HISTÓRIAS DE AMOR E ÓDIO IV

Capítulo IV – o ódio prevaleceu ao amor redivivo. Final.

E aconteceu que naquele tempo em que os nobres se distraiam com as caçadas, as lutas e as guerras, Lourenço de Cantaria, sobrinho e filho de criação de dona Leonor, a baronesa de Cantaria, dedicou mais de uma semana de trabalho, na ferraria do castelo do duque de Alvear, ultimando a confecção da espada longa com a qual iria pelear no campo do castelo do grão duque eleitor da região.

A baronesa dona Leonor, continuava se recuperando do acidente sofrido durante a tempestade, mas acometida de febres constantes, estava impossibilitada de continuar a viagem. Por causa disso, dom Lourenço concordou em ficar no castelo do duque de Alvear.

Sem o conhecimento do pai, os dois jovens se encontravam às escondidas, enquanto Malakê, a babá e dama de companhia, dormia a sono solto sobre o catre, colocado em frente à porta do quarto, dentro dos aposentos de Judite.

Noite após noite, quando todos já dormiam, Lourenço subia pelas pedras rugosas até o balcão e entrava para dormirem abraçados.

Era total a integração entre os dois e Lourenço dizia que eles já haviam vivido outras vidas assim, marido e mulher.

Judite não entendia bem sobre o que ele estava falando, mas o prazer que sentia com a intimidade era motivo bastante para não questionar.

O caso do assalto perpetrado por dom Pepe e o castigo, merecido, imposto a toda a sua família, ainda era comentado na feira, na estalagem e principalmente nas conversas veladas dos habitantes do lugar.

Os frades franciscanos receberam autorização para construir um convento nas terras onde existiu a casa de dom Pepe.

Eles pediram e dom Nicolau concedeu que os restos mortais de dom Pepe fossem sepultados, como compete a todos os cristãos, desde que fosse o mais longe possível.

E aconteceu que chegou a véspera do dia em que dom Lourenço iria participar dos jogos, ele teria que mudar-se para o castelo do grão duque eleitor e, como de costume, à noite, deitou-se ao lado de Judite.

Por causa da excitação da despedida e pela proximidade dos jogos, os dois só conciliaram o sono quando o dia estava prestes a raiar e assim, foram acordados por Malakê.

Não tinha como negar nada. Os dois estavam abraçados, completamente despidos, com as pernas entrelaçadas e Judite com a cabeça deitada no peito de Lourenço, com o dossel entreaberto por causa do calor sufocante nos meados daquele outono.

- eu vou contar ao vosso pai.

- não Bá. Por favor não fale nada.

- quando eu voltar do torneio, vencedor, vou pedir ao duque para casar-me com Judite...

- e se o senhor não voltar dom Lourenço?

- claro que eu vou voltar e vou voltar campeão! Com a bolsa de cinquenta onças de ouro puro.

- vosso pai vos mandará para o convento.

- escute a minha proposta senhora Malakê. (Disse Lourenço levantando-se para poder vestir as calças) eu lhe darei a metade do prêmio, vinte e cinco onças de ouro. É uma boa recompensa pelo seu silêncio.

Nesse momento o sangue cigano falou mais alto do que a fidelidade ao patrão e incapaz de resistir à barganha, Malakê apanhou a camisa e o gorro que Lourenço deixara no chão do quarto e segurando seu braço disse-lhe:

- venha comigo.

Depois de breve despedida, onde os amantes trocaram ardente beijo, dom Lourenço seguiu a cigana que desaparecera numa porta disfarçada por um painel de madeira.

Ainda com os sapatos nas mãos, Lourenço deixou-se guiar pela passagem estreita, desconhecida da maioria.

Essa rota de fuga fora construída para que os habitantes do castelo tivessem a oportunidade de fugir no caso de invasão inimiga.

Malakê acendeu uma vela para iluminar a escada estreita que os levou até o subsolo da adega. Levantou a tampa do fosso e Lourenço desceu para o esgoto.

- siga pela direita até o rio. Cuidado com a passagem pela grade que deve estar muito enferrujada. Tome sua camisa para tapar o nariz para não ficar doente por causa dos miasmas, leve a vela e não esqueça da minha parte no prêmio do torneio.

Com ânsia de vômito por causa do mau cheiro dos excrementos revirados enquanto andava, dom Lourenço procurou chegar o mais rápido possível ao rio.

