HISTÓRIAS DE AMOR E ÓDIO II

Capítulo II – Primeiro encontro.

E aconteceu que ao ficar só na estrada, Numeriano, o cocheiro, procurou agasalhar-se dentro do coche tombado porque fazia frio e o oleado que ele estava usando já estava encharcado.

Os raios não cessavam e os trovões eram de ensurdecer.

Dentro do coche além das malas que ele colocara haviam as almofadas e as cortinas que muito bem serviriam para mantê-lo aquecido até a chegada do socorro.

Em pouco tempo ele ouviu vozes estranhas e por precaução, manteve-se dentro do coche.

Eram vozes masculinas exultantes de alegria por terem encontrado um cavalo, recém abatido por causa da pata quebrada, e que poderia ser carneado para o consumo sem medo de doenças.

Rapidamente tiraram o couro do animal e esquartejaram para facilitar o transporte até o local de salgar as carnes que dariam para alimentar muitas pessoas por um bom espaço de tempo.

Enquanto isso no castelo, Lourenço, levantando-se do banco onde esteve sentado para sorver às pressas todo o caldo de legumes disse :

- senhor duque tenho que voltar para socorrer nosso cocheiro e resgatar as bagagens que ficaram no coche com a roda quebrada.

Dom Nicolau, duque de Alvear, que até então mantivera sua atenção voltada exclusivamente para dona Leonor, olhou com espanto e ao mesmo tempo curiosidade para aquele rapaz alto e magro, cujos cabelos escuros escorriam pelos ombros largos próprios de cavaleiros acostumados aos jogos.

- quem é este moço, minha querida dona Leonor?

- é o senhor Lourenço, barão de Cantaria, meu sobrinho, que órfão ficou sob os meus cuidados depois que a peste levou os seus pais.

- é o filho de dom Jorge?

- sim.

- eu imaginei que ele também tivesse morrido com a peste.

- ele estava comigo no sul da França...

- não se preocupe, meu caro jovem, com o socorro do seu cocheiro e com o resgate dos seus pertences. Mandarei os meus guardas.

Dizendo isso dom Nicolau dirigiu-se a um homem corpulento que permanecera de pé ao lado do enorme fogão.

- leve também uma roda e o ferreiro para consertar o coche e trazê-lo para cá. E para dona Leonor:

- pois bem minha cara, a senhora ficará nos aposentos dos hóspedes, junto com seu sobrinho até que tenha condições de viajar outra vez.

E fez um gesto para que a mulher, que parecia ser a governanta do castelo, levasse a baronesa.

Lourenço quis agradecer ao duque pela hospitalidade, mas esse já havia abandonado o local.

Dona Leonor perdera muito sangue, estava cansada, fraca e sem ânimo para não aceitar as ordens daquele homem, seu primo por parte de mãe, a quem esteve prometida quando ainda muito jovem.

Devido aos interesses financeiros, o duque pai de Nicolau desfizera o compromisso entre os primos nobres e obrigou o filho a casar com a burguesinha milionária, cujo dote, iria tirá-los das aperturas financeiras e restaurar a fortuna da família.

Diante dessa atitude, considerada ofensa imperdoável, dom Jorge, irmão de dona Leonor, cortou as relações com toda a casa de Alvear e nunca mais, os antigos comprometidos, tiveram notícias um do outro.

Dona Leonor, desgostosa com o rompimento do noivado quis entrar para o convento, mas dom Jorge proibiu e arranjou o casamento dela com um nobre que contraiu a peste bubônica e veio a falecer antes do matrimônio. Dom Jorge e a sua esposa, também contraíram a doença e morreram.

Dona Leonor dedicou-se à criação do sobrinho e à administração das terras e do castelo da família até que Lourenço atingisse a maioridade para assumir o título de barão e o controle da fortuna.

As luzes das candeias tornavam a noite ainda mais tenebrosa ao projetar as sombras espectrais nas paredes escuras e pelos intermináveis corredores do castelo.

