Mulheres, Ressacas e Mosquitos (Primeira Parte)

1

Acordei depois das 9:00, em uma ensolarada manhã de sábado. As primeiras coisas que me lembro daquele dia foram a sensação da luz penetrando dolorosamente em meus olhos e uma ressaca que parecia abrir minha cabeça de dentro para fora. Me sentei na cama e olhei para minha recém adquirida barriga de cerveja e senti um desgosto que nunca pensei que sentiria.

Eu tinha então, 28 anos e alguns meses, apesar da impressão de que poderia ter muito mais do que isso.

Me levantei, esfreguei os olhos e me arrastei até o banheiro.

Lá estava eu, diante do espelho, contemplando uma cara inchada coberta por uma barba mal crescida e mal cuidada. Me espantava com o fato de algumas mulheres ainda me quererem. Eu realmente achava que naqueles dias eu não valia muita coisa. Escovei os dentes, e com o perdão da palavra, dei uma cagada pensando nas poucas certezas que eu tinha na vida e no conteúdo cada vez menor da minha conta bancária.

Entrei debaixo do chuveiro e lá fiquei, até que a dor se tornasse um pouco mais suportável.

Naquele tempo, a dor era o menor dos meus problemas. Eu tinha acabado um relacionamento com uma mulher recentemente e ainda me perguntava o que faria dali em diante. O celibato parecia uma escolha razoável, apesar do meu constante desejo pelo sexo oposto. Me sentia sem chão... Exausto. Eu não tinha muitos amigos, ou mesmo colegas. Também não tinha um emprego fixo para financiar as noitadas como as que eu vinha me proporcionando. Cheguei a conclusão de que deveria parar com aquilo. Pelo menos até arranjar meios de manter aquele estilo de vida. Eu não era nenhum beatnik. Estava mais de 50 anos atrasado e a boemia literária havia saído de moda. Todas aquelas considerações me pesaram na cabeça e tentei afastá-las do pensamento. Resolvi ali mesmo, debaixo do chuveiro que eu devia tomar alguma atitude a respeito do aumento do meu peso. Pelo menos era algo que eu poderia resolver sozinho, e que talvez me desse disposição para dar um novo rumo para minha vida.

Saí do banho, me vesti, descasquei uma laranja, comi e me deitei no sofá. A dor de cabeça cedeu e eu me senti estranhamente bem. Ao fim de alguns minutos, me levantei, calcei um par de tênis e desci as escadas em direção a rua. Eu vivia próximo ao parque 13 de maio, bem no centro de Recife. Região que me dava acesso fácil aos ambientes que eu tinha o hábito de freqüentar. Aquela parte da cidade praticamente tinha vida própria, principalmente a noite, quando eu me encontrava mais ativo. Eu gostava de vagar pelas ruas abandonadas e às vezes tinha impressão de que podia ouvir os prédios antigos respirarem e conversarem entre si. Muita gente vivia por ali. Mas ninguém que a cidade considerasse importante. Trabalhadores, viciados, desajustados, boêmios, gente idosa ou pobre demais para procurar outro lugar mais tranquilo para morar. Eu me sentia em casa entre eles.

Passei a portaria do meu prédio, tomei a direção do parque e comecei a dar voltas na pista onde as pessoas faziam caminhadas. Dei três, sempre apertando cada vez mais o passo e na quarta, comecei a tomar um ritmo de corrida. Podia sentir a ressaca se esvaindo pelos meus poros de forma quase prazerosa.

Foi nesse momento, que distraído, conheci Lara. Esbarramos em uma curva, quando ela parou para atender o celular e não percebeu quando eu me aproximava no sentido contrário. Caímos e rolamos pela pista. Bati minha cabeça com força no cimento e por alguns segundos tudo ficou escuro. Pude ouvir uma voz feminina perguntando se eu estava bem. A primeira coisa que me lembro de ver foi um par de olhos esverdeados e um rosto salpicado de pequenas sardas. Tive vontade de vomitar, mas segurei a ânsia. Tentei me por de pé e o mundo girou. Podia sentir sangue escorrendo pelo meu rosto, e acho que esta deve ter sido a cena mais assustadora que a garota tinha visto na vida. O desespero era visível em seus olhos. Ao levar a mão à minha testa, pude sentir um pequeno corte, de onde o sangue fluía. A dor não era tanta naquele momento, então me sentei e tomei um gole de água da garrafa que eu trazia em meu bolso. Usei o resto para lavar a testa, e a garota me ofereceu um lenço, que eu prontamente usei para tentar estancar a ferida.

Gaguejando assustada, a moça finalmente falou algo que eu consegui compreender.

- Desculpa moço, desculpa. Você está bem?

- Vou sobreviver, eu acho. Só preciso ir pra casa tomar um banho e talvez de um remédio para dor.

- Você tem que ir no médico. Talvez tenha que levar ponto.

- Não. Não precisa. – Falei, tentando me levantar. -

- A propósito, meu nome é R.

A garota me amparou e consegui finalmente ficar de pé.

- Meu nome é Lara. Disse visivelmente tensa. - Posso pelo menos levar você em casa... estou de carro... Você mora longe?

- A carona eu aceito. Moro perto daqui. Só espero não sujar o seu carro. Eu disse, tentando ser engraçado.

A garota finalmente sorriu, e me ajudou a chegar até o seu automóvel.

Era um gol vermelho, duas portas, visivelmente surrado.

A bagunça no carro da garota conseguia ser pior que a do meu quarto.

Me senti em casa.

Ela abriu a porta e eu me sentei no banco do passageiro. Disse-lhe o endereço e em poucos minutos estávamos na frente do meu prédio.

Lara insistiu para entrar comigo e me ajudar a subir as escadas.

Na porta do apartamento ela me falou.

- Você tem que fazer um curativo bem feito. Eu vou comprar antisséptico e gaze. Volto em um instante.

Tentei dissuadir a jovem, mas diante de sua insistência, simplesmente resolvi aceitar a gentileza e tomei um banho rápido enquanto esperava ela voltar.

