O rapaz das duas cabecas (continuacâo)

Aba e Beno

Quase que adivinhava que iria ser um dia como outro qualquer . O despertar, esse, era sempre o mesmo.

Uma pequena alteração da consciência e o ligeiro vestígio da presença da luz que se espremia por entre as cortinas de risquinhas azuis. Era sempre assim; primeiro era a visão que abria caminho; de seguida viria o olfacto.

O odor do seu próprio corpo aquecido por camadas de lençóis e cobertores; a sugestão de cheiros do pequeno-almoço que tinham pacientemente rastejado pelas escadas da cozinha para o primeiro andar.

Café, leite quente, torradas, ovos e compotas, tudo embrulhado na gordura do bacon.

Por ultimo e invariavelmente, a audição. E com esta, o ressonar colossal do idiota que dormia ao seu lado.

De estranhar ser sempre este o ultimo sentido a ganhar vida. Até porque a causa do ronco residia a uns meros quinze centímetros de distância do seu ouvido direito e era constantemente acompanhado pela saraivada de saliva em forma de borrifo.

Aba suspeitou sempre que isto não era uma casualidade; era sim a forma macabra da natureza desfrutar da sua condição.

Dava-lhe sempre uns primeiros momentos do dia para ele imaginar como poderia ter sido; para depois esbofeteá-lo com aquilo que era.

Voltou a cabeça para o seu lado direito e com este gesto deslocou a causa do ruído de uma distância segura de quinze centímetros para uma perigosa proximidade de cinco.

Levantou o máximo possível a cabeça da almofada, movimento que não era feito sem esforço, mas que a repetição ao longo dos anos o tinha elevado ao nível de mestre.

O inicio da manhã principiava com um costume de quase seis anos. Aproximou a boca do ouvido direito de Beno e gritou o mais alto que pode – Acorda idiota, ranhoso… besta...

Já a algum tempo que suspeitava que esta rotina tinha ensurdecido completamente o lado direito de Beno; mas os possíveis remorsos não apagavam a satisfação das pequenas vinganças.

Mas vingança do que? Beno tinha tanta culpa de ter crescido aconchegado ao seu ombro direito, como ele tinha culpa de estar alojado sobre o ombro esquerdo.

A outra parte de si acordou com o bocejar habitual dos grandes brutos felinos; um enorme esgar de boca, um derradeiro ronco profundo e a última surtida da baba a escorrer pelo canto da boca.

E a comparação com qualquer animal mais nobre acabava ai.

- Tenho fome, queres comer? Já acordaste? – Ai estava Beno em toda a sua graça e incoerência, patético e sobretudo incomodativo.

Cala-te, por favor – Era indiferente a forma como falava com ele. Beno tudo desculpava porque nada percebia.

Aba continuou deitado, a olhar o teto. Absteve-se do contínuo debitar de palavras que vinha do seu lado, era um truque antigo que vinha a polir desde tenra idade.

De outra forma era impossível manter uma linha de pensamento; supunha que seria assim que muitas pessoas caminhavam na rua, se comportavam no trabalho e existiam na vida. Abafando os ruídos de fundo, ignorando e enfraquecendo todos os sons até só existir uma ligação directa a sua própria cabeça. O problema era que ele tinha duas.

Beno estava sempre mais palrador no inicio do dia. A alegria que demonstrava sempre que acordava era contrastante com a melancolia que normalmente Aba sentia. Só mais tarde durante o dia é que as emoções se equiparavam, havendo mesmo por vezes diálogos coerentes entre as duas faces.

Dialogo que só poderia existir entre os dois. Embora Aba falasse fluentemente a sua língua materna, Beno desde o primeiro dia que conseguiu falar, só se expressava numa mistura improvável de kwadi e hebraico.

Só Aba e uma mão cheia de eruditos linguísticos o entendia, mas ele era o único que conseguia manter uma conversa em tempo real com a sua outra cabeça. Não que ele quisesse falar muito com Beno; aliás… o que ele não queria, era mesmo uma outra cabeça.

Tinha-lhe sido imposto aquele estigma, aquela invasão num corpo que era dele.

Beno era um passageiro muito pouco clandestino, uma caricatura do que ele era e a razão para não poder ser mais.

-Bom, mas tu levantas-te ou tenho eu que sair da cama? Quero pão hoje, pão e leite…e tu vais comer o que? Eu comia também salada, mas a salada faz-me fome – E continuava assim durante muito tempo ou até Aba os levantar aos dois.

Apesar das óbvias diferenças, os costumes matinais dele eram comparáveis aos hábitos de todos os outros jovens de dezassete anos.

Urinava, lavava a cara, penteava-se e escanhoava os poucos pelos da face, que orgulhosamente persistiam em aparecer todos os dias. Fazia-o em frente de um armário de casa de banho com duas portas espelhadas. A porta do lado direito abria-a sempre para não ter que olhar para o outro. Não exigia muito tempo tratar também de Beno. Era imberbe e o cabelo curto não crescia um milímetro de comprimento desde os seus seis anos. Para além da estranheza do seu caso ainda havia os mistérios pessoais de Beno.

A única cortesia que lhe condescendia era a lavagem dos dentes. Com outra escova e alguma destreza, porque Beno só muito dificilmente evitava a tentação de morder e engolir as cerdas do utensílio, acabava a higiene da manhã a limpar os cantos da boca do outro com a toalha húmida.

Vestiu-se. As calças largas que gostava, com muitos bolsos e um tom de cinzento que sempre lhe fazia lembrar o inverno, os ténis brancos já bem roçados a frente e uma das t-shirts especiais propositadamente feitas por um dos gigantes do ramo têxtil. Nunca lhe faltou este tipo de roupa.

