Entre a Cruz e a Espada

NOVELA - ROMANCE

Publicarei a partir de hoje e em capítulos diários, meu romance ENTRE A CRUZ E A ESPADA. Espero que gostem!

I

Nasceu de Novo...

Fazia duas horas e meia que o avião decolara. O piloto havia perdido contato com a torre de controle. A aeronave perdia altura cada vez mais e foi caindo... caindo... afinal engolido pelas águas do largo oceano. Duzentos e trinta e seis passageiros. Aparentemente sem sobreviven-

tes. A notícia tomara conta da mídia. Parentes, conhecidos e amigos dos passageiros buscavam, aflitos, informações sobre a possibilidade de sobreviventes, mas... nada! A tragédia fora dada como perda total, ninguém houvera conseguido escapar. Difícil fora a remoção dos corpos,

muitos haviam desaparecidos, embora os destroços, quase intactos, pois não houve explosão, mostrassem ter sido quase impossível que alguém haja logrado sair ileso da catástrofe. Constatou-se, posteriormente, que a pressão do mar abrira uma das portas, por onde, talvez, alguns corpos hajam sido sugados pela correnteza. O fato foi que a empresa aérea divulgou uma lista com os nomes dos 236 passageiros, todos considerados mortos.

Alguns dias se passaram após o acidente. O mar permanecera agitado e uma leve chuva trazia do horizonte um friozinho que causava leves arrepios. Mesmo com o tempo incerto, Fernando Cintra saíra para seu costumeiro “cooper” da manhã. Eram 5 e meia, o dia ainda nascia, o sol

permanecia meio escondido. Fernando Cintra agora caminhava pela areia, tudo estava deserto. Já perto de casa, divisou um corpo jogado sobre as pedras. Percebeu tratar-se de um jovem que, se muito tivesse, haveria 15 anos. Chegou perto. À primeira vista parecia morto, porém Fernando observou uma tênue respiração. Estava vivo! Colocou-o nos braços e o levou para sua casa, era evidente que necessitava urgentemente de um socorro. As roupas do jovem estavam ensopadas e, nos pés, apenas um sapato. Deitou-o no sofá, tirou-lhe aquelas vestes

molhadas, trouxe uma toalha e o enxugou. Era preciso banhá-lo com água quente, a pele parecia engelhada pelo frio cortante. Foi à cozinha e colocou água numa chaleira para esquentar, depois dirigiu-se ao banheiro, onde juntou água numa bacia. Preparou sabonete, xampu

e os demais acessórios. Ao notar que o banho estava pronto, voltou à sala terminou de despir o jovem e o carregou até o local em que pusera a bacia. Lavou-o com carinho em todas as partes daquele corpo magro, contudo bonito e bem dividido. Concluído o banho, enxugou-o

com uma toalha e o depositou em sua própria cama. Penteou os cabelos e o deixou desnudo, porque suas roupas estavam molhadas e Fernando não havia em casa roupas adequadas para ele. O jovem parecia estar melhor da respiração e Fernando percebeu que mexia com os dedos

das mãos. Aos poucos foi despertando daquele torpor e, finalmente, abriu os olhos. Tentou reconhecer onde estava, que ambiente era aquele. Tudo era-lhe desconhecido, inclusive a voz que lhe deu boas-vindas ao lar.

- Não sei quem é você, nem o que ocorreu, só sei que o encontrei desfalecido sobre as pedras e o trouxe para minha casa. Meu nome é Fernando Cintra...Prazer em conhecê-lo! Qual é mesmo seu nome?

O garoto o olhou desconfiado e em seus olhos percebia-se um nuvem de lágrimas.

- Diga-me seu nome – insistiu Fernando – e o que aconteceu com você...

- Tenho fome! – Foi o que conseguiu balbuciar.

Imediatamente Fernando foi à cozinha e lhe preparou um alimento pastoso de aveia, pois, julgou que, com a fraqueza em que se encontrava, ele não conseguiria mastigar sólidos. Arrumou-o na cama, subiu o travesseiro a fim de que houvesse uma posição confortável para o desconhecido se alimentar. Fernando sabia-o faminto, porém não viu qualquer movimento em direção à comida, então sentou ao seu lado, à beira da cama e com uma colher alimentou-o, delicadamente. Com certeza o menino estava com fome visto que nada sobrou do que Fernando trouxera.

Mais uma vez falou, mas de modo quase ininteligível.

- Tenho sede!