A ferida tinha parado de sangrar, mas minha cabeça parecia que ia rachar de tanta dor.

Me vesti, sentei-me e fechei os olhos esperando a campainha tocar.

Em menos de 15 minutos ela estava de volta trazendo o material para o curativo e também remédio para dor.

Deixei que ela tratasse do corte sem muita conversa. Percebi naquele momento o quanto ela era atraente. Ela limpava a ferida, aproximando os seios de minha face e eu mal podia conter o meu olhar. Tinha um toque leve, quase carinhoso, com o qual eu não estava muito acostumado.

- Se a dor de cabeça não passar, é melhor que você vá ao médico.

Na verdade eu acho que você deveria ir de qualquer jeito. Não é bom arriscar com essas coisas. Disse-me enquanto se afastava e recolhia os remédios.

- Não se preocupe. Já levei pancadas maiores. Estou bem. Você já pode ir... Não quero atrasar seu dia.

- Mesmo assim, vou deixar meu telefone. Se você passar mal pode me ligar.

- Você é muito gentil, Lara. Apesar de desastrada. - Falei sorrindo, tentando tirar-lhe a preocupação. - Eu vou sobreviver, e talvez eu ligue para você só para conversar, numa circunstância menos estranha do que essa. Se você não se importar, é claro.

Lara abriu um sorriso e concordou com a cabeça.

- Pode ligar sim. Não tem problema.

A ajudei a recolher suas coisas e a acompanhei até a porta.

Ela ainda olhou duas vezes para trás antes de desaparecer nas escadas.

Voltei para dentro de casa e me joguei na cama com a lembrança da primeira coisa que vi quando acordei depois da queda.

Aqueles par de olhos verdes da moça que quase me matara por acidente.

Pensei, antes de dormir, que sair do sedentarismo, no fim pode não ter sido uma má idéia.

2

Depois de sete dias, o corte estava praticamente cicatrizado, apesar de eu ainda andar por aí com um band-aid grudado na testa.

Havia sido uma semana onde diversas coisas inesperadas ocorreram e eu nem tinha pensado em ligar para Lara para dar notícias e agradecer pelos cuidados. Eu tinha finalmente conseguido um emprego como professor em uma faculdade particular, que pagaria mal, mas pelo menos o suficiente para eu manter minhas finanças em ordem. Eu tentava me organizar com os planos de aula e outros detalhes necessários para começar a trabalhar e não tinha tempo nem para tomar uma cerveja.

Me sentia bem, no entanto.

Numa tarde de sexta feira, eu tinha acabado de preparar as atividades do primeiro mês de aula, e percebi que meu telefone estava descarregado desde o dia anterior. Conectei o carregador no aparelho e logo que ele ligou, vi uma mensagem. Era um amigo muito próximo. Chamava-se Vicente. Atualmente ele estava casado, e como era de se esperar de um cara como ele, completamente devotado a nova família.

Liguei para o número indicado no aparelho e ele logo atendeu.

- Vicente? Você me ligou? Algum problema?

- Não, cara. Só queria marcar de tomar uma cerveja e jogar conversa fora. Disse-me, com a mesma voz branda de sempre.

- Estou realmente precisando de uma gelada. Estou livre agora e você?

- Também. Passo na sua casa em duas horas, ok?

- Ok.

Desliguei o telefone, larguei o computador de lado, e fui até o espelho do banheiro. Retirei cuidadosamente o band-aid da testa e foi aí que me lembrei de Lara.

Voltei até o celular e lhe escrevi uma mensagem de texto.

“Parece que eu vou realmente sobreviver à sua tentativa de homicídio. Frente a isso, acredito que você me deve uma cerveja a ser paga qualquer dia desses. R.”

Recebi a resposta poucos minutos depois.

“Pago com todo prazer. Sábado estou livre. Beijos, Lara”

Me sentei no sofá e pensei que em uma semana a vida de um sujeito podia mudar completamente.

Acariciei o gato que ronronava de barriga cheia, aos meus pés. A vida era fácil para ele. Para mim, nem tanto.

3

Vicente era aquele tipo de cara paternal que se sente na responsabilidade de cuidar de todo mundo. Quando falo isso, quero realmente dizer todo mundo. Ele sempre foi muito positivo em relação à vida, e já tinha me tirado do fundo do poço algumas vezes.

Eu imaginava que naquele momento Vicente devia se sentir um pouco preso demais com trabalho, mulher e filho. Mas sempre me parecera feliz. Ele era quase quatro anos mais velho que eu e sempre busquei seus conselhos quando tinha que tomar uma decisão difícil ou me metia em alguma roubada. Faziam, no entanto, alguns anos que nós não conversávamos mais do que sobre coisas do dia a dia.

Em outros tempos, saíamos frequentemente juntos, e costumávamos beber bastante, mesmo com pouco dinheiro no bolso. Vivíamos atrás de mulheres em festas de faculdade, nos embriagando de cerveja e vinho barato. De certa forma, era aquele tipo de assunto que eu esperava conversar com ele, com o mesmo clima positivo do passado.

Nos encontramos num boteco qualquer no centro da cidade. Chovia como o de costume para o mês de julho. Algo parecia estranho em Vicente, mas eu resolvi não comentar nada. Lá pela terceira cerveja, para o meu espanto, eu tive certeza disso. Nunca tinha visto Vicente tão fatalista e tão cansado. Ele sentia a pressão da vida de casado apesar de se dizer feliz com a nova realidade. Na verdade, parecia que ele só queria ser ouvido por uma pessoa neutra. Falou um tanto, e depois que estávamos os dois embriagados, ele finalmente me pareceu melhor. Paramos de beber e conversamos um pouco sobre trabalho e sobre as besteiras que fazíamos no passado, até que sua mulher ligou e ele me disse que precisava ir para casa. Havia parado de chover, finalmente. Pagamos a conta e então o observei cambalear até o táxi.

Antes de subir, disse-me que gostaria de beber comigo outro dia e que eu deveria ir visitá-lo em sua casa.

