A Cidade dos Esquecidos (Capítulo 1: Desesperanças e Subjetividades Abstratas)

Alexia despertou-se às onze horas da manhã, e junto com ela o desafio de escolher entre ir beber água para matar a sede e abrir mão do conforto de sua cama aconchegante, ou aproveitar mais alguns minutos entre as cobertas, com a garganta seca. Mal havia acordado e a vida já lhe forçava a fazer escolhas dolorosas. A menina decidiu então que não iria escolher. Fechou a cara e mostrou o dedo do meio para o ventilador de teto, como se ele fosse a representação física da vida, do universo e tudo mais.

O ventilador de teto, no entanto, permaneceu ali calado e imóvel. O aparelho não sabia que Alexia não queria ofendê-lo, e não sabia do contrário também. Mas Alexia virou-se para o lado na cama, aconchegando-se debaixo das cobertas e abraçando seu travesseiro fofo, sabendo que a vida havia percebido sua indignação. Mas a vida costuma ser silenciosa e orgulhosa demais para reagir às revoltas obscenas e inocentes de uma menininha de nove anos de idade.

Ela ficou mais alguns minutos na cama, mas não conseguiu imergir no mundo dos sonhos, pois lhe foi vetada a entrada no reino do sono. Imaginou, indignada, que até mesmo os deuses Hipnos e Morfeu estariam de complô em conjunto com a vida. Prometeu a si mesma que repetiria o gesto obsceno dirigido ao ventilador, pessoalmente aos deuses do sono e dos sonhos, naquela mesma noite. Não sabia muito bem como os encontraria, mas estava decidida a dar um jeito. Mas antes que pudesse dar início a algum tipo de plano um pouco mais conciso, sua mãe bateu à porta.

- Bom dia, meu amor. - disse-lhe a mãe, pondo somente a cabeça para dentro do quarto, através da porta que entreabriu.

- Oi mãe, bom dia. Dormiu bem? - resmungou a menina, de costas para a mãe, mas de frente para a janela com as cortinas fechadas.

Raios de Sol invadiam seu quarto pelas frestas que contornavam a cortina. Vazavam pelas molduras quarto adentro, deixando Alexia ainda mais desanimada. "Eu não convidei a luz do Sol. A natureza é muito intrometida", refletiu a menina, enquanto sua mãe dizia qualquer coisa que as mães sempre dizem pela manhã.

- Então não se demore, menina. - terminou a mãe, jogando essa última ordem com certa docilidade, lá da escada.

Mais tarde, durante o almoço, Alexia tomava seu café da manhã. Colocou algumas tangerinas no pão com manteiga e alternava mordidas no sanduíche incomum, com goladinhas do achocolatado com leite. Seus pais, Nícolas e Ana entreolhavam-se e entreviam-se, um a revirar os olhos enquanto o outro balançava a cabeça em desistente desaprovação. Sem olhar e nem ver, Alexia torcia os lábios e fazia pouco da desaprovação que já sabia partir deles. Entretanto, foi só por extremo orgulho que Alexia conseguiu engolir metade daquele sanduíche experimental intragável. A outra metade ela disse que guardaria para mais tarde.

Nícolas terminou seu bife com fritas, despediu-se da família, ajeitou a gola do pijama e retirou-se para o trabalho. O pai de Alexia era escritor mau sucedido e trabalhava de segunda à sexta no escritório do terceiro andar. Alexia, na verdade, quase nunca via seu pai durante a semana.

- Amor! - chamou Ana.

- Que foi? - perguntou Nícolas, irritado, pois considerava-se atrasado. Sua noção de horário era ditada pelos ponteiros afiados de sua ansiedade infinita e descontrolada.

- Seus chinelos!

- Ah, sim. Obrigado. - Nícolas voltou apressadamente, vestiu nos pés os chinelos e foi-se embora. Deixando para trás um "beijo tchau" ligeiro.

Alexia levantou-se, também apressada, despediu-se da mãe e foi para o quintal. Ana permaneceu à mesa, olhando o resto do sanduíche de tangerina largado no prato da filha, e assistindo os passos apressados do marido sumirem no topo da escada.

- Tal pai, tal filha. - suspirou Ana.

Alexia saiu para o quintal, e somente quando respirou fundo no ar livre daquele princípio de tarde, é que percebeu como se sentia sufocada dentro de casa. Olhou para o quintal com os olhos semi cerrados, por causa da luz do Sol. Ouviu pelo menos três tipos diferentes de canto de pássaros. Escutou o som de papel que as folhas nas copas das árvores faziam ao se esbarrarem, em sua dança desgovernada no todo, mas ritmada no individual. O som mais forte vinha da grande árvore no meio do quintal, do lado do laguinho. Sentiu o vento lhe balançar levemente a blusa e os cabelos compridos e dourados, ainda mais cintilantes ao serem tocados pelo brilho do Sol, que piscava através das folhas dançantes da copa da árvore. Percorreu os olhos pelo quintal espaçoso que tinha à seu dispor, começando da esquerda e deslizando até a extrema direita. Iniciou o breve tour tocando com o olhar a superfície do lago revolto pelo vento, com pequenas ondas radiantes e prateadas, como prata líquida. Depois, passou os olhos rapidamente pela grama cortada e a grande árvore, deixando o olhar cair dramaticamente sobre o pequeno cemitério com uma lápide, num canto psicologicamente sombrio do quintal.

Enquanto o vento, que era seu amigo, de espírito sorriu e de humor multiplicou a força para soprar, sobretudo, a pequena criatura loira de pé na varanda. Alexia cerrou por completo os olhos verdes e vivazes, ergueu o queixo e quase abriu os braços para a liberdade que o dia prometia e para a beleza que a tarde escondia por detrás de suas pálpebras incógnitas. Do lado de dentro de suas próprias pálpebras, por detrás de seus olhinhos vivazes. Em algum lugar oculto de seu cérebro racional, nos confins de seu subconsciente infantil, algum tipo de desesperança subjetivamente abstrata adormecia, mas ameaçava despertar a qualquer instante.

Ulisses Alves
Enviado por Ulisses Alves em 20/11/2015
Código do texto: T5455031
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