O seu caso tinha despertado abundantes atenções, simpatias e embaraços desde o primeiro dia que tinha sido encontrado. De quando em vez voltava a ser noticia, nada de grande como já tinha sido em tempos, mas havia sempre algum pseudo jornalista ou romancista interessado em procurar um novo ângulo da história; algo com substancia e atulhado de humanidade.

Aba detestava este tipo de exposição, mas no entanto compreendia os benefícios que acarretavam. O que não o impediu de deliciar-se numa outra ocasião em que Beno começou a cuspir sem parar para o casaco de um jornalista de pasquim, que teimava em ligar a sua aparição com a aceleração da erosão da pirâmide de Gizé.

De qualquer forma, tinha recebido vários donativos de toda a espécie; a maioria por interesse publicitário, outros por piedade despropositada (do género que afronta bem mais do que ajuda) e alguns, poucos, de pessoas que sem tentar compreendê-lo queriam simplesmente ajudá-lo nas pequenas contrariedades diárias.

Houve alturas que se tinha sentido mais ligado ao seu “irmão”, talvez por hábito, talvez por piedade houve momentos, quando olhava de esguelha para a cara de Beno ou apanhava o seu reflexo em qualquer superfície, sentia até uma espécie de carinho. Nunca houve amizade nem confidencialidade; a situação já era o suficientemente aberrante sem ele tentar fazer de “B” o seu melhor amigo.

Também não existia um verdadeiro ódio, era mais um desconforto. Todos podem aprender a viver com algumas pequenas ou grandes deformidades. O pé chato, a queda precoce do cabelo, o quisto que resolveu desenvolver bem no meio do nariz; mas esta deformidade era excepcional em todas as formas. Não era algo abstracto e fácil de relacionar com a má sorte. Era algo vivo, palpitante que era parte dele, mas tão estranho como uma célula anómala.

Mas tal como já foi dito, houve uma altura ao inicio, que Aba pensou que a sua existência ainda poderia ser viável dentro de um parâmetro de normalidade alongado ao máximo.

Descobriu que isso não era possível. Nem sequer era o escárnio e a aversão que encontrava amiúde nos olhares de estranhos, não era a sua imagem grotesca que se reflectia em todos os espelhos; era o sentimento que a situação era uma piada soturna e sádica. Não o tinha merecido, não o tinha pedido, não o tinha imaginado, mas ali estava ele – Beno – a sua outra cabeça.

Faltavam duas semanas para completar os dezoito anos, catorze dias para a maioridade e faltava esse mesmo tempo para a concretização do plano.

O plano era simplesmente chamado assim – Plano – e aquela palavra embalava toda a sua esperança para ser normal.

Mas antes do plano, vinha o pequeno-almoço. Desceu as escadas para a cozinha, tentando não pensar muito por enquanto na tarefa a que se iria doravante dedicar de toda a vontade.

Tinha fome e de manhã tinha normalmente as guardas dos sentidos em posição de repouso. Beno pareceu adivinhar o momento perfeito, e de inesperado gritou - Olha ali, rápido! – Mesmo antes de voltar a cabeça já sabia o que vinha de seguida. Lesto, o outro, enfiou-lhe a língua na orelha direita.

Era a sua partida preferida, e uma das mais desvairadas.

Maldito fosse, o imbecil. E foi assim que um Aba muito taciturno e o Beno a rir as gargalhadas chegaram a cozinha.

O método era sempre o mesmo e já há muito afinado. Dois pratos, duas taças. ‘A’ era ambidestro, outra das curiosidades que parecia propositada para perpetuar o bom avanço desta relação forçada. Com a mão esquerda alimentava-se e com a direita despejava a comida na boca aberta de ‘B’.

No inicio, foi uma forma de se emancipar da ajuda dos outros, o que muito lhe agradou. Não era simples, mas a forma de comer de Beno ajudava. Ele engolia quase sem mastigar, bebia qualquer líquido de um trago só, e quando lhe picava a língua ou os lábios ele ria alto, divertido com a dor.

Até essas pequenas desforras ele lhe conseguia tirar. Com o passar do tempo o processo era quase instintivo e corria na sua generalidade bastante bem. Agora era raro não comer simplesmente em silêncio. Se é que se podia falar de silencio com o ruminar estrepitoso de ‘B’.

Enquanto bebia o café com leite ia pensando… no plano e em tudo o que o tinha levado a formula-lo, todos os pequenos e grandes acontecimentos encadeados que representavam o desfecho final.

Os lares e famílias especiais, os magotes de médicos, especialistas e semi-especiais, os matemáticos e curandeiros que tinham desfilado pela periferia da sua vida sem terem chegado nem perto de uma solução ou sequer de uma explicação para o “milagre”.

‘A’ e ‘B’ foram encontrados na porta de uma sinagoga – ou talvez seja mais exacto dizer que ‘A’ foi encontrado com ‘B’ solidamente agarrado a ele -. Lugar-comum e de mau gosto e aparentemente o preferido de todas as parideiras desesperadas que assim abrem o simbolismo da existência, entregando os pimpolhos mal desejados a guarda de Deus, o grande pai. Se não houvesse um lugar de adoração por perto, a lixeira ou o esgoto eram igualmente eficazes. Afinal como simbolismo não há melhor - És lixo e ao lixo voltas, disse o Senhor -

A Sinagoga da zona não tinha qualquer singularidade de realçar, e não tendo estes lugares sagrados a mesma conexão com órfãos desamparados que tem uma igreja católica, nunca foi bem entendido o propósito ou a motivação da escolha.