Caminhei de volta para o meu prédio, sob uma fina garoa, pensando sobre o novo estado das coisas. Ver aquele meu amigo daquela maneira foi algo que eu nunca tinha sequer imaginado. Talvez um dia eu me visse na situação em que ele estava, o que não me parecia um destino atrativo. Me perguntava se conseguiria escapar disso e quais seriam as alternativas. Naquele momento, o álcool e a situação haviam me deixado melancólico e pensativo. Distraído, só percebi que havia passado da rua de casa quando já estava quase a beira do porto. Estando ali, resolvi me sentar na murada do antigo cais e assistir o céu escurecer. Pensei em todas as mulheres que já tivera. Nas grandes, nas pequenas. Nas loucas, nas racionais, nas violentas, nas frias, nas amorosas. Pensei em todas elas juntas. Algumas, rindo, outras bebendo e falando sobre mim e sobre os meus defeitos. Talvez um dia, uma delas finalmente conseguiria me prender. Ou pior... me faria querer estar preso... e então eu estaria como Vicente. Perdido.

Finalmente se fez noite e eu voltei a pé para casa pensando se realmente devia me encontrar com mais uma delas.

4

Cheguei em casa depois das 19h. O gato correu para porta e começou a miar alto. Passou por debaixo das minhas pernas como se eu sequer existisse e desceu as escadas. Foi dar seu passeio noturno. Pela manhã estaria deitado no tapete ou miando para que eu lhe deixasse entrar. Eu tinha impressão de que ele só lembrava de minha existência para abrir a porta de casa e dar-lhe comida. Pelo menos ele tinha a decência de fazer suas necessidades na rua.

Entrei, fechei a porta e peguei o computador que eu largara em cima da mesa. Botei música para tocar, acendi uma vareta de incenso e comecei a digitar qualquer coisa que me vinha na mente até que tinha umas cinco páginas na tela. Não me importei com coerência, ortografia ou mesmo com os tempos verbais. Simplesmente vomitei meus sentimentos e salvei o resultado em uma pasta. Outra hora eu iria voltar para lê-lo. Talvez conseguisse polir e tirar algo interessante. Eu tinha uma coleção de textos assim, que escrevia ha mais de três anos. Pensava nele como um diário despretensioso. Talvez um dia eu aproveitasse algo dele, mas essa nunca foi minha intenção. Eram meus textos mais pessoais e os que considerava mais intensos. Na verdade, não sei se conseguiria olhar nos olhos de alguém que tivesse lido tudo aquilo sobre mim.

Deixei o computador de lado e me deitei no sofá. Levei a mão até a cicatriz na testa, e no mesmo instante o celular tremeu em meu bolso. Era uma mensagem de Lara.

- “Você está em casa?”

- “Estou”, respondi lacônicamente.

- “Posso passar aí? Levo cervejas”

- “Ok. ‘Tô te esperando”

Achei aquilo estranho, mas tudo bem. Não iria fazer mais nada durante aquela noite. Me levantei e arrumei um pouco da desordem caótica em que meu apartamento se encontrava. Pensei em retirar meus textos colados nas paredes do meu quarto. Muitos deles se referindo a outras mulheres. Mas por fim resolvi mantê-los.

Juntei todas as latas e garrafas de cerveja num grande saco preto e lavei os pratos que estavam na pia. Meia hora depois, o interfone tocou e Lara subiu.

Trazia dois packs de ‘Stela Artois’ e um sorriso despreocupado.

Deixei-a entrar, peguei os packs, coloquei na geladeira e trouxe dois longnecks para a sala.

- Senta ai. Disse-lhe indicando o sofá e lhe dando uma das cervejas.

Ela sentou, e tomou um grande gole da bebida.

- Como está a cabeça? Falou.

- A mesma coisa de sempre. Não precisa ficar preocupada com isso.

- Fiquei mais preocupada com o fato de você não ter ligado. Achei que não íamos nos ver novamente.

Aquilo realmente me deixou confuso.

Não havia nenhum motivo para aquela mulher querer me ver de novo.

Calei por alguns instantes, bebi dois goles de minha cerveja e quebrei o silêncio, quando ela já se inquietava.

- Pelo menos até agora, você me parece mais interessante do que 90% das mulheres por aí.

Ela suspirou e soltou um riso contido.

- Tem algo em você que me agrada. Algo no seu toque. E também essa sua inquietude. Além disso, depois do ocorrido, o mínimo que eu podia fazer era tomar uma cerveja com você. Falei, olhando para o teto.

Ela riu novamente, visivelmente sem graça.

- O que você faz da vida?

- Sou biólogo. Tento ser escritor também. Não acho que seja muito bom em nenhuma das coisas.

- Que tipo de coisas você escreve?

- Poesia, principalmente. Atualmente estou me aventurando na prosa. Mas é um trabalho doloroso. Às vezes doloroso demais.

- Não imagino como possa ser assim. Na verdade nunca parei para pensar nisso.

- Você não faz idéia. Muita gente enlouqueceu tentando escrever algo que preste.

- Posso ler algum texto seu?

- Prefiro que não. Pelo menos por enquanto. Vamos conversar sobre outras coisas.

- Tudo bem...

Interrompi sua fala, me levantando e sentando exatamente ao seu lado. Algo que a surpreendeu.

- Fiquei espantado com o fato de você ter vindo aqui hoje. Mas não posso negar que foi uma grata surpresa.

- Fiquei feliz de ter tido coragem de ter vindo aqui. Disse ela.

E então, tomando a iniciativa, colou a boca à minha.

Deixei que nossos lábios se separassem e passei a mão por seus cabelos.

- Deixa eu botar uma música legal para tocar.

Botei um álbum de Chico Buarque para rodar no computador e retornei ao sofá.

Bebemos as cervejas, ouvimos música e nos beijamos mais algumas vezes no decorrer da noite.

Dormi no sofá e ela em minha cama.

Quando acordei ela já tinha ido embora.

Percebi depois um bilhete em cima da mesa.

“Adorei a noite. Beijos, Lara.”

