HISTÓRIAS DE AMOR E ÓDIO I

Capítulo I – O acidente.

E naquele momento aconteceu o que mais se temia. Uma das rodas partiu-se ao meio no choque com a enorme pedra do lado direito da estradinha severamente castigada pela enxurrada.

A chuva que começara logo após o almoço, comido às pressas apenas para amenizar a fome e enquanto os cavalos eram trocados, foi se transformando em tempestade com muitos raios e trovões. Rapidamente a noite se abateu sobre o caminho estreito em meio às imensas árvores que, impotentes diante do vento forte, se curvavam quase a bater no chão.

Os muitos galhos quebrados e levados pela força do vento ameaçavam atingir o cocheiro e os cavalos assustados naquele ambiente ameaçador.

Dentro do coche, dom Lourenço tentava conter a ansiedade e acompanhava mentalmente as orações balbuciadas por dona Leonor, a baronesa de Cantaria.

Dom Lourenço se posicionara contra a viagem no mesmo instante em que o mordomo Rafael veio comunicar que a sua tia e mãe de criação queria falar-lhe com urgência.

Não adiantaram os argumentos de que ele estava ocupadíssimo com a confecção da espada longa que usaria no torneio do dia de São Lourenço, seu padroeiro e protetor.

- no castelo do barão tem forja e você terá muito tempo para terminá-la. Eu quero ir hoje. Agora. E se você não for comigo, irei só. Eu e deus que nunca me abandonou...

- eu acho que vamos nos arriscar a ficar na estrada com esse tempo. Olhe pelas janelas, senhora minha tia, e verá que eu tenho razão.

- o dia está ensolarado e a brisa morna. Muito bom para viajarmos.

- mas é exatamente por isso. Nessa época do ano, sol forte e brisa morna são prenúncios de violentas tempestades...

Não adiantaram os argumentos do sobrinho. Os cavalos já estavam arriados e as malas da baronesa já haviam sido levadas para o coche. Lourenço não teve alternativa. Mandou que embarcassem o seu baú de roupas, a armadura, as armas e eles saíram imediatamente.

Com a quebra da roda, o coche desequilibrado pendeu para o lado derrubando um dos cavalos que teve a perna quebrada.

Dona Leonor bateu com a cabeça na porta e ficou sangrando pelo corte no supercílio.

Lourenço apesar do susto não se machucou.

Numeriano, o cocheiro, conseguiu pular antes que o coche tombasse e sem muito esforço ajudou os dois a saírem pela portinhola almofadada. Os cavalos foram desatrelados.

Um deles com a perna partida teve que ser sacrificado.

O corte no supercílio da dona Leonor parou de sangrar depois que o cocheiro tamponou com esterco e pressionou com o lenço que segurava o chapéu da elegante senhora. Apreensivo, Lourenço disse:

- precisamos de ajuda para desvirar o coche...

- não adianta senhor, estamos sem uma das rodas. Não tem como fazer o coche andar com apenas três.

- mas não podemos ficar debaixo de toda essa chuva. Teremos que improvisar ou ir procurar um abrigo...

- é melhor que o senhor leve a baronesa. O cavalo é manso, vai aceitar a montaria.

- mas ele não vai aguentar nosso peso.

- o senhor vai puxando. É melhor saírem logo daqui. Há muitos assaltantes nessas estradas. Eu ficarei esperando aqui e tomando conta do coche até que o senhor volte com o socorro. Estamos próximos do castelo de Alvear.

Auxiliada pelos homens a baronesa, depois de várias tentativas, conseguiu finalmente firmar-se sobre o cavalo. Ela fora habituada a cavalgar com cilhão, em pelo era a primeira vez. Seguiram pela estradinha enquanto a chuva continuava e a mataria do entorno era fustigada pelo vento cada vez mais forte.

Logo após a curva, quando iniciaram a subida íngreme, um raio seguido de terrível trovão, fendeu um pinheiro que em chamas, desabou a poucos metros, na frente do cavalo. Assustado, o animal empinou derrubando a baronesa.

Lourenço largou a rédea para socorrer a tia e o cavalo, em desabalada carreira, desapareceu na bruma.

Não adiantava voltarem para o coche tombado. Teriam que seguir em frente...

Bem mais adiante avistaram por entre as árvores, o vulto enorme do castelo Alvear. Por entre troncos caídos e pisando em terreno encharcado chegaram finalmente em frente à porta com duas aldravas em forma de cabeça de leão.

Lourenço bateu uma, duas, três vezes sem que houvesse resposta. Dona Leonor disse que provavelmente ninguém iria atender num temporal daqueles e que eles deveriam voltar para a estrada e caminhar até que encontrassem abrigo num rancho ou estalagem ou mesmo na casa de um camponês.

Antes de ceder às recomendações da baronesa, Lourenço bateu com mais força outras duas vezes, como última alternativa.

Uma voz rouca e sonolenta do outro lado da porta falou:

- louvado seja nosso senhor Jesus cristo! E Lourenço respondeu quase gritando.

- para sempre seja louvado o seu santo nome.

Algum tempo depois a portinhola, na altura dos olhos, foi semiaberta e a luz da candeia clareou o rosto de Lourenço.

- quem vem lá?

- é de paz. Minha tia e eu precisamos de abrigo e de socorro para estancar a sangria por causa do acidente e para resgatar nosso coche.

Com a portinhola ainda entreaberta, apareceu parte do rosto enrugado, tentando confirmar pela visão o que tinha sido ouvido.

- quem é o senhor? E a outra pessoa?

- Lourenço de Cantaria e a senhora dona Leonor, baronesa de Cantaria, minha tia e mãe de criação.

- esperem. E a portinhola foi fechada.

O som dos trovões parecia cada vez mais ameaçador e os raios cortavam as nuvens negras projetando sombras fantasmagóricas nas paredes de pedra do castelo que, assim de perto, parecia bem maior. Algum tempo depois, o som dos ferrolhos de ferro sendo deslocados se fez ouvir e por uma das almofadas laterais, abriu-se a passagem estreita e de baixa altura.

- entrem!

A comissão de recepção, além do velho segurando a lamparina, tinha dois guardas com espadas em punho e vários cães de pequeno porte, rosnando entre os visitantes e dois bem maiores, que contidos por lacaios, ladravam ameaçadoramente.

Lourenço ajudou sua tia a entrar, a portinhola foi fechada com ferrolhos e trancas e os dois foram levados ao que parecia ser a cozinha do castelo e depois de receber mantas para agasalhar, acomodaram-se junto ao fogão.

Lourenço disse a uma senhora com cara de poucos amigos.

- a minha tia precisa de cuidados nesse corte.

- já vou providenciar. Disse a mulher entre dentes enquanto colocava as tigelas com caldo fumegante sobre a mesa manchada de gordura.

- minha querida dona Leonor, que dia complicado para uma visita. Disse o duque Nicolau de Alvear, entrando na cozinha com enorme sorriso. Mas o que foi isso que lhe aconteceu? A senhora está sangrando muito.

- já vou cuidar. Disse a mulher da cara de poucos amigos se aproximando com um pano embebido com algo escuro e de odor forte.