O FATOR CAOS capítulo 3 - Lúpus


(Já publicados o capítulo introdutório (Andrômeda), 1 (O Inspetor e os perfis) e 2 (Ciúmes cibernéticos)


CAPÍTULO 3

LÚPUS


Aquele bairro não era de todo urbanizado e as casas possuíam aspecto, se não luxuoso, as menos abastado. O Ipê Amarelo era uma região de chalés, de vivendas.
Andrômeda deixou Liz a alguma distância, com os faróis apagados, e caminhou com Leiber na escuridão da noite, sob a lua cheia e as constelações austrais, até aquela mansão soturna que parecia vagamente um pagode chinês. Uma profusão de cornijas, gárgulas, pilastras e sótãos configurava uma visão insólita. A casa dava diretamente para a rua em sua parede lateral esquerda e tinha luzes acesas em seu interior.
— Fique aqui embaixo. Você vai me dar cobertura.
— O que você vai fazer?
— Chegar à arquitrave e passar ao sótão...
— Acho que você fez mal em ler a biografia do Batman.
— Ora, vá... — Andrômeda conteve-se. Não gostava de falar palavrões.
Ela disparou a silenciosa batcorda que se grudou no tijolo da parede e depois, como uma dobadoura, graças à carrapeta da ponta, reenrolou-se, içando Sonia até lá em cima. Em seguida ela cortou o vitral do sótão com seu anel de diamante, produzindo um círculo suficiente para lhe dar passagem. Entrou e acionou o anel-lanterna.
Surpreendeu-a de imediato a visão de uma mocinha, amarrada de pés e mãos numa cadeira e amordaçada, que a olhava com olhos aterrorizados. Estava com a mesma roupa que Andrômeda a vira pela primeira vez.
A mascarada aproximou-se dela e cochichou:
— Não grite, por favor. Eu sou Andrômeda e vim libertá-la.
Cortou rapidamente as cordas, removeu a mordaça e friccionou pulsos e tornozelos da prisioneira, para estimular a circulação.
— Muito obrigada, Andrômeda. Sei quem você é. Porque a polícia a persegue, se você é boa?
— Talvez a resposta seja essa — explicou Andrômeda. — Você tem medo de altura?
— Por que pergunta isso?
— Porque eu vou descer você pela corda, Lita. Tenho um robô e um carro esperando por nós.
— Se é bastante seguro... eu não quero encarar Lúpus de novo.
— Lúpus? O mago?
— Você o conhece?
— É um inimigo... mas ainda não o confrontei diretamente. É um homem perigoso.
— Ele está atrás de tudo! Meu Deus, você nem imagina o que eles querem! Lúpus é tão cínico que se deu ao luxo de me contar tudo! Ou pelo menos muita coisa...
— Bem, e o que ele quer?
— Andrômeda, você já ouviu falar no Necronomicon?
— O que?
— O Necronomicon... o Livro dos Nomes Mortos...
— Já, sim. Eu sei que livro é esse.
— Lúpus está manipulando esse livro. Ele quer abrir um portal dimensional num buraco negro, e é por isso que está seqüestrando cientistas.
— Mas para que ele quer fazer uma loucura dessas?
— Diz ele que abrirá a passagem para os Grandes Antigos... e que ele, Lúpus, por meio dos Grandes Antigos dominará o universo. Em suma, ele está louco!
“Louco... — pensou Andrômeda — mas e se for verdade?”
— Além disso — prosseguiu Lita — ele se jacta de ter dado a vida a um exército de esqueletos. Não é coisa de louco furioso?
O celular de Andrômeda tocou. Ela atendeu prontamente: era Leiber.
— Chegando gente, Andrômeda. Olhe pela janela, se ainda está no sótão.
— Quem é?
— Um casal idoso que chegou de táxi e com malas.
Cuidadosamente Sonia e Lita espiaram pelo vidro do sótão (o pedaço cortado fôra recolocado pela mascarada de modo que por fora a abertura não era visível).
— Papai e mamãe! — exclamou Lita, estupefata.
— O que eles vieram fazer aqui?
— Vieram se entregar... por mim.
Dois sujeitos receberam o casal, que foi sem demora introduzido.
Com lágrimas nos olhos Lita afastou-se do vitral e encarou a mascarada.
— Tenho que lhe pedir para ir embora, Andrômeda. Agradeço-lhe muito, só que agora eu não posso mais fugir.