Nos aposentos de hóspedes, deitado, olhando o teto, Lourenço se sentia perturbado pelos gemidos da baronesa, e cada vez mais impotente por não saber nada de medicina que pudesse aliviar o sofrimento dela.

A mulher do castelo dissera que aquele remédio era quase milagroso e que resolveria o problema. Que a baronesa só precisava repousar por alguns dias e alimentar-se bem, nada mais que isso.

Lourenço levantou-se, andou por algum tempo dentro do quarto e resolveu que iria ver a sua tia. No quarto da baronesa, colocou a mão sobre a sua testa e sentiu o quanto ela estava febril. Ajustou a manta a fim de melhor agasalhar a sua tia e saiu do quarto em busca de socorro.

O corredor estreito e longo estava mergulhado na penumbra alimentada por velas votivas acesas nos nichos com imagens de santos.

A tempestade diminuíra de intensidade, mas a chuva fina continuava alimentando o tamborilar das goteiras no assoalho de madeira.

Um cachorro passou em desabalada carreira, perseguindo um gato gordo com algo na boca... Talvez um rato.

Eram muitos os ratos principalmente nessa época do ano em que os paióis estavam abarrotados.

De repente o clarão de uma candeia e som de passos. Lourenço, instintivamente, ocultou-se atrás de uma saliência na parede que, pelo calor que emanava, devia tratar-se da chaminé que começava lá em baixo, no fogão, e se projetava para o alto, bem acima da torre do castelo.

Uma mulher de meia idade, magra, com as roupas coloridas das ciganas e com chalé negro sobre os ombros, trazia numa das mãos uma tigela e na outra um balde de madeira com algo fumegando, ao seu lado uma moça, talvez da mesma idade que Lourenço, vestida com camisolão branco, trazia a candeia e perguntava em voz baixa:

- Bá, quem é ela?

- eu já lhe disse minha filha, e a senhora dona Leonor, baronesa de Cantaria.

- e o que ela veio fazer aqui?

- ela sofreu um acidente na estrada, por isso veio para cá, a pé, debaixo de toda essa chuva, coitada.

- de onde você a conhece? Heim, Bá, de onde? E por que meu pai não quer que eu vá aos aposentos dela? Por que não quer que eu fale com ela?

- se você ficar quieta, depois que eu der esse chá à baronesa e coloque essa poção no quarto, eu posso lhe contar parte da história. Agora não. Fique aqui e espere por mim.

- mas Bá, por que eu também não posso entrar? Eu lhe ajudo a cuidar da baronesa...

- porque o senhor seu pai disse que não. A baronesa não está só e o senhor seu pai não quer você conversando com estranhos.

- e quem é que está com ela? Heim Bá? Quem é?

- é o sobrinho dela, um cavaleiro, e o senhor seu pai não quer que você o conheça...

- por que não, Bá? O que é que ele tem?

Sem dar resposta, a cigana Malakê entrou no quarto e fechou a porta, deixando a moça só, com a candeia na mão, no imenso corredor.

Lourenço que a tudo assistira, ficou paralisado diante da beleza angelical de Judite e sentiu-se tomado por uma agradável sensação de deslumbramento.

Ele sentiu como se Judite fizesse parte de sua vida desde sempre e um forte impulso de abraçá-la. Saiu da escuridão e aproximou-se.

Judite ao vê-lo, sentiu o mesmo impulso e os dois se abraçaram.

E naquele espaço de tempo em que Bá esteve com a baronesa, aconteceu o reencontro dos dois jovens, Judite a futura duquesa de Alvear e Lourenço, barão de Cantaria.

Instintivamente eles se abraçaram e durante o longo beijo a candeia caiu da mão de Judite, mas eles não deram conta disso. Era como se o mundo tivesse se concentrado naquele momento de felicidade, de reencontro, de ressurgimento da paixão há muito tempo adormecida.

Ainda abraçados, Judite lembrou em voz alta:

- meu pai não quer que eu fale com estranhos...

- mas eu não sou estranho, sou Lourenço, seu admirador, seu escravo, seu amante em muitas vidas e o serei em tantas quantas tiver...

- como o senhor pode dizer isso?

