HISTÓRIAS DE AMOR E ÓDIO III

Capítulo III – A revelação, o crime e o castigo

E aconteceu que naquela mesma noite em que se reencontraram os jovens dom Lourenço, barão de Cantaria com a dona Judite, herdeira do ducado de Alvear, a história deles teve que ser revelada pela cigana Malakê.

- qual é a explicação para isso que eu estou sentindo Bá? Como se explica que eu nunca tenha visto esse homem e ao mesmo tempo sinta que ele é tão íntimo, tão familiar, como se fizesse parte de mim. E ele também pensa assim, ele também sente a mesma coisa. Você ouviu o que ele disse? Ele falou que nós somos esposos, somos amantes, que nos conhecemos desde sempre, que os nossos destinos estão unidos em um só.

A cigana procurou, por todos os meios, se ver livre daquela cobrança constante, mas Judite estava disposta a passar toda a noite acordada e sem deixar Malakê em paz até que a cigana saciasse a sua curiosidade.

Sentada num tapete felpudo e colorido, semi recostada em almofadas de seda a cigana segurava a mão de Judite, mas seu olhar estava num ponto qualquer muito além do rosto da jovem.

- A história dessa encarnação é muito triste porque vocês não ficarão juntos.

- por que Bá? Por que não podemos ficar juntos.

- por causa de tudo que está acontecendo agora e pelas dívidas das encarnações anteriores de vocês dois.

- e o que é encarnação Bá?

- é nascer várias vezes.

- mas o frade disse que nascemos só uma vez e que quando morremos a nossa alma, que é imortal, fica num canto, parece que é purgatório o nome desse lugar, esperando a vinda do nosso senhor, no dia do juízo final...

- ele diz isso, mas meu povo conta a história diferente...

- conta Bá, conta, vai...

- é assim: deus criou as almas gêmeas e muitos mundos iguais ao nosso e colocou essas almas nas pessoas que ele também criou. Com o passar do tempo, essas pessoas que foram criadas iguais a deus, foram revelando o seu lado mau, seu lado perverso.

- mas deus não é mau nem perverso.

- é sim minha filha. Deus é bondade, mas também é maldade como todos nós. Ele deixa nascerem criancinhas aleijadas, cegas, deixa os homens se matarem em guerras. Na bíblia, que é o livro sagrado da sua religião, deus manda trair os amigos para que o seu povo eleito roube as riquezas daqueles que lhe deram abrigo e que depois matem todos os recém nascidos. Deus também matou todos os primogênitos dos egípcios quando Moisés levou os judeus para o deserto. Ele fez o povo vagar sem rumo durante quarenta anos e foi também deus quem condenou as almas gêmeas a se separarem e viverem muitas vidas por todos os mundos que ele criou, até que um dia, depois de muito sofrimento, venham a se encontrar para viverem felizes até que revelem as maldades outra vez.

- então quer dizer que a alma desse homem é a alma gêmea da minha?

- eu estou vendo que é, mas ainda não é dessa vez que vocês ficarão juntos porque há muito ódio nessa família onde vocês nasceram...

E naquele tempo aconteceu que os assaltantes da estrada, depois de esquartejar o cavalo abatido por ter quebrado a perna com o acidente que também danificou a roda do coche, os assaltantes foram examinar o interior do veículo tombado, a fim de conseguir alguns despojos. Numeriano permaneceu imóvel, fingindo estar morto.

- dom Pepe tem um homem aqui. Parece morto.

Dom Pepe, homem corpulento e de atitudes rudes, aproximou-se da portinhola. Calmamente examinou o interior do coche e disse aos seus companheiros de roubos e assaltos a viajantes.

- tirem esse homem daqui, ele tem muito o que falar pois está tão vivo quanto nós e, por fingir-se de morto é sinal de que espera por alguém que venha em seu socorro.

Numeriano levantou-se e saiu do coche de mãos para cima em sinal de rendição.

Dom Pepe quis saber tudo sobre ele, de onde era, para quem trabalhava e deixou bem claro que se ele não colaborasse, iria sofrer tanto que pediria para morrer.

Os homens reviraram o coche e pelas roupas finas da baronesa e do sobrinho dela, dom Pepe achou por bem levar o cocheiro para poder pedir o resgate, porque estava evidente que se tratava de gente muito rica.