Quase sem fôlego, atirou-se nas águas geladas e deixou que as suas roupas fossem levadas pela correnteza porque ele não teria como explicar toda aquela sujeira.

Nadou até a ponte e semioculto pela vegetação pediu a um carroceiro que passou algum tempo depois, que falasse aos guardas do castelo sobre a sua situação.

O sol já ia alto quando apareceu uma lavadeira, à qual ele pediu uma manta para se aquecer. Bem próximo da hipotermia foi levado, pelos guardas, para o castelo.

Nem todos acreditaram na historinha inventada às pressas de que ele teria saído do castelo para passear durante a noite; que por causa do calor abafado, resolvera tomar banho no rio e que distraído deixara suas roupas serem levadas pela correnteza.

Os jogos duraram três dias.

Apesar do ferimento na coxa causada pelo estilhaço de lança adversária, da febre intermitente e pela dificuldade de respirar, dom Lourenço de Cantaria recebeu das mãos do grão duque eleitor, a faixa azul de campeão do torneio e a bolsa contendo as cinquenta onças de ouro puro.

E aconteceu que naquele tempo em que dom Lourenço de Cantaria voltou para o castelo do duque Nicolau de Alvear para rever a sua tia e mãe de criação a baronesa dona Leonor de Cantaria e a sua amada dona Judite, futura duquesa de Alvear, mal podia manter-se sobre a sela.

Suas armas eram conduzidas pelo escudeiro e seu cavalo seguia a passos lentos. Dom Lourenço ardia em febre e sentia horríveis dores no peito cada vez que respirava, sem dúvida, consequências dos miasmas do esgoto e das muitas horas que passara tremendo de frio nas águas do rio.

Antes mesmo de se recolher aos aposentos, dom Lourenço pediu à sua tia para, em seu nome, pedir ao duque de Alvear, a mão de Judite em casamento.

- e você ama essa moça? Vocês mal se viram... acho até que você nunca ouviu-lhe a voz...

- mesmo assim eu a amo. Tenho passado muitas horas no salão, admirando o seu retrato...

- mas naquele retrato ela era ainda uma menina, pouco mais que um bebê.

- talvez seja por isso mesmo, veja a senhora minha tia, que ela pouco ou quase nada mudou.

- eu não sei se devo...

- por favor, minha tia, é tudo o que eu lhe peço.

Havia sofrimento na voz quase sumida de dom Lourenço, abatido pelo mal que contraíra.

- falarei com o duque durante o jantar... e pegando na mão do sobrinho disse com espanto: você está ardendo em febre. Temos que achar um médico imediatamente.

E aconteceu que naquela mesma noite, quando estavam todos à mesa, a baronesa dona Leonor de Cantaria pediu que o dom Nicolau, duque de Alvear, concedesse a mão de dona Judite de Alvear, futura duquesa, para casar-se com o seu sobrinho dom Lourenço.

O duque acostumado a tomar decisões rápidas disse que concordaria caso ela, a baronesa também aceitasse reatar o compromisso entre eles, que fora desfeito por imposição do seu pai e que, depois dele ficar viúvo, dom Jorge, na época barão de Cantaria, pai de dom Lourenço, irmão e tutor de dona Leonor, não permitiu o matrimônio.

Sem uma definição, a conversa ficou para ser decidida noutro dia.

Os dias transcorreram sem alterações no estado de saúde de dom Lourenço. A baronesa ainda não se recuperara totalmente dos problemas causados pelo acidente e agora apresentava a mesma tosse constante do sobrinho, por isso resistia em aceitar a condição imposta pelo duque para a realização do casamento dos jovens.

Apesar da brancura da pele de dona Judite, a palidez de sua face, antes rosada, era a cada dia, mais evidente.

Malakê, a cigana, pressentira que a desgraça iria se abater sobre aquela família e resolveu abandonar aquele castelo para sempre.

Colocou num pequeno saco amarrado na cintura, todo ouro que conseguiu retirar do cofre cuja chave ela sabia onde o duque guardava e foi buscar a parte do prêmio que dom Lourenço lhe prometera em troca do silêncio sobre os seus encontros noturnos com dona Judite.

Naquela manhã de sol forte, depois que o criado saiu do quarto com o vaso dos excrementos, Malakê, a cigana, apareceu nos aposentos de dom Lourenço, surgida por uma portinhola por detrás do espaldar da cama, para exigir a sua parte do ouro do prêmio. Que dom Lourenço cumprisse o combinado ou o segredo deles seria revelado imediatamente.

