O rapaz das duas cabeças

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Aba e Beno

Quase que adivinhava que iria ser um dia como outro qualquer . O despertar, esse, era sempre o mesmo.

Uma pequena alteração da consciência e o ligeiro vestígio da presença da luz que se espremia por entre as cortinas de risquinhas azuis. Era sempre assim; primeiro era a visão que abria caminho; de seguida viria o olfacto.

O odor do seu próprio corpo aquecido por camadas de lençóis e cobertores; a sugestão de cheiros do pequeno-almoço que tinham pacientemente rastejado pelas escadas da cozinha para o primeiro andar.

Café, leite quente, torradas, ovos e compotas, tudo embrulhado com a pungência do bacon.

Por ultimo e invariavelmente, a audição. E com esta, o ressonar colossal do idiota que dormia ao seu lado.

De estranhar ser sempre este o ultimo sentido a ganhar vida. Até porque a causa do ronco residia a uns meros quinze centímetros de distância do seu ouvido direito e era constantemente acompanhado pela saraivada de saliva em forma de borrifo.

Aba suspeitou sempre que isto não era uma casualidade; era sim a forma macabra da natureza desfrutar da sua condição.

Dava-lhe sempre uns primeiros momentos do dia para ele imaginar como poderia ter sido; para depois esbofeteá-lo com aquilo que era.

Voltou a cabeça para o seu lado direito e com este gesto deslocou a causa do ruído de uma distância segura de quinze centímetros para uma perigosa proximidade de cinco.

Levantou o máximo possível a cabeça da almofada, movimento que não era feito sem esforço, mas que a repetição ao longo dos anos o tinha elevado ao nível de mestre.

O inicio da manhã principiava com um costume de quase seis anos. Aproximou a boca do ouvido direito de Beno e gritou o mais alto que pode – Acorda idiota, ranhoso… besta...

Já a algum tempo que suspeitava que esta rotina tinha ensurdecido completamente o lado direito de Beno; mas os possíveis remorsos não apagavam a satisfação das pequenas vinganças.

Mas vingança do que? Beno tinha tanta culpa de ter crescido aconchegado ao seu ombro direito, como ele tinha culpa de estar alojado sobre o ombro esquerdo.

A outra parte de si acordou com o bocejar habitual dos grandes brutos felinos; um enorme esgar de boca, um último ronco profundo e a última surtida da baba a escorrer pelo canto da boca.

E a comparação com qualquer animal mais nobre acabava ai.

- Tenho fome, queres comer? Já acordaste? – Ai estava Beno em toda a sua graça e incoerência, patético e sobretudo incomodativo.

Cala-te, por favor – Era indiferente a forma como falava com ele. Beno tudo desculpava porque nada percebia.

Aba continuou deitado, a olhar o teto. Absteve-se do contínuo debitar de palavras que vinha do seu lado, era um truque antigo que vinha a polir desde tenra idade.

De outra forma era impossível manter uma linha de pensamento; supunha que seria assim que muitas pessoas caminhavam na rua, se comportavam no trabalho e existiam na vida. Abafando os ruídos de fundo, ignorando e enfraquecendo todos os sons até só existir uma ligação directa a sua própria cabeça. O problema era que ele tinha duas.

Beno estava sempre mais palrador no inicio do dia. A alegria que demonstrava sempre que acordava era contrastante com a melancolia que normalmente Aba sentia. Só mais tarde durante o dia é que as emoções se equiparavam, havendo mesmo por vezes diálogos coerentes entre as duas faces.

Dialogo que só poderia existir entre os dois. Embora Aba falasse fluentemente a sua língua materna, Beno desde o primeiro dia que conseguiu falar, só se expressava numa mistura improvável de kwadi e hebraico.

Só Aba e uma mão cheia de eruditos linguísticos o entendia, mas ele era o único que conseguia manter uma conversa em tempo real com a sua outra cabeça. Não que ele quisesse falar muito com Beno; aliás… o que ele não queria, era mesmo uma outra cabeça.

Tinha-lhe sido imposto aquele estigma, aquela invasão num corpo que era dele.

