ARTESÃO DE VIDAS

A T E N Ç Ã O - N O V O S E R I A D O

ARTESÃO DE VIDAS

P R Ó L O G O

Joab Matias despertou ainda sonolento. Virou-se para o lado da janela e, pelos vidros, percebeu que chovia torrencialmente. Espreguiçou-se uma, duas, três vezes... Intensa falta de coragem o dominava. Lembrou-se de que havia prova no primeiro horário e deu um salto da cama. Desvencilhou-se das vestes e correu para o banheiro. Pôs o chuveiro elétrico em água morna e se banhou, demoradamente. Finalizado o banho, retornou ao quarto enrolado na toalha. Diante do espelho que havia bem em frente à sua cama, deixou a toalha cair e ficou a contemplar-se, maravilhado que era com seu próprio corpo. Nestes momentos se esquecia do mundo, porque nada para ele era mais importante do que vislumbrar a própria beleza. Realmente, era belíssimo. Estava no auge dos seus 15 anos, os hormônios à flor da pele. Conversava consigo mesmo: “Diga, meu espelhinho, há outro garoto nesta terra tão lindo quanto eu?” Nada do espelho responder. Mais uma vez perguntava: “Vamos, espelhinho, não me deixe assim... preciso saber: existe um outro menino neste mundo tão lindo quanto eu?” E passava as mãos pelos bonitos e lisos cabelos loiros, tão amarelos quanto o sol. E levava as mãos a acariciar as maçãs do rosto, rosadas e que contrastavam com sua pele alvíssima.

Depois permitia que caíssem até o tórax e, levemente, massageava o peito, redondinhos e pequenos, bem desenhados. Sua contemplação não parava por aí, as mãos desciam e cutucavam o pequenino e fundo umbigo, sentindo um leve prazer. Custava mais a apreciar-se em suas partes íntimas. Achava-as perfeitas, ornamentadas que eram por imensa quantidade de pelos, meio aloirados. Para concluir sua análise de todas as manhãs, dobrava o corpo e, num bom ângulo de visão, podia ver suas nádegas carnudas, bem torneadas e lisas. Considerava-se o máximo e não admitia que houvesse outro garoto que chegasse perto de si.

Dizia-se mentalmente: “Nem Narciso foi também lindo e perfeito quanto eu...”

De repente, deu-se conta das horas. Estava atrasado. Rapidamente vestiu-se e pôs sapatos e meias, arrumou livros e cadernos dentro da bolsa e correu para a cozinha. Não comeu, engoliu o que achou... Saiu às pressas, tomou o elevador e ganhou a rua. Mesmo debaixo da chuva, que agora era fininha, esperou a condução. Para sua sorte, não demorou. Conseguiu chegar em tempo, no instante em que a sineta tocava, anunciando entrada à sala de aula.

Joab Matias era filho único de Elza, uma mulher ainda jovem. Era mãe solteira. Houvera, há quinze anos, tido uma profunda relação com Fábio Matias, um rapaz irresponsável e cretino. Na verdade, apaixonara-se por ele e não mediu as consequências de seus atos. Quando soube que Elza estava grávida, Fábio simplesmente desapareceu e Elza só veio a saber de seu paradeiro perto do parto de Joab. Fábio fora acidentado por uma moto e levado às pressas a um hospital, contudo não resistira aos ferimentos, falecendo no local.

Elza Santiago era uma mulher de fibra. O pai não aceitara sua inconsequente gravidez e ela foi obrigada a sair de casa. Alugou um apartamento pequeno, de dois quartos e ainda nele residia. Após o parto, teve a assistência de algumas amigas que lhe deram total apoio. Graças a isso, pôde driblar instantes de profunda necessidade. Passados os meses de resguardo, uma de suas colegas indicou-a para uma fábrica de tecidos e nesta indústria têxtil trabalhava até o presente. Era exímia vendedora e ganhava excelentes comissões, o que lhe era suficiente para viver razoavelmente em conforto com o filho. Dos seus rendimentos tirava o sustento, pagava uma boa escola para Joab e nada permitia que falfasse. Comprou um carro seminovo e viajava bastante, vendendo seus produtos. Estava agora a juntar na poupança uma quantia que desse para comprar seu próprio imóvel, queria livrar-se de aluguel.