Talvez o responsável por descarregar semelhante fardo tivesse enlouquecido com a visão de tamanho aborto e este facto poderia perfeitamente ter-lhe ensombrado o entendimento. Ou cansou-se simplesmente de o transportar. Nunca se saberá.

Foi encontrado pelo Rabino como se seria de esperar. O pobre homem não era exactamente o sinónimo da iluminação espiritual e a sua escolha de profissão tinha sido mais da responsabilidade do destino e do infortúnio do que de um acto de livre arbítrio. O seu conhecimento sobre os ensinamentos do Halacha era a sua única aptidão, fazendo disso ao contrário de muitos outros Rabinos, a sua ocupação a tempo inteiro. O que ele viu nessa manhã no entanto mudou a sua existência para sempre; pode-se mesmo dizer que aquele momento correu o risco de mudar até a cor da sua roupa interior. De religioso medíocre para crente fervoroso. E crente nas mais variadas religiões. Por certo que seriam os cristãos a estarem certos no seu conceito de céu e inferno. Porque “aquilo” só poderia ser proveniente de um abismo profundo onde habitavam criaturas infernais.

Nunca teve a audácia para pegar no fardo, nem tal ideia avaliou. Em contrapartida teve os reflexos suficientes para iniciar a correr na direcção oposta o mais célere possível.

Deve-se a mais um caso da fortuna ter enveredado pela rua da padaria local. Padaria muito convenientemente pertencente a um dos crentes, e por sinal o único lugar com sinais de actividade aquela hora apagada da manhã.

O Rabino não explicou a situação ao padeiro nem a mulher deste. Estava receoso que afinal nem tivesse visto bem. Talvez fosse um boneco ou um animal exótico, talvez nem estivesse lá nada.

Em vez disso pediu auxílio para um assunto importante. Sem dar pormenores quase que carregou a mulher do padeiro pela viela de onde tinha vindo. Arrastou, é o termo certo, a matrona já bem entrada nos anos era também bem fornecida no peso.

Quando os dois chegaram ao pé do embrulho, o Rabino mais uma vez nada disse. Sobe o mirar inquisidor da mulher apontou com o olhar para o fardo que jazia sobre o terceiro degrau.

Ela pegou-lhe de imediato e de imediato levantou uma ponta da coberta. Pois… ali estava ele, o coisinho acabadinho de sair de do terceiro ou quarto nível do inferno.

-Oh, coitadinho…que peninha, vejam só…e a maldade das pessoas, abandonar a criaturinha –

O Rabino avançou um pouco para ver melhor. Pronto, estava explicado; pela voz da velha senhora era agora obvio que era só um bebé. Acontecimento de estranhar, um recém-nascido nas escadas, mas ainda assim muito menos estranho do que ele imaginava ter visto. Como lhe foi possível semelhante desvairamento? Visões ou alucinações nunca lhe tinham ocorrido. Em abono da verdade nem lampejos de imaginação atravessavam muitas vezes a portada semi-fechada do crânio.

Afinal o que ouvia dela eram palavras de admiração e de piedade, quando ele tinha esperado a todo o momento guinchos de pavor e repulsa. Que tontaria. – Ora deixa lá ver o pimpolho – E lá se aproximou mais um pé. E lá viu o “pimpolhinho”. E lá se pôs aos gritos.

Metade ainda coberto pela manta, metade já não. E o que se via era um corpito perfeitamente costumeiro à uma criança, com duas cabeças irrepreensivelmente perfeitas em cada ombro.

Com tanta coisa perfeita num corpo só, não havia motivos para tanta desordem.

Mas o Rabino, talvez dominado por uma educação mais eclesiástica ou por uma noite mal dormida, não compartilhava dos mesmos tipos de sentimentos que os da padeira.

- Vai, vai…tira-me já isso daqui - Já a porta, ainda tentou uma espécie de acto redentor. – Depois falamos. Olhe, chame alguém… a polícia talvez. Chame alguém que perceba disso.

O Rabino saiu assim da história de Aba e Beno. Nunca mais quis voltar.

Também não se vai arrastar muito a presença do casal de padeiros neste caso. Só são importantes na medida que são de alguma forma os causadores de todas as adversidades e algumas alegrias resultantes do simples facto da senhora se ter afeiçoado ao miúdo. Não ao miúdo verdadeiramente dito, mas a ideia de dependência. Ele dependia dela agora, naquele minúsculo tempo que a Terra leva a curvar, a sorte do embrulho poderia ter seguido uma miríade de alternativas.

Para alguém com bom senso, a única alternativa possível seria a de utilizar o excelente forno da padaria para outra coisa que não fazer pão.

Mas ela decidiu diferente. Levou-o para casa. Um deles, o que mais tarde viria a ser conhecido por Aba, mantinha-se de boca bem cerrada e com os olhos em igual condição; o outro, Beno portanto, sorria efusivamente e seguia todos os movimentos que se apercebia.

Mais tarde a senhora padeira confidenciou a um repórter que foi dele que ela mais gostou, e o que a fez tomar a decisão de ajudar a “criaturinha”.

Pode-se assim, deste comentário, extrapolar duas teses; a primeira é que foi efectivamente Beno o culpado de todos os padecimentos de Aba. A segunda seria, a de que a padeira estava a beira da senilidade perigosa.

Seja como for tratou dele na primeira noite. Desencantou, sabe-se lá onde, leite próprio para a criança, improvisou uma fralda de pano e tomou coragem para pedir emprestado um biberão a vizinha do segundo andar.

O marido impacientava-se com o atraso do trabalho na padaria mas com já tinha uma bagagem de desilusões impostas a mulher, achou por bem aturar aquele absurdo mais um tempo.