Beno era um passageiro muito pouco clandestino, uma caricatura do que ele era e a razão para não poder ser mais.

-Bom, mas tu levantas-te ou tenho eu que sair da cama? Quero pão hoje, pão e leite…e tu vais comer o que? Eu comia também salada, mas a salada faz-me fome – E continuava assim durante muito tempo ou até Aba os levantar aos dois.

Apesar das óbvias diferenças, os costumes matinais dele eram comparáveis aos hábitos de todos os outros jovens de dezassete anos.

Urinava, lavava a cara, penteava-se e escanhoava os poucos pelos da face, que orgulhosamente persistiam em aparecer todos os dias. Fazia-o em frente de um armário de casa de banho com duas portas espelhadas. A porta do lado direito abria-a sempre para não ter que olhar para o outro. Não exigia muito tempo tratar também de Beno. Era imberbe e o cabelo curto não crescia um milímetro de comprimento desde os seus seis anos. Para além da estranheza do seu caso ainda havia os mistérios pessoais de Beno.

A única cortesia que lhe condescendia era a lavagem dos dentes. Com outra escova e alguma destreza, porque Beno só muito dificilmente evitava a tentação de morder e engolir as cerdas do utensílio, acabava a higiene da manhã a limpar os cantos da boca do outro com a toalha húmida.

Vestiu-se. As calças largas que gostava, com muitos bolsos e um tom de cinzento que sempre lhe fazia lembrar o inverno, os ténis brancos já bem roçados a frente e uma das t-shirts especiais propositadamente feitas por um dos gigantes do ramo têxtil. Nunca lhe faltou este tipo de roupa.

O seu caso tinha despertado abundantes atenções, simpatias e embaraços desde o primeiro dia que tinha sido encontrado. De quando em vez voltava a ser noticia, nada de grande como já tinha sido em tempos, mas havia sempre algum pseudo jornalista ou romancista interessado em procurar um novo ângulo da história; algo com substancia e atulhado de humanidade.

Aba detestava este tipo de exposição, mas no entanto compreendia os benefícios que acarretavam. O que não o impediu de deliciar-se numa outra ocasião em que Beno começou a cuspir sem parar para o casaco de um jornalista de pasquim, que teimava em ligar a sua aparição com a aceleração da erosão da pirâmide de Gizé.

De qualquer forma, tinha recebido vários donativos de toda a espécie; a maioria por interesse publicitário, outros por piedade despropositada (do género que afronta bem mais do que ajuda) e alguns, poucos, de pessoas que sem tentar compreendê-lo queriam simplesmente ajudá-lo nas pequenas contrariedades diárias.

Houve alturas que se tinha sentido mais ligado ao seu “irmão”, talvez por hábito, talvez por piedade houve momentos, quando olhava de esguelha para a cara de Beno ou apanhava o seu reflexo em qualquer superfície, sentia até uma espécie de carinho. Nunca houve amizade nem confidencialidade; a situação já era o suficientemente aberrante sem ele tentar fazer de “B” o seu melhor amigo.

Também não existia um verdadeiro ódio, era mais um desconforto. Todos podem aprender a viver com algumas pequenas ou grandes deformidades. O pé chato, a queda precoce do cabelo, o quisto que resolveu desenvolver bem no meio do nariz; mas esta deformidade era excepcional em todas as formas. Não era algo abstracto e fácil de relacionar com a má sorte. Era algo vivo, palpitante que era parte dele, mas tão estranho como uma célula anómala.

Mas tal como já foi dito, houve uma altura ao inicio, que Aba pensou que a sua existência ainda poderia ser viável dentro de um parâmetro de normalidade alongado ao máximo.

Descobriu que isso não era possível. Nem sequer era o escárnio e a aversão que encontrava amiúde nos olhares de estranhos, não era a sua imagem grotesca que se reflectia em todos os espelhos; era o sentimento que a situação era uma piada soturna e sádica. Não o tinha merecido, não o tinha pedido, não o tinha imaginado, mas ali estava ele – Beno – a sua outra cabeça.

Faltavam duas semanas para completar os dezoito anos, catorze dias para a maioridade e faltava esse mesmo tempo para a concretização do plano.