A situação estava ficando insustentável uma vez que Judite já estava com evidentes sinais de gravidez.

Incapaz de antever as consequências do seu gesto, dom Lourenço expulsou Malakê do seu quarto fazendo-lhe ameaças.

Enquanto isso, a baronesa dona Leonor e dom Nicolau, o duque, estavam acertando a compra dos animais de carga, os quais o duque fizera questão de mostrar-lhe pessoalmente.

Na saída do estábulo, quando estavam lavando as mãos no bebedouro dos animais, Malakê aproximou-se e com voz decidida falou:

- senhor duque, a vossa filha está prenha e o causador é dom Lourenço, sobrinho da baronesa.

Um misto de ódio e surpresa se estampou nos rostos dos dois que, atônitos, ficaram se olhando por algum tempo, enquanto a cigana voltava para dentro os aposentos de dona Judite.

Não podia ser verdade. Dom Lourenço, barão de Cantaria, um nobre, um cavaleiro, conhecedor das regras sociais, não poderia ter cometido uma ofensa desse quilate ao seu anfitrião.

A baronesa horrorizada correu para dentro do castelo a fim de ouvir do próprio sobrinho a confirmação daquela notícia desastrosa.

Por ordem do duque Nicolau foram todos levados para o grande salão do castelo.

A baronesa dona Leonor, o seu sobrinho dom Lourenço, dona Judite a herdeira do duque e Malakê a dama de companhia a quem fora confiada a guarda da jovem.

A baronesa chorava mansamente procurando as palavras para dizer ao duque, seu primo, que a melhor solução seria o casamento imediato dos dois, enquanto ouvia a confissão do sobrinho de que, por diversas noites estivera nos aposentos da jovem, que dormiram abraçados e que, se de fato ela estivesse grávida o filho era dele sem sombra de dúvida.

Dom Lourenço, visivelmente abatido pela febre constante, permanecera sentado com apenas o rosto à mostra por entre as cobertas.

Dona Judite, encolhida numa poltrona mantinha os olhos fixos no chão.

Malakê, de pé junto à lareira, observava, muda, os participantes da reunião.

O duque irritado e profundamente magoado com a situação caminhava incessantemente de um lado para o outro no salão ricamente ornamentado.

A baronesa quebrou o silêncio sepulcral da reunião:

- eu não vejo outra alternativa dom Nicolau, se não o imediato casamento dos dois, e que esse caso não saia dessa sala.

- senhor duque, sua filha e eu nos amamos desde sempre. Nossas vidas estão entrelaçadas...

- e por causa disso o senhor trouxe a desonra para a minha casa?

- não há desonra senhor, nós nos amamos.

- o senhor é um cavaleiro e bem sabe que honra se lava com sangue.

- eu estou disposto a enfrentar qualquer campeão que o senhor indicar.

- não dom Lourenço, a honra da minha casa deve ser restaurada por mim mesmo e por isso devo condená-lo à morte...

- se dom Lourenço morrer eu morrerei com ele meu pai...

- sim minha filha. A senhora morrerá para o mundo porque ainda hoje será levada para o mosteiro de onde jamais sairá e a senhora, dona Malakê, ficará presa no calabouço para sempre por não ter cumprido a missão de zelar por minha filha. Dona Leonor eu quero que a senhora saia imediatamente de minha casa e que nunca mais torne a entrar nela...

Dom Lourenço de Cantaria foi levado pelos guardas e decapitado pelo carrasco no pátio interno do castelo.

Dona Leonor, depois de receber o corpo do sobrinho, voltou para seu castelo e foi consumida pela tuberculose sem nunca mais ser vista em público.

Dona Judite depois de assistir a morte do seu grande amor, trancou seu quarto e enforcou-se.

Malakê foi levada para o calabouço, mas por conhecer todas as saídas secretas do castelo, fugiu levando consigo as bolsas com o ouro retirado do cofre e as cinquenta onças do prêmio recebido por dom Lourenço, barão de Cantaria.

Nas semanas que se seguiram, só e abatido, dom Nicolau, o duque de Alvear, com o corpo tomado por pústulas, lembrava-se todos os dias das últimas palavras de dom Pepe.

A maldição se cumprira...