Dom Pepe e seus sicários esconderam-se na mata ao ouvirem o tropel dos cavaleiros que vinham prestar socorro. Sob as luzes das tochas, os guardas ajudaram ao ferreiro a substituir a roda do coche, atrelaram os cavalos levados para esse fim e quando se punham em marcha, dom Pepe, oculto pela mataria e pela escuridão da noite, gritou a plenos pulmões:

- se quiserem ver seu cocheiro vivo outra vez terão que pagar dez onças de ouro em pó. O resgate deverá ser no por do sol de amanhã e a bolsa contendo o ouro deverá ser pendurada na árvore do caminho, marcada com um pano vermelho.

Logo que ouviram as primeiras palavras os guardas se posicionaram em torno do coche em posição de defesa e permaneceram assim por longo tempo depois que o recado fora dado.

Nenhum movimento foi percebido e só foram ouvidos os ruídos da noite e o gotejamento da tempestade que findava.

Os homens de dom Pepe já estavam bem longe quando o grupo do duque se pôs, outra vez em movimento.

E aconteceu que naquele tempo, quando o cocheiro Numeriano foi levado pelo bando de dom Pepe para o rancho afastado do castelo do duque de Alvear, o ferreiro e os guardas que tinham ido resgatar o coche chegaram com a notícia do pedido de resgate.

O duque preferiu esperar o amanhecer para dar a notícia à dona Leonor quando estivessem reunidos para as orações das Matinas.

- não darei um cêntimo sequer para o resgate.

Disse a baronesa que estava desfigurada, com o rosto inchado e muito vermelho. Ardia em febre e mal se sustinha de pé.

- se o senhor duque me ceder alguns homens eu irei pessoalmente resgatar nosso cocheiro e os nossos pertences roubados – disse Lourenço.

- muito bem meu rapaz, assim que estiverem prontos, dez dos meus guardas o acompanharão com os cães rastreadores.

Já no portão do castelo, o duque ordenou ao chefe dos guardas:

- procure dom Pepe. Isso tem a sua marca registrada e dessa vez ele não escapará.

Os cavaleiros foram diretamente para o pequeno grupo de casas que nem chegavam a formar uma aldeia, onde moravam dom Pepe e a maioria dos seus parentes e seguidores. Entraram no que parecia ser um albergue de estrada e pediram vinho. Dom Pepe, pessoalmente, trouxe a jarra com o vinho e os copos de metal. Quando estava despejando o líquido cheirando a vinagre no primeiro copo, Lourenço segurou seu braço com força e disse à meia voz:

- se o senhor não me entregar meu cocheiro e tudo o que roubou de mim agora mesmo, eu matarei toda a sua família.

Com cara de espanto, dom Pepe argumentou:

- não sei do que o senhor está falando...

- mas com certeza sabe daquele couro de cavalo, do meu cavalo, que esteve atrelado ao coche e que agora está lá fora, estirado nas varas para secar e, por pura coincidência, dessa adaga que eu forjei para o cocheiro Numeriano que o senhor sequestrou do coche acidentado.

- não senhor, eu não sei do que o senhor está falando, porque essa adaga eu recebi de um homem que passou por aqui durante a chuva de ontem, para se aquecer junto ao fogão, comer e beber um pouco de vinho.

Dois dos guardas entraram no salão trazendo o baú da baronesa.

- e esse baú, dom Pepe, foi recebido também em pagamento pela hospedagem de alguma dama?

Outros dois guardas trouxeram Pablito, o rapazinho filho de dom Pepe quase pendurado pelos braços enquanto outro trouxe a filha, a jovem Carmina, algemada.

- então dom Pepe, vamos negociar ou o senhor prefere vê-los com as gargantas cortadas com a sua adaga nova?

Pela porta atrás do balcão ensebado do albergue, surgiram dois outros guardas conduzindo dona Agostina, mulher de dom Pepe. Agora toda a família estava a mercê de Lourenço...

- então dom Pepe, o senhor não vai colaborar?

Em resposta ao silêncio tenso do salão dom Lourenço ordenou.

- capitão, esfole as costas desse rapaz.

- não, Pablito não, pelo amor de deus... Tenha misericórdia senhor, o meu filho não fez mal algum... gritou dona Agostina.