Fernando lhe trouxe água gelada num copo e já pensando que ele não teria acesso por si só ao conteúdo, trouxe também canudos. O rapaz sugou a água num segundo e, depois, repentinamente, adormeceu de forma profunda. Ainda bem que Fernando Cintra se encontrava em gozo de férias por conta própria. Era autônomo, trabalhava com vendas de peças para carros, motos, caminhões, tratores, bicicletas... Era viúvo, perdera a esposa fazia 4 anos e não tinha filhos. Morava só, contava 30 anos. Precisou sair para comprar alguns mantimentos e o fez apressadamente. Em sua mente havia algumas interrogações: quem seria aquele menino? O que positivamente houvera ocorrido a ele? Deveria entregá-lo às autoridades competentes? Tomou a seguinte resolução: até que o menino pudesse falar e esclarecer tudo o que desejava saber, mantê-lo-ia em sua casa e no mais absoluto silêncio, não havia motivos para comentar o fato com quem quer que fosse. Dedicou-se inteiramente à recuperação daquele jovem a ponto de, no quinto dia, sentir-se

afeiçoado a ele como se o mesmo fosse seu filho. Enquanto não voltava à realidade, o menino era tratado com dedicação e bastante carinho. Fernando fazia a higiene quando de suas necessidades fisiológicas, dava-lhe banho, alimentava-o. Somente no quinto dia Fernando perce-

beu-o bem melhor, o olhar mais vivo e um maior interesse em saber onde estava.

- Onde eu estou? Quem é você? – Indagou a Fernando.

- Eu sou Fernando Cintra. E você, quem é? Qual é seu nome?

- Meu nome é Alan. Alan Pinheiro. Onde estão meus pais e minha irmã? – Perguntou.

- Eu não sei – respondeu Fernando – preciso saber de você o que aconteceu. Tem alguma lembranca do que possa ter ocorrido?

- Vaga lembrança... avião... água... gritos...

Foi quando Fernando Cintra entendeu o que mais ou menos acontecera. Estava diante de um sobrevivente do acidente aéreo ocorrido há poucos dias.

- Não se esforce muito agora, Alan. Descanse, posteriormente eu o ajudo a concatenar suas ideias. Diga-me apenas: que idade tem?

- 14 anos e... por que estou nu?

- Porque suas roupas não prestaram mais, no entanto vou comprar tudo novo para você...

- Eu tenho vergonha...

- Não necessita ter vergonha, aqui só há eu e você.

O menino nada mais disse. Voltou a adormecer. Fernando ficou a prestar atenção ao seu sono, agora mais leve e mais profundo. A verdade é que Alan melhorava e, logo, estaria de pé. Para não contrariá-lo, no dia seguinte saiu e comprou algumas roupas leves, como calções de algo-

dão e camisetas, somente por enquanto. Desta vez, Alan dormiu durante longas horas. Quando se acordou no dia seguinte, verificou-se vestido e estava mais disposto. A cama em que Fernando dormia era cama de casal, a única existente ali. Olhou e percebeu que Fernando ressonava ao seu lado, mas logo despertou.

- Bom dia, Fernando! – a voz estava bem mais legível – Posso tentar levantar-me?

- Calma – disse Fernando – deixe-me ajudá-lo.

Alan conseguiu ficar de pé, porém foi acometido por uma tontura, talvez pelo fato de tanto tempo deitado. Fernando o segurou, evitando que ele levasse uma queda.

- Devagar você vai tentando e eu o ajudando, logo estará bem – confortava Fernando.

- Tenho muito de agradecer a você por tudo o que está a fazer por mim.

- Nada faço esperando agradecimentos ou recompensas. Faço por ser cristão e o ensinamento bíblico é bem claro: “Amai a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo.”

- Sim, é verdade. Você é um santo...

- Não diga isso, Alan. Sou uma pessoa igual a você, apenas mais velho um pouco.

- Estou com calor – disse Alan.

Fernando o despiu e o levou para o banheiro onde lhe deu um banho. Trouxe-o de volta à cama e o vestiu com roupas limpas.

- Está com fome? – Fernando perguntou.

- Sim.

Fernando providenciou seu desjejum. Agora ele já comia coisas sólidas. Aos poucos se restabelecia.

- Quero conversar. Você me escuta?

- Claro – respondeu Fernando – fale-me sobre o que quiser.

- Tenho agora lembrança de tudo o que me aconteceu. Posso dar-lhe em detalhes, se assim tiver interesse em conhecer minha história.

- Conte-me tudo – pediu Fernando – há muito desejo saber o que se passou com você.

