O Herege 1 (A má fome). Cap. 1.
Pukerd traz uma pedra.
Pukerd caiu no chão se contorcendo. Tentara voltar andando, mas não agüentava mais. Garns e Ciocick o pegaram e carregaram até o acampamento. Estavam perto, mas ainda assim era uma boa subida. Mas se esforçariam pelo amigo. O meio dia tornava a travessia mais fácil, com as pedras menos úmidas e maior claridade para se localizarem. O odor mais forte dos musgos sob o sol também ajudava a mascarar um pouco o seu cheiro. Pukerd tentava manter-se calado, mas havia momentos em que não conseguia segurar. Sabia que colocava os amigos em perigo, mas soltava um gemido anasalado, seguido de um curto choro. Estavam chegando. Avistaram Tamak colhendo madeira, e o gritaram.
- O que houve? Pukerd se machucou?
- Não, o espírito ruim de novo.
Tamak já era um adulto pleno, e foi muito mais fácil carregar Pukerd com sua ajuda. Entraram no acampamento e foram direto para dentro da pequena gruta onde estava Puupuki. O velho curandeiro estava doente e vomitava quando entraram. Tamak deixou Pukerd com os dois adolescentes e foi ajudar Puupuki. O velho o olhou-lhe dentro dos olhos, como se atravessasse Tamak e visse por detrás de sua cabeça. Depois voltou os olhos para o Tamak que se percebia ali na sua frente, e depois para Pukerd.
- O mal espírito de novo.
- Sim Puupuki.
- Deitem-no aqui. – Pukerd suava frio e não conseguia mais conter a dor. Gemia mais alto agora em meio ao choro. – Vá até sua Ginagi. Ela carrega sempre junto a ela as ervas de Pukerd. Chamem Puugi e Tarer também.
Garns e Ciocick saíram para buscar as pessoas que Puupuki mandara chamar.
- Tamak, você sabe como se faz. Me ajude aqui.
- Sim Puupuki. – Tamak pegou a moita seca de musgo e mergulhou no pote em formato de Pato selvagem e com ela limpava o suor de Pukerd. Puupuki alimentou um pouco a fogueira e colocou o outro pote de barro preto e grosso com água perto da fogueira e as pedras lisas dentro da fogueira. Jogou algumas ervas e começou a cantar uma cantiga em uma língua que a maior parte do clã já desconhecia. Vinham assimilando cada vez mais a língua dos povos do vale. Alguns já não compareciam aos cantos entoados por Puupuki nas noites em volta das fogueiras, e não escutavam as histórias de Pugarn, o pai de todos os membros do clã.
Ginagi chegara sem os dois adolescentes. Ficara sabendo que seu filho havia caído com as dores de novo. Ela sabia como era isso. Vira as dores consumindo seu marido, até matá-lo. Quando Pukerd também teve as dores, alguns membros do clã queriam expulsá-lo, mas boa parte deles também já tinham visto outras pessoas que as sentiam, embora não tão fortemente como Pukerd e Sikerd, seu pai. Não caiam. E os outros também não tinham as pedras que Pukerd e seu pai Sikerd tinham. Só pequenos grãos de areia. Pukerd tinha as pedras pretas. Poucos as tinham. Mas o medo era duplo. Se por um lado tinham medo das dores de Pukerd, tinham medo também de Gapugarn, o rei dos pássaros, que guiara Pugarn até o alto da montanha, e para quem as pedras eram oferecidas. Temiam que ele os abandonasse e os punisse se deixassem de oferecer as pedras de Pukerd. As pequenas pedras negras que Purked expelia na sua urina.
- Purked! – Purked Olhou para a mãe com um olhar de dor, mas não conseguia fazer mais nada além de tentar se concentrar em sofrer menos. Ginagi entregou as ervas para Puupuki. Este pegou e as jogou dentro do pote negro cheio de água ao lado da fogueira, e depois jogou as pedras já quase incandescentes dentro da água, que começou a ferver na hora.
- Espere lá fora Ginagi. – A mãe olhou para o filho, e depois para Tamak com a bucha de musgos secos com o qual limpava o suor e ia jogando água fresca na testa e no rim esquerdo de Pukerd. Queria fazer algo, mas não sabia. Deixaria tudo na mão de Puupuki. Ele saberia o que fazer. Ginagi saiu enquanto Garns chegava com Puugi.