Joab Matias fizera boa prova. Estava a comentar com os amigos o que respondera e seus olhos verdes brilhavam de contentamento.

- Estão vendo, até para ter sorte é preciso ser bonito. Dizia.

- Que nada, Joab! – retrucava Márcio – Você pegou cola com Aninha, pensa que não vi? Nem cego eu sou!

- Por isso mesmo, idiota! Se eu fosse feio ela não me ajudaria. Ria-se.

O tempo continuava fechado. A chuva parecia mais intensa. Joab teria de voltar para casa. Na pressa de chegar em tempo à escola, esquecera-se do guarda-chuva. Esperou que esperou e nada de haver uma estiada. Resolveu enfrentar o aguaceiro e se foi. Já entrou no ônibus ensopado, protegendo a bolsa por baixo da blusa. Ao chegar em seu ponto, desceu. Buscou caminhar o mais rápido que pôde. Antes de dobrar em sua rua, presenciou algo que o chocou deveras. Quatro trombadinhas espancavam um garoto solitário. Tomaram sua bolsa, arrancaram o relógio do pulso, um trancelim vagabundo que enfeitava o pescoço estavam tirando-lhe as vestes. Joab ficou sem ação debaixo de uma marquise. A tudo assistia, porém o medo tomou conta de si. Os trombadinhas deixaram o garoto totalmente desnudo em pleno meio da rua, esticado no asfalto e com ferimentos espalhados pelo corpo.

Escorria sangue por seu nariz... Joab se apiedou. Gritou: Polícia! Polícia! Polícia!

Os delinquentes, ao escutarem, debandaram-se e Joab chegou perto do menino, todo machucado e nu. Deu-lhe a mão e o levantou. Tirou sua própria camisa e pediu ao garoto que cobrisse sua vergonha.

- Proteja suas partes íntimas e venha comigo. Moro aqui perto e vou ajudá-lo.

Ainda debaixo de forte chuva, caminharam e chegaram ao edifício em que Joab residia. Por sorte não havia ninguém na portaria e ambos se deslocaram rapidamente até o apartamento. Joab abriu a porta e ambos entraram.

- Siga-me- Pediu Joab.

O menino estava meio que autômato, obedecia singularmente a tudo o que Joab propunha.

- Este é meu quarto. Permita que me apresente: chamo-me Joab Matias e tenho 15 anos. E você? Qual seu nome? Que idade tem? De onde vem?

O menino não conseguiu responder de imediato. Segurava firme a camisa que protegia seus tesouros e caiu num convulsivo pranto. Joab teve compaixão. Aragarrou-o e o abraçou.

- Não tenha medo... Não vou fazer mal a você. Quero apenas ajudá-lo. Permita-me! Joab falou.

Lentamente o desconhecido foi dominando o choro. Estava visivelmente perturbado com o que lhe acontecera. Estava em estado de choque.

- Não se envergonhe... Ponha-se à vontade. Aqui só há eu e você. Vou levá-lo até o banheiro para que se banhe. Além de todo sujo, está muito ferido. Bateram bastante. Vou cuidar destes ferimentos e dar-lhe uma roupa limpa para que vista. – Joab prometeu.

Conduziu o garoto até o banheiro e o colocou debaixo de chuveiro. Ligou na água quente.

-Dê-me a camisa. Vá, banhe-se... A água está gostosa. Pode usar de tudo aí: xampu, sabonete, condicionador... vou pegar uma toalha para você.

Bastante constrangido, o menino devolveu-lhe a camisa e iniciou um longo e gostoso banho. Depois Joab deu-lhe a toalha e ele se enxugou.

- Voltemos para o quarto, separei umas vestes para você. A sorte é que tem um corpo muito similar ao meu. Minhas roupas o vestirão muito bem, mas não as vista ainda. Vou tirar estas roupas molhadas, igualmente tomar um banho e venho cuidar dos seus ferimentos, só depois você se veste, está bem?