O plano era simplesmente chamado assim – Plano – e aquela palavra embalava toda a sua esperança para ser normal.

Mas antes do plano, vinha o pequeno-almoço. Desceu as escadas para a cozinha, tentando não pensar muito por enquanto na tarefa a que se iria doravante dedicar de toda a vontade.

Tinha fome e de manhã tinha normalmente as guardas dos sentidos em posição de repouso. Beno pareceu adivinhar o momento perfeito, e de inesperado gritou - Olha ali, rápido! – Mesmo antes de voltar a cabeça já sabia o que vinha de seguida. Lesto, o outro, enfiou-lhe a língua na orelha direita.

Era a sua partida preferida, e uma das mais desvairadas.

Maldito fosse, o imbecil. E foi assim que um Aba muito taciturno e o Beno a rir as gargalhadas chegaram a cozinha.

O método era sempre o mesmo e já há muito afinado. Dois pratos, duas taças. ‘A’ era ambidestro, outra das curiosidades que parecia propositada para perpetuar o bom avanço desta relação forçada. Com a mão esquerda alimentava-se e com a direita despejava a comida na boca aberta de ‘B’.

No inicio, foi uma forma de se emancipar da ajuda dos outros, o que muito lhe agradou. Não era simples, mas a forma de comer de Beno ajudava. Ele engolia quase sem mastigar, bebia qualquer líquido de um trago só, e quando lhe picava a língua ou os lábios ele ria alto, divertido com a dor.

Até essas pequenas desforras ele lhe conseguia tirar. Com o passar do tempo o processo era quase instintivo e corria na sua generalidade bastante bem. Agora era raro não comer simplesmente em silêncio. Se é que se podia falar de silencio com o ruminar estrepitoso de ‘B’.

Enquanto bebia o café com leite ia pensando… no plano e em tudo o que o tinha levado a formula-lo, todos os pequenos e grandes acontecimentos encadeados que representavam o desfecho final.

Os lares e famílias especiais, os magotes de médicos, especialistas e semi-especiais, os matemáticos e curandeiros que tinham desfilado pela periferia da sua vida sem terem chegado nem perto de uma solução ou sequer de uma explicação para o “milagre”.

‘A’ e ‘B’ foram encontrados na porta de uma sinagoga – ou talvez seja mais exacto dizer que ‘A’ foi encontrado com ‘B’ solidamente agarrado a ele -. Lugar-comum e de mau gosto e aparentemente o preferido de todas as parideiras desesperadas que assim abrem o simbolismo da existência entregando os pimpolhos mal desejados a guarda de Deus, o grande pai. Se não houvesse um lugar de adoração por perto, a lixeira ou o esgoto eram igualmente eficazes. Afinal como simbolismo não há melhor - És lixo e ao lixo voltas, disse o Senhor -

A Sinagoga da zona não tinha qualquer singularidade de realçar, e não tendo estes lugares sagrados a mesma conexão com órfãos desamparados que tem uma igreja católica, nunca foi bem entendido o propósito ou a motivação da escolha.

Talvez o responsável por descarregar semelhante fardo tivesse enlouquecido com a visão de tamanho aborto e este facto poderia perfeitamente ter-lhe ensombrado o entendimento. Ou cansou-se simplesmente de o transportar. Nunca se saberá.

Foi encontrado pelo Rabino como se seria de esperar. O pobre homem não era exactamente o sinónimo da iluminação espiritual e a sua escolha de profissão tinha sido mais da responsabilidade do destino e do infortúnio do que de um acto de livre arbítrio. O seu conhecimento sobre os ensinamentos do Halacha era a sua única aptidão, fazendo disso ao contrário de muitos outros Rabinos, a sua ocupação a tempo inteiro. O que ele viu nessa manhã no entanto mudou a sua existência para sempre; pode-se mesmo dizer que aquele momento correu o risco de mudar até a cor da sua roupa interior. De religioso medíocre para crente fervoroso. E crente nas mais variadas religiões. Por certo que seriam os cristãos a estarem certos no seu conceito de céu e inferno. Porque “aquilo” só poderia ser proveniente de um abismo profundo onde habitavam criaturas infernais.