- E Tarer?
- Está caçando Puupuki. Vamos ser só nós.
- Você nos ajuda Tamak.
- Sim Puupuki. Só não sei ao certo como se faz.
- Não é difícil. É só nos acompanhar. Primeiro coloque o musgo sobre o rim dele. – Tamar virou Pukerd de lado colocou o musgo seco delicadamente sobre seu rim esquerdo. Puupuki, que já retirara as ervas fervidas as colocou acima do musgo e tampou com um pedaço de pele de urso preto. Impôs as mãos sobre o rim de Pukerd, e foi seguido por Puugi. – Agora você faz igual e sente a força na sua mão. Sinta a pedra de Pukerd só com essa força, e a empurre para fora. Sinta sua textura, mas só com a sensação dessa força. Não se preocupe se não sentir. Apenas sinta a força na sua mão que eu e Puugi faremos o resto.
Com o calor das ervas sobre o rim Pukerd começou a suar ainda mais, mas agora sentia uma pequena diminuição na dor. Ela ia aos poucos cedendo. Ainda doía, mas deixava de ser desesperador. Depois de um tempo, Puupuki falou para Tamak pegar um pouco da água onde estava a infusão de ervas e ir dando aos poucos para Pukerd. Ele ia dando as porções aos poucos, em pequenos intervalos de tempo. Usava uma grande colher de barro funda, que era bebida em dois goles por Pukerd. Puupuki e Puugi continuavam com as mãos impostas sobre o rim de Pukerd. De repente esse sentiu com se algo tivesse se soltado. A dor foi intensa. Ele gritou mas a dor logo passou. Foi uma sensação grande de alívio. Ainda doía muito. Puupuki olho para Puugi saiu e se recostou em um canto forrado da pequena gruta, perto do fogo. Puugi continuou com as mãos impostas sobre Pukerd. Depois de um tempo Puupuki encheu a colher de barro com a infusão quente, levantou a pele de urso, molhou as ervas e cobriu novamente. Estava suado e exausto. Recostou-se de novo perto da fogueira. Tomou uma colherada da infusão que estavam dando para Pukerd. Pediu a vasília de água pura para Garns que esperava por perto e olhava o amigo que agora ia ficando mais calmo. Puupuki Se aprumou e começou a cantar uma canção na língua antiga. Algumas partes Garns e Pukerd que agora já voltava a si puderam entender. Era as partes onde falavam de Gapugarn, e lhe prometiam a pedra, pela ajuda que lhes dera naquele momento.
- Chame Ginagi Garns – A adolescente saiu e voltou com a mulher. Ela olhou primeiro para o filho e vendo que já estava melhor se dirigiu a Puupuki.
- Puupuki, Pukerd herdou a função de trazer as pedras do pai. Será que isso vai matá-lo também como ao pai Puupuki. Não quero que isso aconteça.
- Não somos nós que definimos isso Ginagi. A montanha usa Pukerd como usava Sikerd antes dele para enviar as pedras para Gapugarn. Você como fazer agora. Leve a infusão e vá lhe dando aos poucos até o final. Quando ele começar a urinar, use essa vasilha e veja se a pedra para Gapugarn saiu. Depois que sair volte e traga as outras ervas que Pukerd vai precisar. São as mesmas. Garns, ajude Ginagi. Você já consegue ir Pukerd. Garns, depois de deixar Pukerd, avise aos outros que haverá noite de fogueira hoje, é que é para todos se absterem de sexo hoje à noite. E Ginagi, a pedra deve sair antes da noite. Assim que sair me traga.
- Sim Puupuki.
Ginagi saiu amparando o filho ajudada por Garns. Os três saíram e deixaram Puupuki, Puugi e Tamak dentro da pequena caverna.
- Tamak, pode ir. Se vir Tarer peça a ele para vir aqui.
- Sim Puupuki.
Assim que Tamak saiu e Puugi percebeu que já estava distante o suficiente olhou para Puupuki. Percebia sua degradação. Puupuki estava morrendo. Era a principal figura de autoridade do clã, e nem ele nem Tarer poderiam substituí-lo. Nem mesmo o velho Garns, pai do adolescente que saíra a pouco, que liderava o clã na defesa contra os animais ou contra os homens do vale poderia guiá-los.