- isso o quê? Perguntou Lourenço como que saído de um sono profundo.

- que o senhor é meu admirador, meu escravo, meu amante...

- eu não sei, nem sequer sei o que lhe falei, mas é isso que estou sentindo...

- eu também sinto a mesma coisa...

Tomados pelo mesmo impulso, os dois jovens tornaram a se abraçar e o beijo só foi interrompido quando Bá, batendo nas costas de Lourenço, com os dois punhos fechados dizia em voz alta:

- largue a minha menina, largue a minha menina...

Como que despertados de sono profundo os dois olharam para Bá sem entender direito o que ouviam. Para eles aquele beijo era mais do que natural. Eles se amavam tanto...

- venha comigo Judite. Solte a minha menina...

A muito custo Bá conseguiu desvencilhar Judite dos braços de Lourenço. Ele não oferecera resistência, era Judite que, quanto mais Bá tentava separar os dois, mais ela se aninhava junto ao corpo daquele homem estranho e inexplicavelmente íntimo, esposo e amante intenso.

Ainda de mãos dadas seguiram pelo corredor sombrio até a porta dos aposentos que Judite dividia com sua Bá desde que ficara órfã de mãe.

- o senhor não vai entrar aqui...

- então eu ficarei aqui fora com ele...

- minha filha, seu pai não vai gostar nada disso que você está fazendo...

- mas Bá, esse homem é meu esposo...

- como seu esposo minha filha? Se nunca o vimos, como você pode dizer isso?

- eu não sei explicar. Eu apenas sinto.

Finalmente Bá conseguiu que Judite entrasse e fechou a porta deixando Lourenço parado no corredor, como que hipnotizado, segurando a candeia apagada que Bá recolhera do chão.

Dentro do quarto, Judite pediu a Bá que lhe explicasse o que estava acontecendo com ela, qual era a razão daquilo tudo.

Desde muito pequena, quando ainda morava no acampamento com a sua tribo, a cigana Malakê, a quem Judite chamava de Bá, revelara dons especiais de narrar fatos do passado e os de adivinhação do futuro das pessoas, que ela via nas linhas das mãos e que descrevia com detalhes assustadores.

Ela sabia que ficaria só quando foi pedir asilo no castelo do duque de Alvear, avô de Judite, porque antevira que toda a sua tribo seria dizimada pela peste e foi testemunha da imensa tristeza que se abateu sobre o jovem Nicolau quando, obrigado pelo pai, não cumpriu o compromisso do matrimônio com a dona Leonor, baronesa de Cantaria, para casar-se com Maria, a burguesinha que morreu de parto na sexta gravidez da qual nascera Judite que foi entregue aos seus cuidados.

As cinco primeiras crianças foram abortadas bem antes do término da gravidez por isso, Judite seria a herdeira do título e de toda a fortuna.

Uma vez viúvo dom Nicolau procurou o primo para tentar restaurar o compromisso com a dona Leonor, mas dom Jorge, o irmão mais velho da baronesa, nem sequer o recebeu pois considerava que a ofensa sofrida era irretratável, já havia cortado todas as relações com esse tronco da família, mandara que a irmã fosse viver com Lourenço no sul da França, numa vila às margens do mar Mediterrâneo.

E aconteceu que naquele tempo novo surto da peste se espalhou pelas cidades dizimando centenas de pessoas. A maior parte dos castelos se fechou, ninguém entrava ou saía. Somente os monges, quando eventualmente apareciam é que recebiam autorização para entrar, mas deveriam permanecer no pátio aonde receberiam alimentação, as esmolas e podiam celebrar as missas, batizar os recém-nascidos ou quaisquer outros ofícios religiosos desde que não tocassem em nada nem em ninguém e foi um desses monges que trouxe a notícia da morte da família do barão de Cantaria mas, sem falar que a dona Leonor e Lourenço, por estarem muito longe, não contraíram a doença.

Diante de tantas noticias ruins o duque Nicolau fechou-se, ainda mais, em seu castelo e deixou a filha Judite entregue exclusivamente aos cuidados de Malakê.