Nunca teve a audácia para pegar no fardo, nem tal ideia avaliou. Em contrapartida teve os reflexos suficientes para iniciar a correr na direcção oposta o mais célere possível.

Deve-se a mais um caso da fortuna ter enveredado pela rua da padaria local. Padaria muito convenientemente pertencente a um dos crentes, e por sinal o único lugar com sinais de actividade aquela hora apagada da manhã.

O Rabino não explicou a situação ao padeiro nem a mulher deste. Estava receoso que afinal nem tivesse visto bem. Talvez fosse um boneco ou um animal exótico, talvez nem estivesse lá nada.

Em vez disso pediu auxílio para um assunto importante. Sem dar pormenores quase que carregou a mulher do padeiro pela viela de onde tinha vindo. Arrastou, é o termo certo, a matrona já bem entrada nos anos era também bem fornecida no peso.

Quando os dois chegaram ao pé do embrulho, o Rabino mais uma vez nada disse. Sobe o mirar inquisidor da mulher apontou com o olhar para o fardo que jazia sobre o terceiro degrau.

Ela pegou-lhe de imediato e de imediato levantou uma ponta da coberta. Pois… ali estava ele, o coisinho acabadinho de sair de do terceiro ou quarto nível do inferno.

-Oh, coitadinho…que peninha, vejam só…e a maldade das pessoas, abandonar a criaturinha –

O Rabino avançou um pouco para ver melhor. Pronto, estava explicado; pela voz da velha senhora era agora obvio que era só um bebé. Acontecimento de estranhar, um recém-nascido nas escadas, mas ainda assim muito menos estranho do que ele imaginava ter visto. Como lhe foi possível semelhante desvairamento? Visões ou alucinações nunca lhe tinham ocorrido. Em abono da verdade nem lampejos de imaginação atravessavam muitas vezes a portada semi-fechada do crânio.

Afinal o que ouvia dela eram palavras de admiração e de piedade, quando ele tinha esperado a todo o momento guinchos de pavor e repulsa. Que tontaria. – Ora deixa lá ver o pimpolho – E lá se aproximou mais um pé. E lá viu o “pimpolhinho”. E lá se pôs aos gritos.

Metade ainda coberto pela manta, metade já não. E o que se via era um corpito perfeitamente costumeiro à uma criança, com duas cabeças irrepreensivelmente perfeitas em cada ombro.

Com tanta coisa perfeita num corpo só, não havia motivos para tanta desordem.

Mas o Rabino, talvez dominado por uma educação mais eclesiástica ou por uma noite mal dormida, não compartilhava dos mesmos tipos de sentimentos que os da padeira.

- Vai, vai…tira-me já isso daqui - Já a porta, ainda tentou uma espécie de acto redentor. – Depois falamos. Olhe, chame alguém… a polícia talvez. Chame alguém que perceba disso.

O Rabino saiu assim da história de Aba e Beno. Nunca mais quis voltar.

Também não se vai arrastar muito a presença do casal de padeiros neste caso. Só são importantes na medida que são de alguma forma os causadores de todas as adversidades e algumas alegrias resultantes do simples facto da senhora se ter afeiçoado ao miúdo. Não ao miúdo verdadeiramente dito, mas a ideia de dependência. Ele dependia dela agora, naquele minúsculo tempo que a Terra leva a curvar, a sorte do embrulho poderia ter seguido uma miríade de alternativas.

Para alguém com bom senso, a única alternativa possível seria a de utilizar o excelente forno da padaria para outra coisa que não fazer pão.

Mas ela decidiu diferente. Levou-o para casa. Um, o que mais tarde viria a ser conhecido por Aba, mantinha-se de boca bem cerrada e com os olhos em igual condição; o outro, Beno portanto, sorria efusivamente e seguia todos os movimentos que se apercebia.

Mais tarde a senhora padeira confidenciou a um repórter que foi o que mais gostou, e o que a fez tomar a decisão de ajudar a “criaturinha”.

