Capítulo 16 de A educação sentimental de Xavier Renart

Cortando o mal pela raiz.

Karine olhava para baixo, procurando controlar a respiração e não olhar para Theo. Mas o ódio crescia dentro dela e começava a tomar cada célula de seu corpo. Segurou a faca com força e cortou um pedaço de queijo frescal que colocou no seu prato sem nenhuma intenção de comê-lo. Carol pousou a mão suavemente nas pernas da amiga para tentar lhe dar algum consolo.

- Mas então, você trabalha junto com a Karine e com a Carol?

- Sim Dr. Newton, e estudo com elas também – Karine teve o ímpeto de levantar da mesa e deixar Theo sozinho com seu pai e com sua covardia. Chamar o pai de doutor, como todos os outros puxa saco era demais para ela. Mas o coronel agora reformado da Polícia Militar. que completava naquele dia sessenta anos, queria era isso, e ela sabia. Sabia e não daria esse gosto para ele. Na verdade esperava que as provocações acontecessem, como sempre. Seu pai gostava de vê-la irritada. Ela ficava como ele, dizia sua mãe. Seu pai sempre gostara de vê-la irritada, e frequentemente fazia algo para que a sua menininha ficasse bravinha. No entanto, após a morte do irmão mais velho num acidente automobilístico trágico e idiota, as brincadeiras, mudaram. Perderam seu espírito amistoso e passaram a conter um tom mais sarcástico, menos esperançoso de que a reação da filha pudesse lhe proporcionar algum prazer. Com a perda do filho, ficou sem ter quem herdaria sua carreira, suas fazendas, o empenho de sua respeitabilidade a políticos que necessitavam de pessoas respeitáveis para assumir bens econômicos incondizentes com sua renda e atividade. Só lhe restara a filha, meio rebelde, meio artista, em tudo diferente dele e do filho, mas, mesmo assim, parecida com ele.

- Mas esse negócio dá dinheiro?

- Depende, para quem é bom dá. Está vendo essa caneta. Nós a fizemos e ganhamos cada um uma. Só essa, que é a mais barata custa três mil reais. A mais cara doze. O custo não dá nem dez por cento, e vendeu muitas. Então, dá dinheiro sim.

- É, para o seu chefe dá. O sujeito está ganhando um dinheiro danado. Não é a toa, tanto que deu para vocês a caneta de três e não a de doze. E o pior é que é meio metido a comunista. Mas para ganhar dinheiro não é comunista não. Mas ele pelo menos esse eu conheci e sei que é boa pessoa. O outro que trabalha lá que é chefe da empresa de vocês é que não é boa bisca. Veio lá de Goiás largando mulher e negócio para traz. Sujeito fraco, deixou o sogro dele, um homem já de idade na mão quando ele estava precisando. E fez tudo para o sujeito. Mas esse já teve uns cobrezinhos de herança e nem deve preocupar muito com dinheiro não. Vai queimar o que o avô construiu.

Karine sabia que cada palavra do pai era para irritá-la. Suas insinuações de que a estava vigiando eram bem prováveis de serem factíveis, pois ele tinha como fazer isso facilmente. Isso não a amedrontava, ou a constrangia, mas mesmo assim lhe deixava com muita raiva. Mas estava agora com mais raiva de Theo, por entrar no jogo de seu pai. Eles já haviam conversado sobre isso, e Theo não tinha nenhuma necessidade de agradar o “sogro”. Karine na verdade nem queria estar ali. Sua concessão à convenção de participar do aniversário de sessenta anos do pai, e de levar a amiga e o “namorado” se dera devido a um lapso de questionamento, e devido a fala insistente da mãe, da qual ela queria simplesmente se livrar. Então se comprometera a ir. Sua presença em casa, em Valadares, na fazenda que era e não era de seu pai, tudo aquilo fora uma concessão, que ela queria sentir que fosse à mãe e às convenções sociais, mas no fundo, era uma concessão à esperança de que dessa vez as coisas fossem um pouco melhor, ou que ela se sentisse encaixada ali, ou encontrasse alguma raiz que a ligasse a algo mais perene. Mas não, não havia nada, e não estava melhor. Não que sua vida houvesse sido ruim lá. Tinha sido ruim, mas não muito. O ruim mesmo era o fato de que aquilo ali, aquele ambiente cheio de limitações e demandas de que ela fosse algo que ela não era, nem queria ser, não era o seu lugar, nem seu caminho. Ir na casa de seus pais era um desvio de rota, um atraso na sua vida, uma parada na sua caminhada em direção a algo melhor e maior, e mais significativo. Aquilo ali não era para ela não, e ela, e as pessoas que estavam com ela, não precisavam ter nenhuma ação para sustentar um compromisso, ou uma boa relação que possibilitasse suas presenças naquele lugar. Por isso estava com raiva de Theo.

Mas apesar de tudo, não conseguiria brigar com o pai. Perguntar se ser laranja de político corrupto dava mais dinheiro que design, como passou por sua cabeça. Isso também seria uma forma de compromisso. De estabelecer um questionamento, um direito de resposta ao outro. Ela só queria que aquilo acabasse, e ela fosse embora e deixasse de perder tempo e ser atrasada por aquele lugar.

Enquanto o cansaço de estar naquela situação tinha a mesma força que a raiva, ela se manteria serena e sob controle, mas a raiva estava aumentando a cada tentativa de Theo de agradar. Agora ele começara a tagarelar sobre algo referente a valores morais e comportamentos sexuais. Ela tinha perdido o tema do assunto enquanto pensava em como seria bom sair dali e voltar para Belo Horizonte, para sua casa, seus estudos e seus projetos. Mas Theo continuava querendo agradar, agora, tentando fazer oposição ao que seu pai falara. Ele sentia que era isso que o “Dr. Newton” queria, alguém capaz de enfrenta-lo. A inocência de Theo em relação à perversidade de seu pai foi a gota d’agua. Levantou-se da mesa e foi levando seu pedaço generoso que queijo e uma xícara de café para a mesa da varanda, sendo seguida por Carol. Saiu em silêncio, sem olhar para traz, mas sabendo que sai pai sorria discretamente por ter vencido a parada. Só não sabia o que a tinha vencido. A raiva ou a desesperança.

Sanyo
Enviado por Sanyo em 26/09/2015
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