Não tinham filhos; culpa dele, que era estéril. A não ser quando bebia, aí já era culpa da mulher. E ele demonstrava-lhe matematicamente que era assim. Noutros tempos, de tanto utilizar a matemática para contar os golpes que lhe iam caindo no corpo, havia alturas que a padeira ficava um pouco estonteada.

Aguas passadas. Chama já morta. Adiante…Foi quando a altura de dar o leite que surgiu a duvida. – A qual é que dou primeiro? – Perguntou ao marido. – Sei lá… olha dá ao que esta a dormir, parece que precisa mais. Dás ao A e depois dás ao B, também não é difícil, porra.

Ela lá seguiu a sugestão. E daquele momento em diante começou a pensar “neles” como o A e o B.

De tal forma que quando os serviços sociais apareceram no dia seguinte ela tinha já costurado dois pedacinhos de pano à coberta com as iniciais sugeridas pelo padeiro.

E desta feição iniciou-se o surpreendente trajecto de A e B, que para começar tinham recebido o baptismo das mãos de uma padeira judia.

O Hospital

Os serviços de apoio social estavam encalhados. O dilema era simples de compreender, não tão fácil de concluir.

Os procedimentos não eram complicados. As crianças trazidas para as suas casas de apoio eram processadas por um perito com formação esmerada. Eram seguidamente encaminhadas para um tipo específico de habitação de acolhimento e de acordo com uma análise cuidada.

Eram depois mantidas dentro de um sistema que as protegia e acarinhava até ser encontrada uma solução mais duradoura ou até serem jovens autónomos e emancipados.

As bestas dos miúdos é que não colaboravam em nada. Não compreendiam a natureza sensível do trabalho dos assistentes e técnicos. Recusavam falar abertamente do que os afligia, ao ponto de se suspeitar que era só astúcia. Os jovens mais velhos traziam todos os tipos de maus vícios, hábitos duros de agressão e abuso de substâncias. Infectavam invariavelmente os mais novos ou os mais impressionáveis, apesar dos esforços de reeducação dos assistentes sempre vigilantes (Não fosse o caso de algum deles lhes roubar o monopólio).

As miúdas até se deixavam estuprar sistemática e metodicamente, num claro desrespeito as normas vigentes.

Aba infelizmente não teve direito ao apoio total dos serviços pelo simples facto que não se enquadrava em nenhuma categoria. Não era filho de toxicodependentes, não vinha de um lar violento, não fugia constantemente de sua casa e não tinha uma história de violência e desacato.

E nem Deus nem o diabo se viessem a Terra iriam mostrar a ousadia de modificar o formulário base de seiscentas e trinta e cinco perguntas tipo, redigido por peritos de variadíssimas especialidades, desde Sociólogos, Psicólogos, Pediatras, Osteopatas, Pedófilos, Sociopatas e Misantropos.

Não senhor, isso não. Seria o caos. O facto de ter duas cabeças nem sequer foi considerado. Em nenhum dos seiscentos e trinta e cinco quadrados, cuidadosamente alinhados a direita da folha e a preencher com cruz (sem sair da quadricula sff) vinha a pergunta – Quantas cabeças tem? –

Não foi isso que o eliminou na selecção. Mas havia um percentual que tinha que ser preenchido. Restava a incerteza se o sujeito em questão estava aquém ou além da curva da desgraça. Antecedentes criminosos; não. Uso de estupefacientes; não. Violência, prostituição, sintomas psicopatas, sociopatas ou distúrbios da personalidade em geral; não, não e não.

O facto de ter sido abandonado ejectava-o directamente para o campo dos elegidos. Segundo o paragrafo quatrocentos e doze da alinha C do código de integração social, os sujeitos sem meios de sustento próprio e ainda a necessitar de cuidados de neonatologia (a contradição de termos nunca preocupou os responsáveis pelo documento) encabeçavam a lista dos preteridos que careciam de protecção da sociedade.

Caso fechado. Ou não seria? Não bastava entrar para a lista. Era necessário igualmente recolher a pontuação necessária para inserção no escalão correcto.

Seria contraproducente misturar desgraças. Um sujeito carenciado de afectividade não era tratado de igual forma que outro que necessitava somente de disciplina. Seria como triturar carne para hambúrgueres com um garfo. A máquina social tem as lâminas e rodas dentadas para cada situação, nada de atrocidades por favor, afinal falamos de crianças.

O sujeito (no singular, porque ainda se estava a definir a quantidade) como já foi observado escapava aos habituais parâmetros de violência, abuso, mau-olhado etc., etc., etc.

Seria com certeza no campo das insuficiências corporais, aliado a posição de rejeitado, que iria estoirar a escala, disso tinha a certeza o examinador principal.

Ocorreu o impensável. O preenchimento de décima sétima folha do códex social rezava o seguinte:

“Ausência do membro superior esquerdo? ”, “Não”. “Ausência do membro superior direito?”,“Não” “Falta de aparelho reprodutor?”,”Não”…e por ai adiante. O maldito documento tratava de falhas, faltas, ausências e amputações, não referia rigorosamente nada sobre membros em excesso.

Lacuna que posteriormente viria a ser colmatada,embora não sem algumas deficiências. A adenda ‘A’ da página dezassete, integrada dois anos depois do relato destes acontecimentos, contemplava estes casos e questionava o seguinte:

“ Possui mais do que um membro superior?”,”Possui mais do que um membro inferior?”. Depois de este questionário preenchido escrupulosamente, verificou-se um aumento do envio de indivíduos vindo dos serviços sociais, para os serviços hospitalares. As respostas positivas as questões acima transcritas infelizmente auferiam uma pontuação negativa ao individuo escrutinado. O resultado do escrutínio obrigava a apresentação a junta médica de todos os indivíduos com dois braços e duas pernas. Esta situação foi rapidamente revista na adenda B, lançada dois anos depois da adenda A.