Pode-se assim, deste comentário, extrapolar duas teses; a primeira é que foi efectivamente Beno o culpado de todos os padecimentos de Aba. A segunda seria, a de que a padeira estava a beira da senilidade perigosa.

Seja como for tratou dele na primeira noite. Desencantou, sabe-se lá onde, leite próprio para a criança, improvisou uma fralda de pano e tomou coragem para pedir emprestado um biberão a vizinha do segundo andar.

O marido impacientava-se com o atraso do trabalho na padaria mas com já tinha uma bagagem de desilusões impostas a mulher, achou por bem aturar aquele absurdo mais um tempo.

Não tinham filhos; culpa dele, que era estéril. A não ser quando bebia, aí já era culpa da mulher. E ele demonstrava-lhe matematicamente que era assim. Noutros tempos, de tanto utilizar a matemática para contar os golpes que lhe iam caindo no corpo, havia alturas que a padeira ficava um pouco estonteada.

Aguas passadas. Chama já morta. Adiante…Foi quando a altura de dar o leite que surgiu a duvida. – A qual é que dou primeiro? – Perguntou ao marido. – Sei lá… olha dá ao que esta a dormir, parece que precisa mais. Dás ao A e depois dás ao B, também não é difícil, porra.

Ela lá seguiu a sugestão. E daquele momento em diante começou a pensar “neles” como o A e o B.

De tal forma que quando os serviços sociais apareceram no dia seguinte ela tinha já costurado dois pedacinhos de pano à coberta com as iniciais sugeridas pelo padeiro.

E desta feição iniciou-se o surpreendente trajecto de A e B, que para começar tinham recebido o baptismo das mãos de uma padeira judia.

O Hospital

Os serviços de apoio social estavam encalhados. O dilema era simples de compreender, não tão fácil de concluir.

Os procedimentos não eram complicados. As crianças trazidas para as suas casas de apoio eram processadas por um perito com formação esmerada. Eram seguidamente encaminhadas para um tipo específico de habitação de acolhimento, e de acordo com uma análise cuidada.

Eram depois mantidas dentro de um sistema que as protegia e acarinhava até ser encontrada uma solução mais duradoura ou até serem jovens autónomos e emancipados.

As bestas dos miúdos é que não colaboravam em nada. Não compreendiam a natureza sensível do trabalho dos assistentes e técnicos. Recusavam falar abertamente do que os afligia, ao ponto de se suspeitar que era só astúcia. Os jovens mais velhos traziam todos os tipos de maus vícios, hábitos duros de agressão e abuso de substâncias. Infectavam invariavelmente os mais novos ou os mais impressionáveis, apesar dos esforços de reeducação dos assistentes sempre vigilantes (Não fosse o caso de algum deles lhes roubar o monopólio).

As miúdas até se deixavam estuprar sistemática e metodicamente, num claro desrespeito as normas vigentes.

Aba infelizmente não teve direito ao apoio total dos serviços pelo simples facto que não se enquadrava em nenhuma categoria. Não era filho de toxicodependentes, não vinha de um lar violento, não fugia constantemente de sua casa e não tinha uma história de violência e desacato.

E nem Deus nem o diabo se viessem a Terra iriam mostrar a ousadia de modificar o formulário base de seiscentas e trinta e cinco perguntas tipo, redigido por peritos de variadíssimas especialidades, desde Sociólogos, Psicólogos, Pediatras, Osteopatas, Pedófilos, Sociopatas e Misantropos.

Não senhor, isso não. Seria o caos. O facto de ter duas cabeças nem sequer foi considerado. Em nenhum dos seiscentos e trinta e cinco quadrados, cuidadosamente alinhados a direita da folha e a preencher com cruz (sem sair da quadricula sff) vinha a pergunta – Quantas cabeças tem? –

Não foi isso que o eliminou na selecção. Mas havia um percentual que tinha que ser preenchido. Restava a incerteza se o sujeito em questão estava aquém ou além da curva da desgraça. Antecedentes criminosos; não. Uso de estupefacientes; não. Violência, prostituição, sintomas psicopatas, sociopatas ou distúrbios da personalidade em geral; não, não e não.