- O espírito ruim que tenta segurar as pedras escapou Puupuki.
- Não, morreu quando a pedra soltou. Ele ira voltar para o solo com o sangue na urina de Pukerd.
Puugi esperou um pouco enquanto Puupuki recuperava o fôlego. Puugi já percebera que ele vomitara novamente. Olhou o vômito escuro. Puupuki nem tentara esconder dessa vez com pedras ou terra, como fazia antes. Ele vinha emagrecendo muito rapidamente dessa vez. Mantinha ainda a dieta dura, sem carne e só com as raízes e folhas que indicava. Mas parece que dessa vez não estava adiantando mais. Sua face perdera já a cor e dava para perceber os ossos e a cavidade onde os olhos ficavam soltos.
- E como você está Puupuki?
Puupuki esperou um pouco antes de responder. Respirou fundo procurando descansar um pouco mais. Parecia estar extremamente abatido. – Não sei Puugi. Pugarn não me manda mais as visões desde que as chuvas foram embora. Vamos esperar.
* * *
Pukerd ainda estava extremamente abatido. Ficara mais fundo na caverna, deitado sobre um monte de mato seco e sobre a pele do pai de Garns, que lhe emprestara. Garns ficara do seu lado o resto do dia, enquanto a mãe de Pukerd fora colher as ervas que sempre trazia consigo para o caso de uma emergência e as outras que Puupuki indicara. Ela já sabia bem onde encontrá-las, por sua experiência com o filho e antes dele com o marido. Sikerd já era mais velho quando ela ficara com ele. Sikerd sempre tivera um temperamento obscuro, nunca sendo muito próximo. Mesmo nas suas crises, mantinha-se sobre controle. Suava, suas pernas ficavam fracas, se contorcia as vezes, mas nunca gritava. Seus olhos se transformavam, como se fosse outra pessoa, nesses momentos de grande dor. Os outros membros do clã ficavam com medo disso. Mas sentiam ao mesmo tempo gratos a Sikerd por lutar contra o mal espírito que tentava impedir que a pedra de Gapugarn fosse entregue. E seu temperamento arredio inspirava uma certa reverência por parte dos outros. Já com Pukerd era diferente. Pukerd era irriquieto, andava para todos os lados, ignorava os avisos que tinha de que teria a dor. Gritava e gemia muito quando a dor vinha, e dava trabalho para os outros membros do clã e para os amigos. Estes não ligavam, pois o que Sikerd tinha de introspectivo, Pukerd tinha de brincalhão e de bem humorado. Principalmente Garns e Ciocick estavam com ele o tempo todo. Ninguém sabia ao certo como eles ainda não haviam sido apanhados por um urso ou por um leão. A única explicação era que fossem abençoados por Gapugarn, por isso os toleravam, embora trouxessem medo ao clã. Mas também traziam outras coisas. Identificavam até mesmo antes dos adultos locais onde haviam frutas, e principalmente o mel. Eram, ainda impúberes os melhores identificadores de mel do clã. Puupuki principalmente os protegia em função disso. São amigos do pássaro comedor de abelhas, dizia Puupuki. Isso dava a eles um status relativamente respeitável dentro do clã, mas somente para anular a antipatia que muitos sentiam por eles e suas andanças, e principalmente por Pukerd, por terem medo de suas quedas e do mal espírito contra o qual não lutava como seu pai.
Pukerd teve vontade de urinar e começou a sentir muitas dores novamente. Era o sinal de que a pedra sairia. Usou o utensílio que Puupuki havia dado a sua mãe. Gritou e caiu exausto e suando frio enquanto Garns olhava se a pedra havia saído. Viu-a em meio aos restos de urina e ao sangue que Pukerd urinara. Como das outra vezes, jogou água por cima da urina com sangue até que ela se entranhasse no chão arenoso da caverna, e cobriu o local com mais areia e algumas pedras. Alguns membros do clã vieram ver o que era. Torceram o nariz e voltaram para seus afazeres. Garns pegou o utensílio vazado, onde a pedra ficara contida em meio a um filtro de ervas trançadas e se levantou.