— Está maluca, garota? Ainda não se cansou de ficar amarrada?
— Eu não me importo... você não compreende? Meus pais estão aqui, não posso abandoná-los!
— Esses homens... tocaram em você?
— Ah, não. Ninguém me estuprou, se é isso que você quer saber. Lúpus avisou seus capangas que não tocassem num fio do meu cabelo. Mas isso não é por ele ser bonzinho: é que ele quer o serviço do meu pai. Como ele disse, é preciso evitar que os cientistas fiquem revoltados. Se eu fosse estuprada não conseguiriam fazer papai trabalhar. E eles obedecem ao Lúpus, todos têm um medo atroz desse homem.
— Tudo bem, mas eu não posso deixá-la aqui.
Lita estava cada vez mais aflita:
— Não posso ir com você, vá embora pelo amor de Deus!
— Você teme por seus pais? Eu irei lá embaixo, para libertá-los!
— Não! Está louca, Andrômeda! Você não pode enfrentar Lúpus!
— E por que não?
— Ele é um mago negro... é poderoso... meu Deus, por que você está teimando? — desesperada, Lita bateu com os pés no chão.
Andrômeda pensou depressa:
“Não posso esperar mais para agir. Os pais de Lita vão querer vê-la imediatamente. Vão subir aqui.”
Andrômeda moveu-se na direção da escada. Lita correu, passou-lhe à frente e desceu celeremente.
— Peste! — desabafou Andrômeda. A danadinha poderia colocar tudo a perder.
Sem uma alternativa melhor Andrômeda desceu correndo a escada em caracol, ao encontro dos inimigos. Viu-se numa plataforma entre dois lances de escada. A garota já alcançava o casal, que vinha escoltado por três homens e uma mulher. No salão encontrava-se também um homem de aparência marcante: alto, com cerca de dois metros, muito magro, esquelético mesmo, com cabelos engomados por gomalina e uma imensa capa roxa. Da posição em que se encontrava Andrômeda ainda não podia enxergar, mas o símbolo infernal do tridente estava pintado na capa do personagem. De relance ela também reparou na decoração sinistra do local.
— Lúpus! — disse ela, estacando.
— Andrômeda! — o homem sorriu — Tornamos a nos encontrar, querida. Talvez possamos nos entender. Quem sabe você se une à nossa causa...
— Somos inimigos.
— Se você desse uma lida no Necronomicon, talvez entendesse a grandeza do que estamos fazendo... cuidando do futuro reinado dos Grandes Antigos...
Pela mente de Andrômeda passaram as notícias que ela tinha das perturbações mentais causadas pela simples leitura do Necronomicon. Mentes fracas facilmente cairiam presas dos ritos encantatórios ali contidos. Mesmo mentes poderosas não deviam brincar com aquilo.
— Dispenso, Lúpus. Quero que solte essas pessoas.
— Você não me desafiará, Andrômeda — Lúpus brandiu uma bengala com cabo em forma de caveira. — Sei que você é uma grande heroína, famosa no mundo inteiro. Mas comigo a coisa é outra. Eu sou um nicromante, sou aquele que manipula as forças das trevas.
— Manipula ou é manipulado, Lúpus?
O cientista se adiantou, sacudindo sua cabeleira.
— Basta, Andrômeda! Não quero que haja derramamento de sangue! Senhor... o senhor poderia libertar minha filha e minha esposa? Eu irei de boa vontade, deixe Andrômeda levá-las.
A proposta foi atrapalhada por intervenções indignadas feitas pelas mulheres, que se abraçaram ao professor. Lúpus bateu com a bengala no chão.
— Todos serão libertados brevemente, na hora certa. Não tenho paciência para criar seres humanos. Quanto a você... não vou gastar minha magia com você. Usarei métodos mais primitivos.
Voltou-se para um dos auxiliares:
— Gordon, solte os dobermans.
— É pra já. Mestre.