O facto de ter sido abandonado ejectava-o directamente para o campo dos elegidos. Segundo o paragrafo quatrocentos e doze da alinha C do código de integração social, os sujeitos sem meios de sustento próprio e ainda a necessitar de cuidados de neonatologia (a contradição de termos nunca preocupou os responsáveis pelo documento) encabeçavam a lista dos preteridos que careciam de protecção da sociedade.

Caso fechado. Ou não seria? Não bastava entrar para a lista. Era necessário igualmente recolher a pontuação necessária para inserção no escalão correcto.

Seria contraproducente misturar desgraças. Um sujeito carenciado de afectividade não era tratado de igual forma que outro que necessitava somente de disciplina. Seria como triturar carne para hambúrgueres com um garfo. A máquina social tem as lâminas e rodas dentadas para cada situação, nada de atrocidades por favor, afinal falamos de crianças.

O sujeito (no singular, porque ainda se estava a definir a quantidade) como já foi observado escapava aos habituais parâmetros de violência, abuso, mau-olhado etc., etc., etc.

Seria com certeza no campo das insuficiências corporais, aliado a posição de rejeitado, que iria estoirar a escala, disso tinha a certeza o examinador principal.

Ocorreu o impensável. O preenchimento de décima sétima folha do códex social rezava o seguinte:

“Ausência do membro superior esquerdo? ”, “Não”. “Ausência do membro superior direito?”,“Não” “Falta de aparelho reprodutor?”,”Não”…e por ai adiante. O maldito documento tratava de falhas, faltas, ausências e amputações, não referia rigorosamente nada sobre membros em excesso.

Lacuna que posteriormente viria a ser colmatada,embora não sem algumas deficiências. A adenda ‘A’ da página dezassete, integrada dois anos depois do relato destes acontecimentos, contemplava estes casos e questionava o seguinte:

“ Possui mais do que um membro superior?”,”Possui mais do que um membro inferior?”. Depois de este questionário preenchido escrupulosamente, verificou-se um aumento do envio de indivíduos vindo dos serviços sociais, para os serviços hospitalares. As respostas positivas as questões acima transcritas infelizmente auferiam uma pontuação negativa ao individuo escrutinado. O resultado do escrutínio obrigava a apresentação a junta médica de todos os indivíduos com dois braços e duas pernas. Esta situação foi rapidamente revista na adenda B, lançada dois anos depois da adenda A.

O embaraço parecia impossível de ser quebrado. Felizmente que a maquina social é apenas a parte cromada da outra grande maquina; a máquina estatal.

Alguém (veio-se posteriormente a reconhecer ter sido a senhora da cantina) propôs uma nova abordagem para o problema.

Poderia não ser um caso social, como era agora bem claro devido ao resultado das pontuações gerais, mas era claramente um caso médico. A não ser claro está, que existisse algum povo com duas cabeças em algum lugar arredado do globo terrestre, e ai passaria para a competência dos serviços de estrangeiros e imigração. Mediante uma pesquisa exaustiva efectuada por uma entidade idónea (para isso servem os motores de busca) foi concluído sem qualquer dúvida que o indivíduo não era pertencente a qualquer subcasta racial ou minoria étnica.

Seria os serviços de saúde pública, portanto. Imediatamente após aos respectivos suspiros de alívio e ao preenchimento do modelo do impresso seis do ‘Enquadramento para Transição de Serviços’, barra vinte e um, Aba e Beno foram por fim transferidos para serviços correctos.

Aqui, nos serviços de saúde, a simplicidade e transparência do assunto continuou na ordem do dia. As definições para a posição em que se poderia enquadrar ‘A’ e ‘B’ não eram tão herméticas como vistas a luz de um serviço de integração social.

Aba e Beno foram considerados apropriados a serem encaminhados para uma miríade de institutos de especialidades médicas. As mais relacionadas e portanto as mais prometedoras, seriam as do “Instituto para o tratamento de cefaleias”ou o “Centro de cirurgia cerebral” ou até a própria “O.M.S”, uma vez que não estava de todo excluída a propagação da maleita do sujeito para a população em geral.