O embaraço parecia impossível de ser quebrado. Felizmente que a maquina social é apenas a parte cromada da outra grande maquina; a máquina estatal.

Alguém (veio-se posteriormente a reconhecer ter sido a senhora da cantina) propôs uma nova abordagem para o problema.

Poderia não ser um caso social, como era agora bem claro devido ao resultado das pontuações gerais, mas era claramente um caso médico. A não ser claro está, que existisse algum povo com duas cabeças em algum lugar arredado do globo terrestre, e ai passaria para a competência dos serviços de estrangeiros e imigração. Mediante uma pesquisa exaustiva efectuada por uma entidade idónea (para isso servem os motores de busca) foi concluído sem qualquer dúvida que o indivíduo não era pertencente a qualquer subcasta racial ou minoria étnica.

Seria os serviços de saúde pública, portanto. Imediatamente após aos respectivos suspiros de alívio e ao preenchimento do modelo do impresso seis do ‘Enquadramento para Transição de Serviços’, barra vinte e um, Aba e Beno foram por fim transferidos para serviços correctos.

Aqui, nos serviços de saúde, a simplicidade e transparência do assunto continuou na ordem do dia. As definições para a posição em que se poderia enquadrar ‘A’ e ‘B’ não eram tão herméticas como vistas a luz de um serviço de integração social.

Aba e Beno foram considerados apropriados a serem encaminhados para uma miríade de institutos de especialidades médicas. As mais relacionadas e portanto as mais prometedoras, seriam as do “Instituto para o tratamento de cefaleias”ou o “Centro de cirurgia cerebral” ou até a própria “O.M.S”, uma vez que não estava de todo excluída a propagação da maleita do sujeito para a população em geral.

A escolha acabou por recair num muito obscuro “Hospital Eckart Axmann Drexler”. Esteve em igual oportunidade o “Hospital Albert Einstein” mas alguém, ou o acaso, concluiu que seria altura de deixar outro tipo de influências, que não as Hebraicas, tomar algum papel no destino do bebé.

Quem diabo poderia ter sido o Doutor Eckart Axmann Drexler, ninguém parecia saber. Em muitos dos documentos oficiais, a instituição vinha referenciada apenas pela sigla ‘H.E.A.D.’, e mesmo para o pessoal que lá servia era mais frequente referirem-se ao local de trabalho apenas como “O Hospital”.

Aba chegou ao Hospital desidratado, faminto e assustado. Beno chegou a sorrir.

A chegada do novo paciente despoletou uma vaga de interesse e azafama no pequeno edifício. Normalmente dedicado ao trabalho de pesquisa e recolha de dados, o estabelecimento raramente recebia pacientes vivos. E em nenhuma circunstância teve um caso de pacientes mortos, portanto o interesse era justificável.

Embora não seja imprescindível, è talvez importante esclarecer o genuíno trabalho realizado no edifício

Esclarecer será talvez o termo mais incorrecto. Insinuar e sugerir serão com toda a certeza as palavras mais honestas

O Hospital foi criado originalmente na Europa em 1940 para estudo e investigação de casos atípicos.

Nunca teve um trabalho muito relevante, limitando-se a algumas análises laboratoriais e principalmente a inventariação e catalogação de experiencias realizadas noutros locais afiliados. E talvez por isso ou por isso mesmo iludiu a atenção daqueles que nesse período inquiriam sobre instituições similares

Em 1945 por circunstâncias alheias a vontade dos seus responsáveis foi obrigado a mudar de localização continuando no entanto a gozar de boa saúde financeira, graças principalmente aos passivos acumulados nos últimos anos,

Não foi difícil restabelecerem-se noutro ponto do mundo, mantendo a quase totalidade do seu pessoal original

Mas o que sobrava em meios faltava em objectivos. Finalizada, que foi, a única imposição do seu trabalho que era a classificação de resultados, o intento do Hospital chegou a torpor completo.

Tinha chegado o tempo de enveredar por outro rumo e reencontrar propósitos.

E disso se encarregou com grande perícia o corpo administrativo da instituição.

Habituado a tratar com grupos governamentais e habilitado com a experiencia única adquirida no seu trabalho singular, o Hospital depressa conseguiu granjear clientes interessados em utilizar as suas facilidades, o seu serviço e principalmente a sua descrição.

Foi na realidade essa descrição que depressa se revelou uma mais-valia impar.

Velozmente passou da fase de angariação de prováveis interessados, para a fase de assédio por potenciais parceiros.

È no entanto exaustivo e despropositado relatar todos os passos e alterações pelas quais passaram até chegarem a esta crónica

Na época que Aba e Beno foram admitidos, o Hospital já tinha mudado de localização por diversas vezes até a actual. O seu propósito foi também várias vezes ligeiramente alterado. Os seus clientes mantiveram-se os idênticos mas as alterações em políticas e tendências resultaram obviamente em desvios a doutrina e razões iniciais.

Viviam agora tempos calmos e produtivos. Com uma função grandemente laboratorial, o trabalho de investigação, exame de dados e análises especializadas era a grande fatia do bolo dos afazeres quotidianos.

O seu grupo clinico era obviamente de grande gabarito, mas médicos e enfermeiras tinham contudo, a muito, sido remetidos para o lugar de analistas e secretarias.

Nenhum contacto com humanos e as suas potenciais maleitas era praticado aqui.

