais?
     - Você está querendo me dizer que o que eu levava era esta mercadoria apreendida?
     - Não tenho a menor dúvida. Tudo que você contou bate com o noticiário. A pessoa que você entregou a mercadoria na rodoviária do Rio, quer dizer, a cocaína, esta pessoa tem as mesmas características descritas por você. Ela agora é famosa, foi vista em todo o País, através do Jornal Nacional. Mostraram até a sacola da Nova Brasília.
   - Não é possível! Ou escapei por pouco, ou estou ferrada – disse Lena assustada.
    - Acho que não. O cara se suicidou, ou suicidaram ele. Segundo a polícia, somente ele poderia levá-los a outros membros da quadrilha – disse Ane em tom conciliador.
    - Mas, e a marajá do Ministério?
   - Ora, minha amiga, ela é filha de General Cinco Estrelas. Algum dia, neste país, alguém da elite foi preso por qualquer crime? A meu ver, as coisas ficam assim: a Polícia Federal flagrou a funcionária, que vai alegar que não sabia o que estava levando, assim na maior cara dura. O outro morreu e não deixou pistas. Como a funcionária do Ministério não pertence à raia miúda, trata-se de gente fina, as investigações se encerram. Quando o repórter perguntou a serviço de quem ela estava, ela respondeu, fazendo caras e bocas de que não sabia como aquilo fora parar em sua bagagem. Nestas alturas, não haverá ninguém esperando por ela no aeroporto de New York. Elementar. Poderá até responder a algum inquérito, que será arquivado por falta de provas. Podes crer, morre aí. Quem vai se interessar em denunciar o alto escalão do governo de envolvimento com o narcotráfico? Algum membro da oposição, em busca de holofote, poderá pedir a instalação de uma CPI, que não conseguirá o número de assinaturas necessárias. Finalmente, a imprensa não falará mais do assunto e tudo fica como antes no Quartel de Abrantes. Até que um novo escândalo surja. É assim, simples como caldo de galinha.
   - E a recompensa que estes vagabundos ficaram de me dar?
  - Não vai ser desta vez e é até melhor. Você saiu desta viva e ainda sobrou um troco. Agradeça a Deus minha amiga.
   - É verdade. Até que agi com calma, mas, só eu sei o que passei.
  - Que bom ter você aqui com a gente, construindo o futuro – disse Ana, abraçando Lena. - sã e salva, linda e maravilhosa, cheia de luz. Ainda vamos acender muitas velas, juntas – completou Ane, sorrindo.
   - Sem grana, desempregada – respondeu Lena com um misto de ironia e tristeza.
   - Pára com isso. Você é forte, tem seus filhos para criar e um sorriso bonito. Cadê aquele sorriso?
     - De rocha, vamos à luta – respondeu Lena animada.

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   Lentamente a noite chegou.Lena caminhava tranqüila, observando a rua e o beco. No céu as estrelas cintilavam um brilho azulado. Sentou-se sobre o amigo meio fio e acendeu um cigarro, deixando crescer na ponta a cinza, enquanto pensava. Sua cabeça estava confusa em meio a tantos acontecimentos. Trabalhadores cansados voltavam aos seus lares, para repousar seus corpos e recomeçarem no dia seguinte a monotonia. Respondia maquinalmente aos cumprimentos dos conhecidos. Seu olhar percorria como câmeras o local e, do ângulo em que estava via pedras e algumas cascas de laranjas atiradas no beco, seu velho beco sem saída. Olhando as plantas com mais atenção, observou que a roseira dava os primeiros botões. Mais adiante despontava um pequeno buquê de flores azul lilás. Esboçou um sorriso de contentamento. Lá do fundo do beco vinham vozes, gritos e um samba de Martinho da Vila. Uma vizinha gritava com os filhos. Com mãos mágicas aguou as plantas, sentindo o cheiro bom de terra molhada. Quando a última gota do regador caiu, Lena ergueu os olhos e viu um carro estacionado a uns cinqüenta metros da entrada do beco. Um moço trajando uma jaqueta jeans desceu, batendo levemente a porta do carro e ficou encostado no capô, acenando-lhe. Era um rapaz de cabelos longos, loiros e de físico atlético. Assim que ela caminhou em sua direção, ele retirou de dentro do bolso da jaqueta, com uma expressão feliz, um embrulho envolto em um papel colorido, balançando no ritmo suave dos passos de Lena.


 

Apresento-lhes meu último lançamento: A Moça do Violoncelo (contos de suspense) e Estrelas (poemas). Dois livros em um. Duas capas com orelhas, papel laminado, 176 páginas por R$25,00 (frete incluso). Aos interessados, façam contato. Obrigado.