- diga-me então onde estão os meus pertences e o meu cocheiro e eu os deixarei livres.

- nós não sabemos de nada, antecipou-se dom Pepe.

Sentado num canto escuro do salão, um homem de meia idade cuja fisionomia denunciava seu retardamento mental disse com voz alta e clara:

- Martinho não gosta de guardas. Os guardas de dom Pepe bateram em Martinho para ele ficar calado. Para não dizer nada. Martinho não gosta de ver o homem de casaco verde. Ele disse que todo mundo vai morrer se ele não voltar para o coche...

Dom Pepe esbofeteou o louco...

- com que então dom Pepe, o senhor não sabe nada sobre o meu cocheiro... será que foi esse louco que assaltou o coche, carneou o cavalo, colocou o couro nas varas e mandou o recado sobre o resgate? E para o Capitão,

- esfole o rapaz.

Interpondo-se entre dom Lourenço e o seu filho Pablito, dom Pepe disse com desdém:

- não adianta torturar o meu filho. Seu cocheiro já está morto. Ele não queria colaborar...

Diante dessa confissão, seguiram todos para o castelo do duque.

E aconteceu que naquele tempo em que o roubar era crime inferior apenas ao de lesa majestade, dom Nicolau teria que estabelecer a pena que deveria servir de exemplo para que todos os que dela tivessem conhecimento não se sentissem encorajados a praticar novos roubos ou furtos. Diante dos moradores do seu feudo e dos arredores dom Nicolau sentenciou:

- dom Pepe seria enforcado no alvorecer do dia seguinte; Pablito seria castrado imediatamente; dona Agostina seria cegada com ferro em brasa e Carmina, seria ferrada com o sinal que indicava que ela era prostituta de estrada e depois entregue aos guardas para ser seviciada. A casa de dom Pepe seria queimada e as posses da família doadas à igreja. A nenhum morador seria permitido dar qualquer ajuda aos remanescentes daquela família que devia ir para bem longe e jamais voltar.

De nada adiantaram as lamentações nem os pedidos de clemência da família de dom Pepe, a sentença seria cumprida sem misericórdia nem piedade.

E assim, depois de amordaçado e sem roupas, Pablito foi levado para o cadafalso e fortemente amarrado ao tronco vertical da forca. O carrasco retirou da bainha de couro cru, a faca de lâmina curta com a qual esfolava animais abatidos para o consumo e calmamente extirpou os testículos do rapaz que nem teve a possibilidade de gritar por causa da dor que estava sentindo.

E como se faziam com os animais castrados, o ferimento foi tamponado com cinza para conter o sangramento e evitar infecção.

Dona Agostina foi trazida para o cadafalso e o carrasco retirou do fogareiro a lâmina de ferro em brasa e queimou-lhe os dois olhos.

Carmina subiu ao cadafalso, amordaçada, algemada e com o tronco nu, foi marcada no peito e braço esquerdos com a flor de lis.

O silêncio quase palpável dos que acompanhavam a cena foi quebrado pela voz forte de dom Pepe:

- maldito seja para sempre o duque de Alvear e toda a sua descendência. Que a mão negra de satanás derrame o fel da discórdia em sua vida miserável e que a lepra e a febre corroam seu corpo para sempre...

- enforquem agora esse miserável...

Em pouco tempo o corpo de dom Pepe estava pendurado na forca balançando por sobre o tablado do cadafalso onde permaneciam Pablito e as duas mulheres...

O povo foi, aos poucos, abandonando a praça do feudo. Os guardas levaram a moça para dentro do alojamento, onde seria realizada a segunda parte da sentença e bem poucos viram quando Ulraca, a velha que todos acreditavam ser bruxa, levou para sua casa a cega e o castrado que mal se punha de pé por conta da dor e do sangramento.

Nos dias que se seguiram os abutres consumiram a maior parte das carnes de dom Pepe e os frades foram pedir a dom Nicolau que autorizasse o sepultamento dos restos mortais, afinal, tratava-se de um cristão...

- pode fazer o sepultamento daquele maldito infeliz, desde que seja bem distante das minhas terras...

E algum tempo depois, numa madrugada muito fria, quando todos ainda dormiam, Carmina conseguiu fugir do alojamento dos guardas e três vultos se esgueiraram pela mataria a partir dos fundos da casa da velha bruxa.