5

Uma brisa realmente agradável entrava pela janela do meu apartamento de segundo andar. Um álbum de Pink Floyd corria solto no aparelho de som e eu já tinha perdido a conta de quantas cervejas entornara. Devia ser por isso que eu estava acima do peso. Tinha me agarrado a um livro de Louis-Ferdinand Céline que descobrira por meio de uma citação de Bukowski (Um dos meus escritores preferidos naquela época). Fiquei realmente empolgado com o estilo do cara. Pode-se dizer que no Brasil, Céline seria um tipo de escritor underground. Se eu não tivesse visto a referência sobre ele na obra de outro autor, nunca teria chegado a esse livro. Mesmo na era da internet. O fato é que eu estava enfiado naquelas páginas e me sentia muito bem. Me sentia quase pronto a retornar a alguns textos que deixei abandonados, ou até de finalizar um dos meus romances inacabados. Só não sabia o quanto aquilo ia durar.

O trabalho na faculdade ia fluindo bem... Eu não havia nascido para o magistério, mas com algum esforço eu fazia o serviço de forma aceitável. No entanto, não me via fazendo aquilo por muito tempo.

Minha ‘ex’ tinha tentado entrar em contato comigo diversas vezes nos últimos 15 dias, mas ignorei todas as suas ligações. Tinha lhe escrito uma carta enorme, falando coisas que nunca conseguira lhe dizer olhando nos olhos. Me senti um pouco covarde por isso. Mas achei que fosse necessário. Enviei pelo correio e imagino que deve ter sido uma surpresa para ela receber um envelope com meu nome do lado de fora.

Estava deitado no sofá, exatamente no meio do livro, quando ouvi o interfone tocar. Achei estranho pelo tardar da hora. Mas me levantei e atendi. Ninguém respondeu. Quando já me dirigia novamente para o sofá, ouvi duas batidas na porta. Abri, e dei de cara com ela.

A ‘falecida’, com os olhos vermelhos e os lábios comprimidos de pura tensão. Deixei que entrasse, e ela o fez sem falar nada.

Me sentei, esperando que fosse me dizer uma tonelada de impropérios, mas ela permaneceu calada.

Tive que quebrar o silêncio.

- Acho que fui um pouco rude na carta. Me desculpe.

- Você não disse nada que eu não tivesse merecido ler. Mas ainda te considero um idiota por não ter me dito tudo aquilo na cara.

- Ninguém é perfeito. Muito menos eu. O que você quer?

- Não sei.

- Bem vinda ao clube.

- Às vezes tenho vontade de te matar.

- Me estranha o fato de você ainda não ter tentado.

Ela riu, e largou a bolsa que carregava no chão.

- Você me deixa a beira do desespero. Simplesmente por não conseguir te odiar.

- Seria tudo mais fácil se pudéssemos acabar no ódio mútuo, não é?

- Seria. Ela disse se aproximando – Seria infinitamente mais fácil.

Deixei que ela ficasse frente a frente comigo e enlacei sua cintura com meus braços.

- Nós não vamos voltar, independentemente do que aconteça essa noite. Espero que você saiba disso. Disse-me na ponta dos pés, tentando ficar na altura dos meus olhos.

- Não estava pensando nisso.

Nos beijamos por um tempo e depois nos deitamos no tapete da sala.

Ficamos ali, ouvindo música e trocando conversa fiada.

O gato se deitou aos pés dela, adormeceu e logo estávamos os três a sono solto.

Abri os olhos quando o CD acabou e contemplei aquela cena, tentando compreender como era possível ter um momento tão pacífico e agradável depois de uma relação tão tempestuosa com aquela mulher.

Eu quis que mais momentos como aquele acontecessem. Mas no fundo sabia que de manhã as coisas seriam muito diferentes.

Talvez ela fosse embora e fingisse que nada aconteceu. Talvez nós dois conseguíssemos seguir nossas vidas e manter uma amizade agradável.

Senti-me um idiota por considerar aquilo. Eu tinha uma tigresa em meus braços. O tipo de mulher que eu nunca soube lidar. Eu não era um tigre. Eu estava mais para um leão de circo. Preguiçoso e cansado.

Levei-a para o quarto em meus braços, apesar dos protestos do gato.

Fizemos amor duas vezes seguidas e adormecemos. Pensei em Lara de manhã. O que ela acharia daquilo tudo? Na verdade, não importava.

Acordei as 9. Ela ainda dormia.

Fiz um café da manhã para nós dois e quando voltei ao quarto a encontrei vestindo apenas uma camisa minha, procurando os óculos dentro da bolsa.

- Fiz café. Você tem fome?

- Preciso ir ao banheiro antes.

- Tudo bem. Eu espero.

Ela tomou um banho e se vestiu. A escova de dentes dela ainda estava no banheiro. Não tinha me tocado desse fato até o momento.

Ela saiu com um sorriso e tomamos café juntos.

Depois de comermos ela disse.

- Nos veremos ainda?

- Vamos ver como as coisas se acertam.

- Não quero pressionar você.

- Não está pressionando.

- Ok. Preciso ir. Tenho que chegar ao trabalho antes do meio dia.

Abri a porta. Demos um beijo rápido e a observei ir embora.

O meu gato correu novamente por debaixo de minhas pernas e seguiu atrás da mulher.

Algo me dizia que ele gostava mais dela do que de mim.

Podiam ficar juntos, aqueles dois.

Que grande par formariam.

Entrei no banheiro e tomei um banho demorado.

6

Acordei às 6:30 da manhã, tomei café e saí para a rua. Andei sete km e corri mais uns dois. Paguei as contas, voltei para casa e tomei um banho. Almocei as 11:30... Me senti quase um cara respeitável. Dei aula das 14 até as 16 e antes de anoitecer eu já estava em casa, sentado no sofá, escrevendo um conto sobre uma mulher que não conseguia parar de mentir. A prosa sempre foi um problema para mim. Mas eu estava animado e cheio de inspirações que tentava transformar em curtas narrativas. A maior parte delas ficava em uma caixa de papelão num canto do meu quarto e eu sabia que nunca seriam lidas. Na verdade eu não tinha intenção de ser lido. Escrever para mim era um tipo de mania ou de loucura. Eu tinha que botar minhas idéias e pirações no papel. Era uma necessidade! Ou talvez fosse só uma forma de eu não executar certas loucuras na vida real.

