ANINHA DA PRAIA - capítulo 03

Minha mãe era batalhadora, e não aceitou a expulsão da escola passivamente, porém após muitas idas e vindas, muitas discussões, teve de se dobrar ao que foi imposto. Só que as outras escolas da região, alarmadas por aquela direção e um boca a boca ferino, por parte dos que estavam presentes na ocorrência, também não nos aceitaram, e perdemos aquele ano.

Nos meses que se seguiram, como estávamos sem aulas, acompanhei de perto todos os passeios e brincadeiras de Aninha, por medo que se metesse em mais alguma encrenca. Ela adorava permanecer horas na areia da praia, olhando o mar. De vez em quando chegava à beirinha e molhava seus pés, sussurrando algo que nunca entendi, e que quando perguntei, só sorria e nunca me disse. Numa ocasião, inesquecível, estávamos com os pés na água, e não notamos que pesadas e negras nuvens chegaram rápido, trazendo um vendaval com raios. Foi numa fração de segundo que me virei, e mesmo sem enxergar direito, pela quantidade de areia levantada, me apavorei com o que vinha em nossa direção. Puxei o braço de Ana, mas parecia que estava puxando uma rocha, pois nem se moveu do lugar, por mais que me esforçasse. O seu corpo estava rijo, a fisionomia tranqüila e os olhos se fixavam no horizonte marítimo, sem se dar conta do que acontecia. O mar ficou revolto e avançava com ondas agressivas, o vento agitava a areia, formando redemoinhos violentos, e então explodiu o primeiro raio, bem junto a nós, no posto de salva vidas. Eu estava morrendo de medo, mas naquele instante, no meio da agitação toda, abracei Ana e, de repente, senti uma paz enorme, não ouvi mais nada e sentei.

Não sei quanto tempo ficamos ali, mas quando levantamos, a praia estava tomada pela água, e só havia um caminho seco, da rua até nós, como se houvesse ali uma proteção. Muito assustados, corremos para casa, e apesar da chuva intensa, não nos molhamos. Minha mãe, assim que entramos, olhou a tempestade lá fora, viu que estávamos secos e não disse nada, apenas se ajoelhou e rezou durante muito tempo. Em sua simplicidade, ela sabia que estava frente a algo desconhecido, e orava para que aquilo fosse uma benção e não uma maldição.

Quando chegou a véspera daquele natal, como de costume, ficamos brincando na rua com as crianças da vizinhança, até que nossos pais nos chamassem para a ceia com a prece, à meia noite (era só um jantar comum com mais sobremesa), e vimos quando uma menininha, que não conhecíamos, com seus aparentes dois a três anos de idade, foi até a esquina e saiu da calçada. Corremos até ela, mas um carro bateu forte em seu corpo antes de a alcançarmos. Ao cair, ela rolou para o meio da rua, e um caminhão que vinha atrás ia esmagá-la, então pulei e a peguei no colo, mas não tive tempo de sair dali. Instantaneamente, eu e a menina voamos para a calçada, voamos mesmo, com uma rapidez incrível, diante de todos. O caminhoneiro freou e olhava embasbacado, alguns passantes pararam e gritavam atônitos, e a criançada que acompanhou o que acontecia, correu para suas casas, aos berros, contando a peripécia. Ana estava, de novo, parada, olhando fixamente para mim e a menina, que estava muito ferida, por causa do atropelamento, antes de minha intervenção. Então se chegou, pegou-a no colo, fez algumas carícias e sussurrou, como fazia para o mar. A criança acordou, sorriu para ela, pediu o chão e saiu ao encontro de sua mãe, que já vinha em nossa direção, chorando.

Tirei Ana dali e fomos para casa. Não precisei dizer nada, pois meus pais já tinham sido alertados de quase tudo. Jantamos mais cedo e nos recolhemos, em silêncio.

No dia seguinte, quando fui comprar pão e leite, ninguém falava comigo, se afastavam à minha aproximação, e não demorou a que as crianças começassem a agir do mesmo modo que nossos colegas da escola, xingando e atirando coisas. Eu não entendia! Fizemos algo bom e nos tratavam como gente ruim. Nem a mãe da menininha veio ter conosco. Nas semanas seguintes a situação foi piorando tanto, que se tornou insustentável, e tivemos de nos mudar. Na época, meu pai trabalhava em uma olaria, que estava associada a mais outras duas, então pediu ao seu patrão que o transferisse para outra unidade, em praia mais distante, de cidade pequena, simples e com poucos habitantes. Havia também ali uma aldeia de índios.

O lugar era mais primitivo, com pouquíssimos recursos, a escola era pobrezinha, mas a praia era gostosa, havia muitas árvores e plantas nativas, um riacho cristalino, que desaguava no mar e uma pequena cascata. Para nós, aquilo era o paraíso. Era comum nos banharmos no salto d’água, junto com outras crianças e alguns indiozinhos. Sempre os acompanhava a avó, uma índia bem velhinha, que um dia veio até Ana e a benzeu. Quando me aproximei, ela fixou em mim o olhar e disse que eu deveria, sempre, proteger aquela semente de luz. Aninha.

nuno andrada
Enviado por nuno andrada em 07/08/2015
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