A única excepção foi o rapaz das duas cabeças. E essa excepção como iremos descobrir adiante deveu-se unicamente a teimosia e ao ego exacerbado do seu mais proeminente médico e membro da direcção.

E pela primeira vez, e talvez a única no tempo da sua breve existência, Aba foi desejado.

O Doutor Brando foi o médico assistente escolhido para observação e diagnostico do paciente. Rapaz bem formado, e vindo de famílias de tradições (e vícios) vigorosas herdou do lado da mãe a poça genética que lhe deu o requinte físico, e da parte do pai a estabilidade financeira e educação férrea com que percorreu o caminho do sucesso académico.Com sangue Sul-americano por parte materna e Europeu pelo lado do pai, expunha uma contrastante mistura de pele trigueira e cabelo aloirado. Foi graças ao seu progenitor que desde cedo lhe foi infiltrada a percepção que o mundo é dos fortes de espírito, e há obviamente uma linha divisora que deve ser mantida a todo o momento. Sendo uma pessoa despretensiosa, o bom Doutor atravessava muitas vezes essa linha e aplicava parte da sua força de espírito a espancar as prostitutas que alugava, devotamente duas vezes por semana. Como não abraçava inteiramente o padrão de segregação imposto pela família, não lhe importava o tamanho, idade ou físico do alvo em frente. Desde que gritassem com determinação, ficava saciado.

Quanto a sua formação como profissional, essa era claramente exemplar.

Bastou-lhe dois minutos de análise para avançar com um diagnóstico preambular.

- Hum … um caso de “Fetus in Fetu.”- Debruçou-se um pouco mais sobre o neonato. – Claramente uma derivação da condição “ Craniopagus Parasiticus.»- A sua entoação de voz era distintamente de desagrado e desapontamento. – Muito barulho por nada. – Suspirou.

O Doutor Brando tinha sido a energia motriz por detrás da transposição do recém-nascido. Intrigado com o assombro dos serviços sociais teria ficado convencido que estaria a braços com um novo tipo de mutação. Um que servisse para pôr a sua fisionomia perfeita, perfeitamente enquadrada por uma câmara de televisão.

A enfermeira a seu lado extasiava-se com a magnificência dos conhecimentos técnicos demonstrados pelo médico. Enquanto se extasiava, ia-se despindo mentalmente e amarinhando lentamente para a marquesa ao seu lado. A voz do médico fez-lhe fechar as pernas e voltar a realidade.

-Já imaginou como é que ficou a tipa que deu à luz isto? – Os bramidos imaginários da dor de parto de semelhante volume voltaram a dar-lhe um pouco mais de alento.

A enfermeira ouvindo esta análise, de alusão vagamente sexual, voltou a tentar trepar para a marquesa. – Ficou como Doutor? -Tentou ser mais óbvia. – Sabe que o que se faz por gosto…- O medico não lhe deu reparo. A voz da enfermeira era doce e branda. Devia gritar mal.

-Transfira isto para o “ Trio Dinâmico.”-Ordenou o médico –“ Não fará parte das capacidades desses três mentecaptos, mas eles tem muito tempo em mãos, de qualquer forma. – A enfermeira expeliu um delicado ronronar e apressou-se em direcção aos serviços administrativos.

Papas de Aveia

“Todos nascemos Deuses Gregos e a meio a vida tritura-nos em papas de aveia.”

O doctor Xalletano olhava para a frase escrita no autocolante do para-choques do carro.

As letras ja desmaiadas no fundo amarelo do autocolante com as pontas dobradas e já secas de cola tinham sabe-se lá porque, despertado a sua atenção ao ponto de fazê-lo parar.

Por um lado era facil de perceber o porqué. A personalidade taciturna e seria do doutor vivia sempre vigilante para este tipo de mensagens

Era reconfortante para ele saber que tinha razão. Que a vida era um peso a suportar e não uma davida exepcional. Dádiva de que? Ter a oportunidade de respirar, reproduzir, defecar e morrer?

Obrigado pela dádiva.

Não se poderia dizer que ele fosse uma pessoa deprimida, era em ocasioes até bastante afavel, não muito versado em artes sociais, mas ainda assim propenso ao sorrizo e a palavra amavel.

Mas ele compreendia que a ilusão que todos nos temos de ter um proposito e uma direcção, não passava disso mesmo, uma ilusão.

Ele conseguia reconhecer esta verdade em todas as pequenas trivialidades que durante o dia lhe esvoaçavam à frente

Minusculos anuncios da realidade. Historias que todos nos ouvimos, quase sempre sem encontrar uma ligação ou simetria.

O falecimento do canário do amigo, o sismo na asia, a extinção do peixe x, o desaparecimento de y.

Não havia razão para estas coisas acontecerem a não ser por uma simples razão. Nos não importamos.

Mas mesmo nada. Os nossos objectivos, sonhos, e concretizacões são devaneios ridiculos de nos proprios. Algo com que nos entretemos enquanto vivemos, sobrevivemos e esperamos para deixar de ser.

O doutor X sabia disto, e já o aprendera a aceitar. Ainda com alguma magoa, por rezes até revolta e obstinação, mas ele sabia. E o facto de o saber nem sempre o entristecia, por vezes podia ser até reconfortante.

De qualquer forma o mundo estava carregado de provas para a sua crenca.

E não chegava só na forma de desgracas bombasticas e cataclismos apocaliticos.

Normalmente chegavam em pequenas noticias susurradas, ouvidas e contadas em meias palavras.

“O gato da vizinha morreu, sabia...” ou “O rapaz tão novo, coitado, Tinha uma vida pela frente”.

Ou ainda mais laterais como aquela que para agora olhava. “... a vida tritura-nos em papas de aveia”.