Tiago, um roteirista amigo meu, tocou no interfone às 20 em ponto. Tomamos licor e conversamos sobre um trabalho nosso em comum para o cinema. Parecia bom àquela altura e estávamos realmente empolgados. Ele foi embora pouco antes da meia noite e deixou o telefone de uma produtora que ele queria que eu conhecesse.

Eu estava me deixando levar pelas idéias do rapaz sobre termos chance de ganharmos dinheiro com aquilo. Talvez gravando um curta-metragem. Segundo ele, a produtora era uma pessoa acessível que talvez nos desse alguma ajuda para botar o projeto para frente.

Resolvi que valia a tentativa. A mulher se chamava Vanessa Rodrigues. Eu devia encontrá-la pela manhã.

Continuei bebendo licor depois que Tiago foi embora. Parei ao perceber que estava ficando bêbado demais para acordar cedo no dia seguinte. Me sentia sozinho e sem sono. Escrevi ainda alguns poemas sobre amor e solidão e voltei ao conto sobre a mulher e suas mentiras.

Finalizei o texto com umas 5.000 palavras. Não conseguia extrair mais nada daquela idéia. Larguei a história na caixa de papelão e me deitei para tentar dormir.

Sonhei com uma mulher. Nua em pelo saindo do meu banheiro. Eu estava sentado numa poltrona num dos cantos do quarto. Ela fumava um cigarro e vinha lentamente me minha direção. Eu não podia ver claramente o seu rosto, mas sabia no fundo que ela estava me observando. Finalmente chegou até mim. Pude finalmente ver o seu rosto, completamente dominado pelos seus olhos faiscantes. Ela tocou meus lábios e sussurrou...

Acorde.

Acordei assustado. Passei bastante tempo na cama, tentando entender o significado do sonho. Quando me dei conta eram 9 da manhã.

Tinha que ligar para a produtora.

Maldita hora que deixei Tiago me convencer daquilo.

7

Vanessa era realmente uma mulher acessível. No começo, me pareceu a mais simpática das pessoas. Nos encontramos num lugar especializado em sucos naturais e supostamente saudáveis. Ela chegou primeiro, e quando entrei no estabelecimento, ela já estava no meio de um suco de açaí. Sentei bem a sua frente e conversamos um pouco sobre coisas corriqueiras antes de entrarmos no assunto do projeto para o curta-metragem. Mesmo antes disso, me fez tomar um suco de clorofila que segundo ela, curaria qualquer ressaca. Bebi, mas me mantive cético.

Ela leu algumas páginas do roteiro enquanto eu bebia o meu suco e pareceu realmente interessada. Algumas de suas críticas eram bem colocadas e no fim, marcamos de nos encontrar mais uma vez junto com Tiago para discutir todo o processo de criação e adaptação para o filme. Depois de tudo pronto, provavelmente mandaríamos o material para algum edital de financiamento à cultura. Com sorte poderia dar certo.

- A idéia é realmente boa, mas precisa de um toque mais profissional... mais objetividade. Eu não sou artista, mas sei como vender uma idéia. Disse-me, dando uma última sorvida no seu suco.

- Sinto que eu não conseguiria vender algo desse tipo.

- Você não é o primeiro escritor que se sente assim.

- Na verdade, mal me sinto um escritor.

- Você é bem razoável. Devia investir mais tempo nisso.

- Acho que já invisto o bastante. Você não faz idéia.

- Então acho que eu gostaria de dar uma olhada nas outras coisas que você escreve.

- Não tenho o costume de mostrar para muitas pessoas. Mas tudo bem. Talvez eu deva começar a mudar isso.

Vanessa abriu um sorriso e eu senti sua perna raspando de leve na minha.

- Qualquer dia desses eu apareço no seu apartamento com uma garrafa de vinho e você me mostra o que esconde tanto dos outros.

- Acho engraçado você me dizer uma coisa dessas... mas tudo bem. Só me avisa antes.

Escrevi meu endereço numa folha do roteiro e lhe entreguei a pasta.

Aproveita e lê o material com cuidado.

Nos despedimos e cada um seguiu para um lado.

Peguei um ônibus e fui para a faculdade. Tinha uma tarde inteira de aulas para dar e já estava atrasado.

8

Vanessa apareceu num sábado à tarde, com uma garrafa de vinho tinto e um maço de cigarros. Ela fumava bastante, mas tinha noção de que era um hábito incômodo para a maioria das pessoas. Numa avenida próxima a minha casa estava acontecendo mais uma Marcha das Vadias.

Mulheres com seios de fora, gritando pelo direito ao próprio corpo. Por liberdade sexual e entre outras coisas direito ao aborto.

Eu podia concordar com tudo aquilo, a exceção do último ponto. Mas não é algo que eu queira abordar aqui. Vanessa era uma feminista de mídias sociais. Afinal de contas ela não estava lá com as outras mulheres vadias lutando pelos direitos que consideravam legítimos.

Ela entrou em casa, com um semblante animado. Quase contagiante.

Estava com um vestido verde estampado estilo hippie.

Me deu um abraço longo, que confesso que me deixou um pouco excitado.

Ela tinha cheiro de mulher... se é que você me entende. Cheiro de fêmea no auge da sexualidade. Não havia nada mais excitante para mim do que uma mulher independente e sem frescuras.

Ela entrou e começamos a tomar o vinho. Falou a princípio de toda a pauta da marcha das vadias. Eu simplesmente ouvi. Fomos em seguida aos meus textos. Ela leu um conto curto e algumas poesias, enquanto eu abria mais uma garrafa que tinha guardada em minhas coisas. Eu não era muito fã de vinhos, mas sempre tinha em casa por causa das mulheres. Vanessa pareceu realmente gostar do que eu escrevia. Naquele momento eu já estava vidrado nela. Me imaginava com as mãos passando sobre aquele vestido e sentindo as curvas do seu corpo. Acho que ela percebeu, pois deu o primeiro passo.