- Éramos quatro: eu, minha mãe Olívia, meu pai Arthur e minha irmã Sulene. Vivíamos numa cidade do interior do Pará. Meu pai estava endividado, devia até os cabelos da cabeça. Como ele não tinha como pagar, tiraram-nos tudo o que puderam: casa, móveis, pertences pessoais... tudo! Meu pai havia guardado uma pequena quantia e, com esse dinheiro, comprou nossas passagens de avião, estávamos indo para São Paulo, onde pretendíamos recomeçar nossa vida. Fomos obrigados a sair de nossa cidade, pois, como já não possuíamos bens para resgatar as dívidas, estávamos ameaçados de morte. Foi aí que tudo ocorreu. Pegamos o avião, mas houve o desastre e eu acho que fui o único sobrevivente dessa tragédia.

- A empresa aérea informou que todos morreram, que não houve sobreviventes. Você se lembra de como conseguiu escapar?

- Tenho uma ligeira lembrança de que, quando o avião chocou-se com a água, uma das portas se abriu e consegui passar. Cheguei à tona e nadei o que pude, acho que a correnteza marinha levou-me e me deixou onde você me encontrou. É o que posso lembrar-me...

- Quando estiver recuperado, o que pretende fazer? – Quis saber Fernando.

- Eu não sei! Não tenho aonde ir. Também não desejo que saibam que sobrevivi, certamente os credores de meu pai procurarão por mim e tentarão matar-me...-Alan chorava.

- Ninguém vai saber que você sobreviveu. Ninguém sabe que você está aqui. – Falou Fernando.

- Com certeza você tem seus afazeres e sua família para dar atenção, não vai querer preocupar-se mais comigo. – Alan se lamentou.

- Que eu tenho meus afazeres, não há dúvidas, porém familiares, não. Vivo só. Sou viúvo há quase 5 anos e não tenho filhos. Você gostaria de recomeçar sua vida morando comigo definitivamente?

- Você faria isto? Por quê? No fundo, sou um desconhecido..

- De tanto cuidar de você nesses dias, de tanto dar-lhe banho, dar comida em sua boca e até fazer sua higiene pessoal, eu me afeiçoei a você. Estou disposto a aceitá-lo aqui ao meu lado para sempre, ou até quando desejar...

Alan era um garoto bastante emotivo, então se emocionou profundamente com o que estava a ouvir de Fernando Cintra.

- Eu quero ficar com você!

Disse isto e buscou o abraço de gratidão. Deixou-se cair sobre o ombro de Fernando e chorou, e chorou, e chorou...

- Tenho uma ideia. – Disse Fernando.

- Qual?

- Diante de tudo o que você me relatou e estando você oficialmente morto diante da lei, poderei dar a você um novo nome e sobrenome. Já que é uma vida nova, então que se faça tudo novo.

- E como você conseguiria isto?

- Tenho amigos importantes como donos de cartórios, advogados, donos de escolas... Todos há muito meus clientes. Sou autônomo, trabalho com vendas e representações de peças de carros, automotores e bicicletas. Eu falo com um tabelião amigo meu e ele registra você como se fosse filho meu e de minha esposa que faleceu... de posse da nova certidão de nascimento, eu falarei com uma dona de escola e ela me facilitaria já com seu novo nome, uma ficha 18, isto é, como se você houvesse concluído o fundamental e o restante, daqui em diante, seria por sua conta, porque eu o matricularei numa escola. Tiraremos sua identidade, seu CPF, tudo

regularizado para você ter uma existência normal.

- Na realidade eu tenho o fundamental completo... iria matricular-me em São Paulo no 1º. médio.

- Você quer que eu faça tudo isto para você? – Fernando inquiriu.

- Sim, eu quero. Serei oficialmente seu filho e isto me agrada.

- Isto me agrada também a mim.

- Como é seu nome completo?

- Fernando Cintra Oliveira de Souza.

-Posso escolher meu próprio batismo?

- Claro! Que nome pretende dar a você?

- Matheus. Passo a chamar-me Matheus Cintra Oliveira de Souza. Fica bem este nome?

- Perfeito!

Tudo ficou combinado entre ambos. Aguardavam, agora, que Alan se recuperasse totalmente para pôr em prática o que houveram combinado. Não foi difícil, em duas semanas Matheus já estava de posse de sua certidão de nascimento, da ficha 18 da escola e tinha identidade e CPF.

Uma nova vida estava a começar para ele e para Fernando Cintra e os ventos iriam soprar sobre eles, ora forte, ora leve e as folhas das árvores iriam sorrir perante aquela suntuosa harmonia que surgia, uma relação de amizade que prometia singrar as mais altas montanhas e trazia do infinito, as bênçãos dos céus.

FIM DO I CAPÍTULO

Ivan Melo
Enviado por Ivan Melo em 31/07/2014
Código do texto: T4904773
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