ANINHA DA PRAIA - capítulo 04

Vivemos naquela deliciosa praia por doze anos, e mesmo que continuassem a acontecer coisas incomuns, envolvendo Ana, as pessoas do lugar nunca reagiram mal. Tudo sempre era encarado com simplicidade e benevolência. Algumas senhoras até comentavam que talvez minha irmã se tornasse benzedeira, quando fosse mais velha. A garota só ria dos comentários, mas não respondia nada.

Costumávamos visitar a aldeia dos índios, e até passamos algumas noites em volta da fogueira, quando era época de ritual. Conversávamos muito e eles levavam a sério o dom de Aninha. A mais entusiasta era aquela senhora que acompanhava as crianças na cascata. Era a mais velha, mas não sabia sua idade. Chamava-se Ayrumã, que era o nome por que os índios denominavam a estrela Dalva. Ela disse que nasceu no momento em que essa luz surgiu no céu, numa noite muito bonita e quente. Infelizmente essa senhora faleceu dois anos após nossa chegada, mas dois dias antes de morrer, foi até nossa casa e se despediu de todos.

Às vezes flagro Ana sentada sozinha, sussurrando algo, como se estivesse conversando com alguém, e em mais de uma ocasião ouvi ela dizer Ayrumã e sorrir para o vazio.

Quando completou vinte e dois anos, ela anunciou que dali a alguns dias apareceria um rapaz em casa, e que com ele ela namoraria. Minha mãe ficou alarmada com o anúncio, mas não parou por aí. Ela também disse que ele não seria uma pessoa de bom caráter, e que seu envolvimento com o sujeito seria breve, até que ficasse grávida de um menino. Nesse instante, pai e mãe se alvoroçaram e a encheram de reprimendas, dizendo que não admitiriam aventura irresponsável, e que ela ficaria marcada, se tal ocorresse, como mãe solteira.

Ana ouvia tudo sem se abalar. Sorria o tempo todo, e quando viu que se acalmaram um pouco, disse que não haveria problema, e que o rapaz tinha sido eleito apenas para ceder seu sêmen e que o pai de seu filho seria outro, que viria logo após. Nossos pais a olhavam como se estivessem vendo uma louca desvairada, e não sabiam o que dizer. Ela os abraçou juntos, apertou-os contra si e começou a cantarolar. Em poucos minutos ambos estavam serenos, rindo e acompanhando a canção. Não entendi nada, mas aprendi a respeitar o que Ana dizia.

Com efeito, na semana seguinte apareceu um tal de Betão, cheio de ginga, enorme, feio e mal encarado, com um carro caindo aos pedaços, convidando Ana para um passeio. Ela nem pestanejou. Durante três semanas e pouco, saíam juntos e sumiam, mas nem eu, nem meus pais nunca dissemos uma palavra a respeito. Um belo dia, quando o gajo apareceu para mais uma aventura, ela pegou na mão dele e disse que não havia mais motivo para estarem juntos. O grandalhão chorou como uma criança, mas aceitou a afirmação e nunca mais voltou.

Como ela mesma tinha predito, engravidou. Parou de ir à escola e passou a fazer mais tarefas domésticas, ajudando mãe. No dia em que completou três meses de gestação, bateu na porta de casa um agente de saúde, convidando-a a fazer o pré-natal num posto próximo. Em menos de uma semana estavam namorando. Esse parecia ser boa pessoa, trabalhava para pagar os estudos e ainda fazia estágio. Chamava-se Breno e era simpático, inteligente, atencioso, e cuidou de Ana até o parto, estando presente no momento em que dava à luz meu sobrinho: Cirilo. Registrou o garoto, com a anuência de Ana, como seu filho também.

Na hora de oficializar o casamento, estranhei o fato de Breno não ter nenhum parente, não falar de seu passado, por mais que insistisse, não ter amigos, e todos os seus documentos serem recentes, com no máximo quatro anos de expedição, sem indicação de pais e, no local de nascimento, a linha não havia sido preenchida. Mesmo assim eles têm vivido bem juntos, e meu sobrinho é fantástico. Posso dizer, inclusive, fantástico demais.

Sempre que podia, eu os visitava, mas num certo dia apareci sem avisar, bem cedo, num horário inusual, e entrei, como fazia sempre, pela porta da cozinha. Não vi ninguém, mas também não chamei, apenas abri a porta da sala e me assustei. Ana e Breno sentados, com as pernas cruzadas, um de frente para o outro, com Cirilo entre ambos; e todos flutuavam!

Estavam flutuando a pelo menos meio metro do chão, numa espécie de transe.

Assim que me viram, cessaram o ritual e pediram, com delicadeza, que me sentasse ali no chão. Pediram que não comentasse o que vira com ninguém e nem ficasse preocupado, porque era simples meditação. A meio metro do chão? Foi o que comentei. Breno olhou para Ana e lhe disse que já era hora de eu saber a verdade. Virou para mim e pediu que eu tivesse um pouco de paciência, pois em breves dias iria por tudo em pratos limpos. Tudo o quê?

nuno andrada
Enviado por nuno andrada em 09/08/2015
Código do texto: T5340549
Classificação de conteúdo: seguro