O negro alto e vestido com a elegância de um “maitre d’hotel” apertou um controle remoto que tirou do bolso do fraque. Um painel na parede se abriu; Creuza Vapabussi gritou de quebrar taças de cristal e o Professor Vapabussi não ficou muito atrás. Lúpus e Gordon, porém, com ordens secas e rápidas direcionaram as feras negras para a escada. Eram dobermans mutantes, com dedos preênseis. Podiam trepar em árvores como macacos.
Pela mente ágil de Andrômeda correu uma lembrança assustadora. Em certa casa de campo havia dois dobermans vigiando. Certa noite penetrou lá um ladrão, e jogou comida para os bichos. Só que um doberman treinado não aceita comida de estranhos. Pois bem: no dia seguinte foi preciso varrer o ladrão...
Ela deu as costas e correu. Ao invés de retornar ao sótão, onde a passagem estava aberta, foi por um corredor e, chegando a uma porta velha de madeira, achou aberta a maçaneta e entrou, fechando a porta após si.
Resgatar prisioneiras recalcitrantes seria difícil, mas Sonia recusava-se a ir embora sem um resultado melhor. Percebeu estar dentro de um quarto mágico, repleto de carrancas e bonecos de vodu. Sob uma caveira humana, mas feita de borracha, numa escrivaninha, avistou uma apostila estranhamente iluminada naquele ambiente de luz maravilha. Afastou a caveira e pegou o volume. Na capa estava escrito: “O Fator Caos”. E o autor: Diógenes Horizontino Prisco.
Lúpus.
Um ruído fez Andrômeda se voltar. Um dos cães já abrira a porta e, quase de pé, fitava Andrômeda com a língua babando.
— Tome — disse Andrômeda, e jogou uma bomba de magnésio sobre o animal.
O clarão e a concussão fizeram a matilha recuar mas, incrivelmente, eles voltaram ao ataque. Andrômeda pulou no parapeito da janela e abriu-a com um pontapé de levantar defunto; encontrou-se num corredor maluco, quando julgava poder sair ao exterior. Havia várias mesas pentagonais de rituais cabalísticos. Sem nenhum respeito por aquelas coisas, Andrômeda pulou numa mesa alta, chutando objetos mágicos, tomou impulso e saltou com grande agilidade no candelabro de prata, agarrando-se a um de seus braços. Logo adiante havia uma clarabóia colorida.
Dois dos cachorros vieram e pularam sobre a mesa, numa latideira infernal, e tentaram alcançar Andrômeda que, segurando a apostila com a mão direita, apenas com a esquerda agarrava-se ao pingente, impulsionando um movimento pendular. Os cães, saltando no ar, quase morderam a sua capa. Andrômeda driblou-os e tomou maior impulso.
“Caramba! Isso está mais difícil do que eu pensei.”
Finalmente Andrômeda alçou-se, arrebentou a clarabóia com as botas e viu-se ao ar livre.
Equilibrando-se precariamente pelas cornijas, considerou a façanha de ainda estar de posse do volume. E Lúpus de nada sabia!
Puxou a bat-corda e pulou para a rua, caindo bem em frente a dois policiais Cosme-e-Damião em patrulha. Eles levaram o maior susto e esbarraram-se de tanta atrapalhação.
— Que é isso, Joaquim? Quem é ela?
— É... é... é Andrômeda!
— Que... que? Andrômeda?
— Não fica aí parado, Gerson! Pega ela! Pega ela!
— Ei, onde é que ela está?
— Lá! Lá!
Andrômeda, com efeito, não ficara esperando que eles se decidissem. Tão escorregadia quanto o Zorro, já se encontrava metros adiante, atrás de um poste de luz.
— Vamos pegá-la! Vamos pegá-la! — e os dois falavam ao mesmo tempo.
A “dupla dinâmica” resolveu correr para capturar Andrômeda. Nisso, porém, abriram-se os portões da mansão e lá vieram os dobermans em desabalada carreira...
Só que em vez de perseguirem a moça, correram atrás dos dois apatetados policiais...
Liz surgiu, com Leiber já em seu interior, e abriu a porta:
— Vamos embora, Andrômeda! Depressa!



NOTA: Esta novela homenageia os universos ficcionais do Necronomicon (Lovecraft), Star Trek (Gene Roddemberry), Star wars (George Lucas), Sailor Moon (Naoko Takeushi), Batman (Bob Kane) e Leis da Robótica (Isaac Asimov)