- O que eu preciso fazer para um homem escrever algo assim sobre mim? Disse se referindo a um dos meus sonetos sobre minha ex.

- Você tem que deixá-lo realmente apaixonado, depois dar um pé na bunda dele.

- Parece que você tem bastante experiência com isso.

- Mais do que eu gostaria de ter.

- Nunca me imaginei sendo musa de ninguém.

- Você tem o que precisa.

- Como você pode saber?

- Não sei ao certo. Mas acho que vou querer descobrir.

Nos beijamos depois disso. Talvez tenha sido o beijo mais longo que dei em minha vida.

Ficamos quase uma hora deitados no sofá.

Eu acariciava seu corpo, por cima do vestido. Sentia a marca da calcinha e percebi que ela estava sem sutiã.

Ela estava bastante excitada. Assim como eu. Mas não avancei mais do que isso.

Depois de um tempo, nos separamos e ficamos ouvindo musica enquanto ela fumava um cigarro na janela.

A tarde se passou inteira enquanto bebíamos e conversávamos.

Ela quis assistir um filme, e eu liguei a TV que quase nunca usava.

Ficamos ali, de mãos dadas e com as pernas entrelaçadas, fingindo que prestávamos atenção.

Cansei-me daquilo.

Voltei a passar a mão pelo seu corpo, mas dessa vez por debaixo do vestido. Ela permitiu e pareceu cada vez mais empolgada.

Deixou a alça do vestido cair e eu pude ver seus seios.

Eram pequenos, mas bastante firmes. Do jeito que eu gostava.

Abocanhei um com cuidado e passei levemente a língua sobre o mamilo, que logo enrijeceu. Uma das minhas mãos começou a passear por entre suas pernas e eu já não pensava em mais nada a não ser em ter aquela mulher ali mesmo. A ergui e puxei sobre o meu colo. Não senti nenhuma resistência. Continuamos nos beijamos e fomos até o fim.

Suspirando, ela recostou a cabeça sobre meu ombro e deu uma pequena risada.

- Essa foi das boas. Preciso de um cigarro.

Deixei que ela se levantasse. Mas eu queria mais.

Pedimos algo para comer e continuamos bebendo vinho e assistindo o filme na TV.

Pelo jeito ela adorava aquela história.

Sabia decoradas as falas do personagem principal.

Adormecemos no sofá e acordei com o miado do gato arranhando a porta.

Abri, deixei o bicho entrar e vi que Vanessa se estendera no sofá. Vê-la de costas para mim, me deixou novamente excitado.

Transamos mais uma vez e ao fim ela disse que tinha que ir embora.

Esperei com ela o taxi.

Ela se despediu sem me beijar e se foi.

Naquele exato momento tive uma sensação de Déjà vu.

O sonho da noite anterior me veio na cabeça.

Vanessa realmente se parecia com a mulher do sonho.

Subi as escadas com o estômago embrulhado e não consegui dormir.

9

Vanessa sumiu depois disso. Pareceu realmente empenhada em estar pouco disponível depois da nossa tarde e noite juntos e eu resolvi deixar tudo aquilo de lado. Escrevi alguns poemas de amor. Tudo muito desconexo, confesso.

Tiago perguntou se tinha acontecido alguma coisa entre nós. Não confirmei nem desmenti. Continuamos a trabalhar no roteiro, apesar de eu estar bastante atarefado com a faculdade. Parei de me exercitar pela manhã e passei a me embriagar com mais frequência.

Eu escrevia como um louco. Mas nada parecia se encaixar. A caixa de papelão logo estava cheia e tive que arranjar outra.

Levou mais de um mês para que eu parasse de pensar em Vanessa. Pelo menos o tempo todo.

Lara me ligou depois de muito tempo. Achei estranho, mas atendi.

- Alo?

- Oi, R. Tudo bem?

- Estou indo.

- Pensei em você hoje de manhã.

- Foi? Sobre o que?

- Sobre o seu jeito.

- Como assim?

- Acho que você tem medo.

- Medo de que?

- De mim.

- Não tenho medo de você.

- E porque não nos vimos mais?

- Às vezes essas coisas acontecem.

- Não entendo.

- Olha. Porque você não passa aqui e conversamos sobre isso?

- Pode ser.

- Amanhã à noite estou livre. Tudo bem para você?

- Ok. Beijos.

Desliguei.

Pensei que aquela mulher realmente não sabia o que queria da vida.

Não que eu pudesse recriminá-la por isso. Eu vivia na mesma situação a maior parte do tempo. No fim das contas, eu gostava de Lara. Só não queria correr atrás de ninguém.

Percebi o gato se esfregando na nova caixa de papelão no quarto.

Ele se armava para dar uma mijada e marcar o território. Arremessei o celular tentando salvar os textos. O bicho se assustou e saiu correndo até a cozinha.

Fui recolher o telefone e vi que tinha partido a tela.

Tive tanta raiva que chutei a caixa e os papéis esvoaçaram pelo quarto.

Pensei por fim que as mulheres eram realmente capazes de me transformar num ser irracional.

Me sentei e comecei a arrumar a bagunça pensando em quanto me custaria aquele gesto de descontrole.

10

Lara apareceu e conversamos muito sobre trabalho e também relacionamentos. Não transamos. Apenas nos beijamos ocasionalmente. Nenhum dos dois tomava iniciativa para o sexo. Podia parecer que eu não estava interessado. Mas isso não era verdade. Eu só sabia que no momento em que eu me deixasse envolver com aquela mulher, estaria dando um passo em direção a algo que eu não sentia disposto a assumir.

Eu realmente gostava de Lara. Tínhamos muitas coisas em comum. Desde gosto musical até preferências políticas. Fisicamente, confesso que já tinha tido mulheres mais atraentes. Mas era o rosto e o olhar dela que mais me atraíam nesse quesito. Frequentemente me via hipnotizado por seus olhos verdes. Eu sabia que ia me apaixonar se levássemos o relacionamento adiante. Eu só sentia que não precisava daquilo naquele momento. Eu simplesmente não estava pronto.