O desconhecido balançou a cabeça afirmativamente. Enrolado na toalha, deitou-se na cama de Joab e... adormeceu.

Joab pegou uma bermuda e uma cueca e se dirigiu ao banheiro. Tomou seu banho, enxugou-se e botou as vestes. Penteou os cabelos e trouxe o pente para pentear os do menino. Ao entrar em seu aposento, viu que o mesmo dormia, de forma profunda.

- Caramba! Ele está exausto, porém terei de acordá-lo, é necessário ver os ferimentos e vesti-lo.

Delicadamente Joab tirou a toalha que cobria o corpo do ferido, que abriu os olhos, meio sonolento.

- Não se avexe – disse Joab – estou a cuidar dos seus ferimentos. Sei que vai arder um pouco, é sanativo. Ainda bem que são apenas arranhões. E havia arranhões pelo tórax, pernas e nádegas.

- Pronto – afirmou Joab – agora fique de pé e ponha este calção.

Joab entregou a ele o pente e, logo, os cabelos ficaram impecavelmente penteados.

- Eu estou com fome – asseverou Joab – você não está?

Pela primeira vez Joab escutava sua voz.

- Sim, estou – respondeu – estou bastante faminto.

- Acompanhe-me e traga esta toalha para estender na área de serviço.

Os dois se dirigiram até a cozinha. Elza estava viajando, mas deixava pronta no “freezer” as refeições de Joab, era só esquentar.

Comeram em silêncio e beberam suco de goiaba. Deixaram tudo limpo e voltaram ao quarto.

-E aí, deu para matar sua fome? – Joab quis saber.

- Sim. Estou bem agora.

- Podemos conversar ou você prefere dormir, posto que está cansado?

- Podemos conversar. Quero agradecer tudo o que está a fazer por mim. Eu estava em choque, mas já passou. Meu nome é Tádzio, tenho 14 anos.

- De onde você vinha e para onde ia, Tádzio?

- Eu fugi de minha casa... Não estava mais a suportar as malvadezas de minha madrasta e de seu marido.

- E para onde ia?

- Não havia em mim um destino certo. Iria dormir na rua, inicialmente. Depois iria em busca de um serviço em casa de família a fim de me manter. Sei fazer tudo dentro de uma casa: varrer, faxina completa, lavo roupa...

- Eles obrigavam você a fazer isso todos os dias? – Quis saber Joab.

- Sim... E com um chicote às mãos... eu cumpria essas obrigações ou apanhava e apanhava muito... Não viu as manchas em minhas costas?

- Vi e iria até perguntar o que eram... Meu Deus!

- Agora estou meio perdido, Joab. Levaram todos os meus pertences, aí incluindo meus documentos pessoais...

- Não se preocupe... Você ficará aqui em casa até minha mãe chegar, ela trabalha viajando e vendendo confecções., deve estar voltando por esses dias, amanhã ou depois, no mais tardar.

- E você manterá em sua casa alguém como eu, um desconhecido? E se eu for um ladrão?

Joab riu muito. Chorou de tanto rir. Depois respondeu:

- Desconhecido sim, ladrão sei que não é. Você tem aparência... Percebe-se que é um garoto de família. Você fica aqui comigo... Gostei de você, Tádzio, apesar das circunstâncias em que nos conhecemos.

- Puxa, muito obrigado! – Agradeceu Tádzio e em seus olhos viam-se as grossas lágrimas que, finalmente, inundavam seu rosto.

- Não chore – os olhos de Joab igualmente se encheram de lágrimas – você está bem e acolhido.

- Eu sei – Tádzio falou – é porque só agora consigo compreender a extensão do que me abateu e a sorte que haver encontrado uma pessoa como você, que cuidou de mim de forma tão delicada e prestativa. Posso dar-lhe um abraço, Joab?

- Sim – Joab retrucou – é claro que pode!

E ambos se abraçaram e deixaram que as lágrimas rolassem livremente em suas faces.

AMANHÃ - O CAPÍTULO I

Ivan Melo
Enviado por Ivan Melo em 27/11/2014
Código do texto: T5050571
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2014. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.