- Pukerd, agora descanse. Vou levar a pedra para Puupuki. Descanse e vamos nos encontrar à noite na grande fogueira para ouvir Puupuki. – Pukerd entregou a pele do pai de Garns e deitou-se direto na palha seca. Ainda sentia muita dor, mas estava principalmente cansado. Bebeu o resto da infusão que sobrara, e procurou dormir até que sua mãe chegasse com a nova infusão. Dormiu sem perceber. Os dias já estavam diminuindo, e os ventos frios já começavam a ventar. Ainda estava claro o dia, mas como estava na parte mais funda da caverna, a claridade não chegava tão bem nele.Dormiu um sono sem sonhos até sua mãe chegar. Ela já vinha com o remédio de Puupuki. Começou a tomá-lo da mesma forma que tomara o anterior. Aos poucos. Continuou deitado enquanto sua mãe lhe limpava com um pouco de água e um pedaço macio de pele de lebre. Ela tinha trago também as flores perfumadas com as quais se perfumava passou um pouco em Pukerd. Ele suava com o cheiro das plantas que ingerira, e a flor mascarou um pouco o cheiro. Não era um cheiro ruim, mas era associado ao ritual pelo qual passara. Embora aquilo não fosse nenhum dos tabus que impediam a participação nas atividades da comunidade, ainda que ele tivesse sangrado, mesmo assim não era bem visto, e o cheiro ajudava a criar uma situação de mal estar.
A noite, ele e sua mãe foram para perto da fogueira juntos. Os outros evitavam ficar perto deles. Garns queria ficar perto do amigo, mas tinha que ficar junto ao pai. Ciocick também o cumprimentara de longe, mas não pode ir para perto dele, pois ficara junto com sua família. Ao todo, uns cento e vinte homens, mulheres e crianças se aglomeravam em torno do anfiteatro natural que a encosta da montanha fornecia. A fogueira era forte o suficiente aquecer a todos, mesmo com o vento que já começava a esfriar com a noite. O ambiente fechado por árvores imensas ajudava também a manter o calor.
Puupuki ficava no centro parte média mais alta da platéia do anfiteatro, como sempre fazia nas noites de fogueira. Todos podiam lhe ver, mas sem enxergá-lo direito por causa da luz lateral da fogueira. Isso dava um ar sobrenatural às histórias de Puupuki, que sempre começava relembrando a vinda de Pugarn para a Gainun, a montanha sagrada onde moravam. Puupuki chegou amparado por Puugi e por Terer. Terer começou a tocar o tambor que era sinal para que todos fizessem silencio, e ao ritmo das batidas Puupuki começou a falar de forma ritimada.
- Quando o mundo estava cheio do mal causado pelos primeiros homens, Pugain, o senhor de todos os deuses, cansado da sua maldade resolveu abandoná-los, e deixou de segurar os ventos que traziam as águas, e essas vieram se avolumaram e criaram um grande lago onde os homens moravam, e eles sem ter para onde ir se afogaram. Mas Pugarn foi avisado antes por Gapugarn, o senhor dos pássaros, pois era um homem bom. Gapugarn mandou que Pugarn fosse embora da terra dos primeiros homens e viesse para o alto de uma montanha. Pugarn saiu de sua terra sozinho, trazendo consigo só a lança de pedra, o arco com as flexas e o colar de conchas – Enquanto falava, mostrava os objetos mágicos, que só eram vistos nessas ocasiões. Puupuki continuou a história.