Meu único medo era que ela achasse que eu não tinha tesão ou interesse por ela. Afinal, nunca verbalizei o motivo pelo qual eu me mantinha sempre contido quando ao seu lado.

Não bebemos naquela noite. Ela me ajudou a organizar alguns dos meus planos de aula. Brincou com o gato por um tempo, e me deu uma força com os pratos que sujamos depois do jantar. Estava com ela na santa paz e começava a me perguntar se seria possível que desse certo algo entre nós dois.

As horas passaram e dormimos juntos. Ela vestiu uma camisa minha e ficou só de calcinha por baixo. Eu fiquei sem camisa e de bermuda. Não ficamos abraçados, mas era bom sentir o corpo dela próximo do meu.

De manhã, ela se levantou primeiro, fez comida e só então me acordou.

- R. Fiz o café.

- Já vou. Preciso tomar um banho antes.

Entrei debaixo do chuveiro rapidamente e depois escovei os dentes.

Encontrei Lara na sala, assistindo TV com o gato no colo.

Ao me ver, ela se levantou e sentou à mesa.

Comemos e logo estávamos os dois animados e falantes.

- Você quer fazer alguma coisa hoje? Perguntei.

- Está fazendo sol. Seria legal irmos à praia.

- Podemos almoçar num restaurante a beira mar aqui por perto.

- Parece bom. Disse-me sorrindo.

Naquele momento, meus receios sobre nós dois pareceram se dissolver com o sorriso de Lara. Nos beijamos e terminamos no quarto. Entrelaçados...

Fizemos amor por horas seguidas.

Naquele dia, não fomos à praia. Ficamos na cama até as 15. Eu fiz um almoço simples. Macarrão e carne. Comemos e voltamos para a cama.

Lara foi embora no começo da noite.

Não comentamos nada sobre o que seria de nós dali em diante.

Naquele momento, pareceu que estava tudo certo.

11

Assisti sozinho um documentário sobre lutas de classes no século XX e a idéia de “castas econômicas” não me saía da cabeça. Eu sempre fui meio alinhado para o lado da esquerda na política. Mas estava enojado com tudo que se via naquela época no Brasil. Não se tinha opção de voto. Era tudo a mesma merda. Estávamos fadados a estagnação social. Rico de um lado, pobre do outro e a polícia no meio.

Recife estava fervendo naqueles dias. Havia um movimento contra a apropriação de espaços urbanos por grandes empresas construtoras, que queriam transformar a cidade num aglomerado de prédios que não eram nada mais do que feudos de concreto para os mais abastados.

Eu estava tomando uma cerveja com Tiago e Ayres, um outro amigo. Conversávamos sobre o movimento contra o projeto das construtoras e ele me contava como a polícia tinha entrado violentamente no acampamento dos protestantes e expulsado todo mundo na base das balas de borracha e do cassetete. Soube pelos dois, que Vanessa Rodrigues estava acampada do lado da obra que tentavam impedir de ser iniciada. Tinha se envolvido com um hippie. Desses cheios de dreadlocks e filosofia rastafári na cabeça. Era realmente bem o estilo dela.

Eu pensei em me meter naquela briga, mas eu sentia que tinha muitas coisas na mão no momento. Meu aluguel não se pagaria sozinho. O máximo que eu podia fazer era dar apoio verbal a quem estava lá, disposto a levar tiro e spray de pimenta na cara.

O bar que estávamos bebendo era um ambiente realmente agradável. Se podia ver todo tipo de gente pelo o lugar. Apesar da grande quantidade de pseudo-cults e adultos jovens criados com a avó em apartamento, de vez em quando era possível esbarrar numa pessoa interessante e conversar por toda uma noite.

Ayres era um tipo pouco convencional. Já foi religioso e conservador até a raiz dos cabelos. Hoje estudava Psicologia e trabalhava com terapias alternativas orientais. Desde que nos conhecemos ele frequentou três cursos superiores diferentes. Nunca terminou nenhum. Eu o considerava um grande parceiro. Sempre tínhamos algo para conversar. Atualmente ele bebia pouco... Quase nada, e tinha uma namorada podre de rica. Estava quase tão domesticado quanto Vicente, do qual também era amigo. Deu meia noite e meus companheiros resolveram ir embora.

Cada um deixou uma nota de 20 em cima da mesa e entraram num taxi.

Fiquei sozinho no bar e fui me sentar junto ao balcão. Pedi uma dose de uísque com gelo e bebi, enquanto observava o movimento de garotas dentro do lugar. Lara tinha viajado. Passaria um mês fora. Tinha me deixado claro que eu estava livre. Assim como ela.

Aquela idéia não tinha me entrado bem na cabeça. Mas depois de umas cervejas e da dose de uísque, tudo foi ficando cada vez mais aceitável. Eu não estava pensando em caça. Mas ia dar uma chance àquela noite.

Era uma questão de usar as palavras certas. Eu nunca tinha sido muito bom em ir atrás das mulheres. Sempre foi mais confortável quando elas vinham até mim. Mas com esse tipo de postura há uma grande chance de se terminar a noite sozinho e amargurado.

Havia uma morena sentada ao balcão, bem próxima a mim. Era bonita e estava sozinha, o que era muito estranho. Parecia ter mais de 30 anos. Com certeza não era uma menina, o que já melhorava muito as possibilidades dela ser uma pessoa interessante. Ela percebeu que eu estava lhe olhando e resolvi me levantar e sentar ao seu lado.

- Engraçado. Mas sinto que esqueci como se aborda uma mulher em um bar.

- Por que diz isso? – perguntou sem mostrar muito entusiasmo.

- Percebi você já faz um tempo, e só agora achei que devia vir aqui conversar.

- E por que você acha que deveria vir aqui falar comigo? – Respondeu, com a típica ‘gentileza’ da mulher recifense.