O asburdo da frase incomodava-o. Não percebia bem porqué. Não conseguia descortinar ao certo o que o fez parar e reflectir tanto tempo numa coisa tão banal.

Finalmente voltou costas a viatura e continuou a sua caminhada para o hospital. Já estava próximo.

A sua casa era perto.

Casa ou lar não eram as primeiras palavras que vinham a sua cabeça quando pensava nisso. Habitação. Era assim que ele estava habituado a conceber o local onde dormia

Tinha toda a lógica, definição de habitação, o lugar onde se habita. Casa ou lar pressupõem um conforto e intimidade com um lugar, uma manta quente e amena que envolve quando chegamos. O feudo da família

Habitação era portanto uma palavra muito mais correcta.

Não havia ninguém na vida do doutor, os dias eram particularmente iguais, sem perturbações. E por opção, sem desvios a rotina.

A manhã era inaugurada com a curta caminhada até ao hospital, os vagos acenos de cabeça a chegada, o sorriso vazio para os mais insistentes. O café na sala de repouso do segundo andar, sempre vazia aquela hora. E o esconder para o escritório para rever os mapas dos laboratórios e programar analises.

Sem sustos, sem percalços, e sobretudo sem nada de essencial para recordar.

Era muito importante, isso de não recordar, era mesmo elementar na vida do doutor

Sem essa particularidade que vinha a desenvolver com os anos, não seria possível continuar a funcionar normalmente.

E ele era claramente uma pessoa normal. Nem sempre fora assim. Anos atrás, bastantes, poder-se-ia até dizer que ele era anormal, aberrante e um pouco excepcional. É que o doutor aproximou-se, em certa altura da sua existência, da felicidade

Nada de especial, nem de grande monta. Nada de carrilhões a tocar a sua chegada ou população às vivas.

Só a felicidade normal.

Infância corrente, brincadeiras da idade. Esfoladelas e arranhões próprios e benéficos para o crescimento. O mais grave foi o dedo do pé partido. Chute mal calculado. A bola agradeceu, a pedra não se manifestou.

Nada de maior. Escola secundaria, escola superior, tudo passado dentro dos padrões habituais, Namoros q.b. Amigos o mesmo. Pouco dado aos excessos, mas o suficiente para ser bem-vindo entre alguns.

Conheceu-a quando já pensava em carreira. Química ou medicina. A coerência e harmonia da primeira e o estatuto social da segunda apelavam-lhe.

Mas fez um desvio destes raciocínios para a conhecer. A que viria a ser sua mulher e a mãe do seu filho. Um lugar-comum fabricado com palavras perfeitas. Tão perfeitas que ainda não foram inventadas outras palavras para as substituir. A sua mulher e o seu filho.

E pronto, lá estava instalada a felicidade. Em doses pequenas e sem alaridos. Mais corrida de tartaruga que de lebre.

Não foi o tal de amor a primeira vista. Isso normalmente pressupõem que os dois intervenientes querem de imediato rasgar as roupas mais íntimas uns dos outros e praticar intimidades no local onde se encontram no momento. Mas isso pode ser explicado com a química. Ou em alguns casos, quando só um dos participantes é receptível, é explicado pela psicologia. Depois da obrigatória apresentação ao Juiz, é claro

Não, este não foi um caso desses. Foi mais ameno, controlado, normal.

Começou pelo interesse comum pela medicina e pela contingência da proximidade, visto que os dois frequentavam quase todas as disciplinas em conjunto. Era já a felicidade a enviar um dos seus cavaleiros a bater terreno. Ao contrário dos outros, os do Apocalipse, a felicidade só tem três.

O Acaso a Carência e a Precipitação. Mas oposto aos outros quatro, militares bem treinados e com objectivos consistentes, estes três são lançados quase sem plano formado. Mesmo após serem reunidas as condições perfeitas para um, dois ou múltiplos indivíduos serem felizes, não há garantias que tal aconteça. Muitos pensam que o Acaso deveria ser retirado de vez desta equação. A felicidade alcançada apenas pela Carência e Precipitação seria assim muito mais eficiente.

Felizmente no caso do Doutor o plano seguiu as suas linhas tradicionais

Encontros acidentais na cafetaria da universidade que se transformaram rapidamente em coincidências fabricadas e mais tarde em entrevistas projectadas. Com hora certa e assunto estudado.

Entrevistas cursadas para futura colocação.

“Mulher procura posição relevante em empresa unifamiliar com possível ascensão a sócia maioritária. Oferece pré-disposição para funções de reprodução, estabilidade e aceitação social”

“Homem procura parceria pré-disponível para funções de reprodução. Oferece pré-disponibilidade para funções de reprodução persistentes na primeira fase, e estabilidade e aceitação social na fase a advir”

Tradução pouco severa dos rituais de acasalamento, sem no entanto deixar de ser exacta.

Em todo o caso, com o doutor o protocolo desenrolou-se de forma habitual.

As saídas de amigos acabaram com o primeiro contacto de mãos, o rocar de roupas e pele, o primeiro beijo.

O resto não vem em forma faseada, é uma mistura de acontecimentos. A primeira oportunidade de sexo, mas já misturada com planos de acontecimentos futuros.

Com a Carência quase saciada, entra em campo a Precipitação.

E o doutor foi feliz. Ou talvez seja melhor dizer que teve momentos de felicidade. Ele gostava dela.

A forma do corpo, o odor da pele, os pequenos maneirismos e expressões que despertam a curiosidade e satisfazem a imaginação.

Estiveram bem. Casal cobiçável e desejado. Novos, de perfeita saúde, ainda a inventarem qualidades um ao outro.