A escolha acabou por recair num muito obscuro “Hospital Eckart Axmann Drexler”. Esteve em igual oportunidade o “Hospital Albert Einstein” mas alguém, ou o acaso, concluiu que seria altura de deixar outro tipo de influências, que não as Hebraicas, tomar algum papel no destino do bebé.

Quem diabo poderia ter sido o Doutor Eckart Axmann Drexler, ninguém parecia saber. Em muitos dos documentos oficiais, a instituição vinha referenciada apenas pela sigla ‘H.E.A.D.’, e mesmo para o pessoal que lá servia era mais frequente referirem-se ao local de trabalho apenas como “O Hospital”.

Aba chegou ao hospital desidratado, faminto e assustado. Beno chegou a sorrir.

A chegada do novo paciente despoletou uma vaga de interesse e azafama no pequeno edifício. Normalmente dedicado ao trabalho de pesquisa e recolha de dados, o estabelecimento raramente recebia pacientes vivos. E em nenhuma circunstância teve um caso de pacientes mortos, portanto o interesse era justificável.

E pela primeira vez, e talvez a única no tempo da sua breve existência, Aba foi desejado.

O Doutor Brando foi o médico assistente escolhido para observação e diagnostico do paciente. Rapaz bem formado, e vindo de famílias de tradições (e vícios) vigorosas herdou do lado da mãe a poça genética que lhe deu o requinte físico, e da parte do pai a estabilidade financeira e educação férrea com que percorreu o caminho do sucesso académico.Com sangue Argentino por parte materna e Europeu pelo lado do pai, expunha uma contrastante mistura de pele trigueira e cabelo aloirado. Foi graças ao seu progenitor que desde cedo lhe foi infiltrada a percepção que o mundo é dos fortes de espírito, e há obviamente uma linha divisora que deve ser mantida a todo o momento. Sendo uma pessoa despretensiosa, o bom Doutor atravessava muitas vezes essa linha e aplicava parte da sua força de espírito a espancar as prostitutas que alugava, devotamente duas vezes por semana. Como não abraçava inteiramente o padrão de segregação imposto pela família, não lhe importava o tamanho, idade ou físico do alvo em frente. Desde que gritassem com determinação, ficava saciado.

Quanto a sua formação como profissional, essa era claramente exemplar.

Bastou-lhe dois minutos de análise para avançar com um diagnóstico preambular.

- Hum … um caso de “Fetus in Fetu.”- Debruçou-se um pouco mais sobre o neonato. – Claramente uma derivação da condição “ Craniopagus Parasiticus.»- A sua entoação de voz era distintamente de desagrado. – Muito barulho por nada. – Suspirou.

O Doutor Brando tinha sido uma das energias motrizes por detrás da transposição do recém-nascido. Intrigado com o assombro dos serviços sociais teria ficado convencido que estaria a braços com um novo tipo de mutação. Um que servisse para pôr a sua fisionomia perfeita, perfeitamente enquadrada por uma câmara de televisão.

A enfermeira a seu lado extasiava-se com a magnificência dos conhecimentos técnicos demonstrados pelo médico. Enquanto se extasiava, ia-se despindo mentalmente e amarinhando lentamente para a marquesa ao seu lado. A voz do médico fez-lhe fechar as pernas e voltar a realidade.

-Já imaginou como é que ficou a tipa que deu à luz isto? – Os bramidos imaginários da dor de parto de semelhante volume voltaram a dar-lhe um pouco mais de alento.

A enfermeira ouvindo esta análise, de alusão vagamente sexual, voltou a tentar trepar para a marquesa. – Ficou como Doutor? -Tentou ser mais óbvia. – Sabe que o que se faz por gosto…- O medico não lhe deu reparo. A voz da enfermeira era doce e branda. Devia gritar mal.

-Transfira isto para o “ Trio Dinâmico.”-Ordenou o médico –“ Não fará parte das capacidades desses três mentecaptos, mas eles tem muito tempo em mãos, de qualquer forma. – A enfermeira expeliu um delicado ronronar e apressou-se em direcção aos serviços administrativos.

Francisco Carreiras
Enviado por Francisco Carreiras em 27/11/2014
Reeditado em 29/11/2014
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