- Eu simplesmente achei que devia. Gosto de seguir meus instintos de vez em quando.

- Só não espere muito dessa conversa.

- ok. Te digo o mesmo.

Ela me olhou e abriu um meio sorriso.

- Você é do tipo engraçado, né?

- Você não poderia estar mais errada...

- Qual o seu nome?

- Me chamo R. e o seu?

- Élida.

- E o que você faz aqui sozinha, moça?

- Estou vendo o tempo passar. E você?

- Estava tomando uma cerveja com uns amigos. Eles foram embora.

- Hum... mas por que vir conversar comigo?

- Por que você estava sozinha. E você tem um certo estilo.

- Como assim?

- Você não parece necessitada de atenção. Parece ser do tipo silencioso e de poucas palavras.

- Você não poderia estar mais certo.

- Vá se acostumando.

Élida deu uma risada contida e foi ficando mais descontraída.

Conversamos por mais de uma hora e resolvemos ir andando até o Marco zero da cidade. Uma caminhada e tanto.

O céu estava limpo, e apesar das luzes dos postes e das casas, dava pra ver muitas estrelas brilhando sobre nossas cabeças.

A conversa foi ficando cada vez mais interessante. Descobri que ela era divorciada e não tinha filhos. Era médica plantonista. Clínica geral. Trabalhava bastante, pelo que dizia.

Nos sentamos a beira do porto e nos demos as mãos.

Por algum tempo não trocamos nenhuma palavra, mas então ela quebrou o silêncio.

- Parece que você realmente ama essa cidade.

- Não há melhor lugar no mundo.

- Eu vejo como você olha para os prédios. Como suspirou quando chegou perto do mar.

- Sinto que faço parte daqui. É uma sensação única.

- Você morou muito tempo longe, não foi?

- Quatro anos. Enquanto fazia o doutorado.

- Eu não sabia... como foi pra você?

- Um inferno, a maior parte do tempo. Mas tive bons momentos também.

- Quantos anos você tem?

- Quase 29.

- Não parece. Você parece bem mais jovem.

- Muita gente já me disse isso. Mas eu posso ser ranzinza como um cachorro velho.

- Eu também tenho meus momentos. Falou, quase suspirando.

- O que foi?

- Você me deixa estranhamente à vontade.

- E isso te incomoda?

- Só acho que não devia acontecer.

- Eu posso ir embora.

- Eu não quero. Disse finalmente. – Prefiro que você fique.

- Então eu fico, mas só se você me responder uma pergunta bem pessoal.

- O que? Perguntou visivelmente ansiosa.

- Qual a sua idade? Falei, abrindo um sorriso safado.

Ela suspirou, aliviada.

- Tenho 35.

- Você não devia se envolver com caras mais jovens. Dão muito trabalho.

- Eu não estou me envol...

Silenciei ela com um beijo.

- O que você estava dizendo mesmo? Falei olhando nos seus olhos.

Ela não respondeu e voltou a me beijar.

Até que a noite tinha caminhado bem.

(....)

12

Eu me sentia um pouco culpado. Deitado na cama de Élida, com ela ressonando, nua como veio ao mundo, ao meu lado. Pensei em sair de fininho e ir para casa. Mas isso faria só me sentir mais confuso do que me sentia no momento. Me deixaria além de confuso, com a pecha de canalha. A verdade é que eu não tinha motivos para me sentir assim. No fim das contas eu era solteiro e não estava traindo ninguém. Mas a verdade não significa muito quando você quer acreditar em outra coisa. Pensava no que Lara estaria fazendo agora. Para onde estariam olhando aqueles olhos verdes cheios de falsa inocência.

Resolvi ficar quieto e tentar adormecer.

Acordei já perto do meio dia, com um barulho de liquidificador. Vesti minha calça e fui até a cozinha. Élida estava de costas fazendo um suco. Só de calcinha. Maravilhosa como uma modelo dos anos 30 em uma foto em preto e branco... Tinha os cabelos negros soltos espalhados por suas costas. Cantarolava uma musica acompanhado um rádio de pilhas que tocava em cima da geladeira. Me senti um idiota por ter considerado ir embora durante a madrugada. Pé ante pé, me aproximei e a enlacei pela cintura. Repousei meu pescoço em seu ombro e lhe dei um beijo atrás da orelha. Pude ver a pele de seus braços responder com um arrepio. Ela largou o aparelho, se virou e me beijou. – Puta que pariu... pensei. – La vamos nós de novo.

Deixei que Élida terminasse de fazer o suco e voltei para sala.

Diferentemente da minha casa, tudo ali parecia estar em seu devido lugar. Comparado àquilo, meu apartamento era um chiqueiro. Eu quase tinha medo de tocar em suas coisas e tirar algo do lugar.

Élida trouxe uma jarra de suco de laranja gelado e algumas torradas com manteiga e geléia de framboesa. Comemos, conversamos e rimos durante um bom tempo. Vou confessar a vocês, amigos. Há pouca coisa melhor no mundo do que acordar do lado de uma mulher interessante e que lhe deseje. E não há nada mais tenso e estressante do que estar em dúvida entre duas boas mulheres. Em teoria, pode até parecer algo excitante. Triângulos amorosos tem uma certa poesia... mas também há uma grande possibilidade de acabar em merda. Merda viva, como diria meu pai.

Não é preciso de muito mais do que uma noite para eu saber se vou querer continuar saindo com uma mulher. Élida era adorável além da imaginação... ou talvez só fosse minha carência do momento. Eu iria vê-la de novo. Por mais que meus instintos e a razão me dissessem que eu deveria resumir tudo apenas àquela ocasião. Foda-se a razão, pensei. Fodam-se os instintos.

Bebi mais um gole de suco e me deixei afogar na conversa e nos longos cabelos negros daquela mulher.

(Segunda Parte -> http://www.recantodasletras.com.br/novelas/4942067)

Rômulo Maciel de Moraes Filho
Enviado por Rômulo Maciel de Moraes Filho em 29/08/2014
Reeditado em 29/08/2014
Código do texto: T4942064
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