Os planos de carreira não foram postos de lado, muito pelo contrário.

Este novo estado de espírito ajudava a focar o que estava para vir. Queriam os dois a mesma coisa. A união, a partilha, a junção de interesses, o apoio, carinho e protecção.

E para isso trabalharam, a carreira depois o casamento. E inevitavelmente veio o que ela sempre quis e o que ele pensava querer. O filho

Privacidade é normalmente a palavra usada para descrever duas situações. A falta de vontade de um individuo de contar determinado acontecimento ou expor determinada situação. Ou a falta de capacidade de outro individuo de descobrir o que o outro se recusa a contar.

Devido a segunda explicação vamos manter certas fases da vida de X privadas.

Mas podemos extrapolar, isso podemos sempre fazer.

O que se passou em corpo e pensamento com os dois durante esta fase será com certeza o que se passa com todos os novos casais e principalmente com os que estão grávidos.

Dores diferentes nos sexos diferentes mas que se complementam

Ela com toda a certeza terá passado pela incerteza da alteração da carne e da química, os bons e maus humores que se misturam e saltam para fora sem passarem por qualquer filtro ou processo de pensamento

Ele com a obrigação e algum orgulho de apoiar este estado. A compreensão estudada, a realização que estava a fazer o esperado de um homem, futuro pai, que tem que defender e acompanhar o ovo até a quebra da casca.

Podemos até adivinhar algumas situações.

“ Necessitas mesmo de passar por todos os buracos da estrada?» Diria ela

“ Pois...é esta maldita estrada, eu disse-te que era melhor não inventar atalhos”. Responderia ele.

E depois viria obviamente o arrependimento da resposta brusca. “ Não te preocupes querida, eu vou com mais cuidado…estás bem?”. “Estás linda hoje”.

Com isto viriam os momentos mais íntimos a dois. O abraçar do corpo dela, onde outro corpo já a muito começa a dar sinal.

O de sempre. Não é uma fase com particulares diferenças entre casais. Para resguardo da humanidade é seguido um plano que não é variável.

Portanto as nossas idealizações estão de certeza correctas.

Nesse dia ele nasceu. O filho.

Pequeno, descolorido. Ausente da presença de ambos mas já fazendo parte dos dois. O elo da união.

E ele mais uma vez foi feliz.

Da surpresa a rotina. O adaptar da vida a nova vida. Ele, o miúdo desta vez, correspondia como podia.

Com alguns anos já passados chega a parte da cimentação. Da rotina do infantário para a rotina da escola, o arrumar dos biberões e fraldas, para mais tarde recordar.

As pequenas vitórias do infante reportadas como enormes sucessos, e as tentativas falhadas descartadas como coisas normais.

E a noite o corpito da criança que adormece no sofá entre os pais. Não divide, mas liga isso sim, os outros dois corpos presentes.

Mas foi exactamente nesse instante, nessa altura perfeita, idílica, que a inevitável descensão começou.

Não foi imediata, nem trouxe com ela marcos importantes. Não tem um ponto de início mas o final é inescapável.

São as pequenas coisas. Tal como o debulhar da cebola, uma pequena camada de cada vez até não restar nada. A analogia é correta porque tal como o descascar dessa raiz, as lágrimas chegam no fim ansiosas de acompanhar todo este processo.

Os corpos já não respondem da mesma forma ao desejo, as frases de desacordo começam por ser murmuradas em surdina para mais tarde rebentarem em explosões sem motivo aparente.

As vidas dividem-se como se as razões para estarem juntas fossem agora estranhas e sem muito sentido.

Começa a dúvida. Essa traz o ressentimento. E para o ressentimento ter lógica é necessário encontrar culpados. Nunca somos nós, é sempre o outro. As virtudes inventadas ao início pelo mesmo processo mental transformam-se em defeitos expostos finalmente a luz.

Há no entanto e sempre, o elo. O corpo do menino que atrai as duas outras esferas que se afastam. E no final da noite é sempre o pequeno astro que faz os outros girar a sua volta. E os dias passam-se. A rotina instala-se, nesse equilíbrio perfeito entre a vontade de partir e a obrigação de ficar.

Não era em nada disto que X pensava enquanto chegava a porta de serviço do Hospital.

Essas memórias estavam bem fechadas. Nunca mais veriam a luz do dia nem sairiam da caixa onde foram postas a muitos anos.

Nem essas nem a outra. A memória do outro acontecimento. O terrível. Essa foi separada.

Arrancada a força da história principal. Espancada e amordaçada antes mesmo de ser escondida e soterrada por toneladas de cuidados e labirintos de raízes. Não…essa não poderia jamais voltar

No entanto, quando x chegou a porta do hospital só pensava em entrar. Entrar e tomar o café da manhã.

Foi interpelado pelo inevitável guarda de serviço.

X não gostava dele. Sempre sorridente. Como se não entendesse que também ele estava destinado a “normalidade”

“Bom dia Doutor”.

X respondeu-lhe, como sempre com o habitual aceno de cabeça.

Mas o outro, despropositadamente insistiu. «Sente-se bem Doutor?”, “Hoje parece um bocado em baixo”

Virou-se para ele, apanhado de surpresa pela insistência do vigilante.

“Sim, sinto-me bem”, “Sinto-me como…”.

Não chegou a acabar a frase. As palavras que queria dizer seriam –“Como todos os dias”-

Inexplicavelmente veio-lhe a memória o autocolante amarelo com as suas pontas tortas.

“Sinto-me como… papas de aveia” foi o que finalmente acabou por segredar.

Francisco Carreiras
Enviado por Francisco Carreiras em 22/10/2015
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