Pugarn andou por muitos dias, enfrentou os leões da planície e foi visto como um guerreiro poderoso pelos homens da planície. Mas esses ficaram com inveja de Pugarn e tentaram matá-lo enquanto dormia para roubar suas armas. Mas Gapugarn lhe enviou um sonho para alertá-lo e ele acordou e fugiu antes que os homens da planície chegassem para lhe matar. Ele então seguiu contra o vento frio, em direção às montanhas, como havia lhe dito Gapugarn. Subindo a montanha, Pugarn sentia fome, pois não havia comida como no vale. Então comçou a seguir as pegadas de um animal que nunca tinha visto antes. Ele achava que era um grande alce, mas não sabia que era um urso, pois nunca havia visto um. Ele continuou subindo a montanha, e foi até a Caverna Sagrada do Anel, Onde o Urso Preto Gigante, havia aprisionado as últimas Gipurgans, filhas dos homens pássaros, que eram os seres que eram metade homens e metade pássaros, contra o qual o Urso Preto Gigante travava guerra a muitos anos, em busca das penas mágicas dos Gipurgans. Ele matara a todos, menos às quatro Gipurgans restantes que haviam se escondido dentro da caverna que tinha a entrada pequena demais para o Urso Preto Gigante entrar. Então Pugarn subiu em uma grande faia, e atirou a primeira flecha no Urso Preto Gigante. A flecha não penetrou em seu corpo, que era duro como uma rocha, pois o Urso Preto Gigante era filho da Montanha, e portanto, feito da pedra preta que não quebra. Mas ele viu Purgarn e se voltou contra ele. O Urso Preto Gigante começou a subir na árvore, e mesmo quando Pugarn tentava lhe enfiar a lança essa não entrava em seu corpo por esse ser muito duro. Pugarn então pegou seu arco e mirou nos olhos no Urso Preto Gigante, que era feito de fogo. As flechas de Pugarn penetraram nos olhos do Urso Preto Gigante e esse ficou cego, mas também ficou cego seu ódio por Pugarn. Procurando-o por seu cheiro, o Urso Preto Gigante perseguiu Pugarn por três dias seguidos, onde Pugarn não pode descansar. Pugarn chegou à beira de um alto precipício, do outro lado da montanha, onde as grandes águias fazem seus ninhos. O Urso Preto Gigante encurralou Pugarn no precipício. Mas esse valendo de sua astúcia, amarrou um corda longa que havia trançado com o couro dos leões que matara no vale e a amarrou em uma galho de árvore a beira do precipício. O Urso Preto Gigante veio então ao seu encalço procurando Pugarn pelo cheiro. Pugarn começou então a zombar do Urso Preto Gigante, e de como esse era mais fraco que Pugarn que o cegara facilmente. O Urso Preto Gigante que já odiava Pugarn por ter lhe deixado cego, ficou com mais ódio ainda e correu em direção à voz de Pugarn, achando que esse cometera um grande erro lhe indicando a sua posição. Mas Pugarn pulou no abismo segurando a corda e caiu na lateral do abismo, enquanto o Urso Preto Gigante que o seguira caiu pelo abismo. O Urso Preto Gigante caiu pelo tempo que um homem consegue segurar a respiração, e ao chegar ao chão se espatifou em um grande monte de pedras pretas que Pugarn usou para fazer a ponta de suas flechas. Pugarn voltou para a Carvena Sagrada do Anel e libertou as filhas dos Gipugarns, que eram metade mulheres e metade pássaros. Gapugarn então lhe apareceu e lhe ensinou como transformá-las em mulheres, confeccionando um anel com o focinho do urso preto, que era feito de uma pedra negra inquebrantável. Pugarn então colocava seu dedo em um dos orifícios do anel e a Gipugarn colocava sua pena. Elas então se transformavam em mulheres, e Pugarn fez isso quatro vezes, até que as quatro Gipugarns se transformassem em mulheres e as desposou. Pugarn criou um altar dentro da caverna e ofertou o anel feito com o focinho do urso para Gapugarn, e voltou para o outro lado da montanha, onde havia mais sol e mais animais de caça, e teve vários filhos e filhas com as Gipugarns que foram os avós, dos avós dos nossos avós. Pugarn então os ensinou a fazer o arco e as flechas de ponta de pedras. Ensinou a arte de fazer os potes de argila, e a construir as tendas. As Gipugarns lhe ensinaram sobre as plantas mágicas e as plantas de alimentação da montanha, e a como caçar os animais, mesmo no inverno. Então eles prosperaram e se tornaram os clãs dos homens das montanhas.
Hoje a montanha nos enviou uma das pedras pretas do corpo do Urso Preto Gigante, para que seja oferecida à Gapugarn novamente, para renovar nossa amizade com ele. – Puupuki mostrou a pequena pedra, embora ninguém a visse. – Ela será levada por nós para Gapugarn, em sua morada nas nuvens pelo fogo, e subirá com a fumaça e Gapugarn saberá que ainda somos seus amigos, e olhará por nós, nos mandará caça e frutos, e não deixará que o frio seja muito grande. Fará com que as mulheres tenham muitos filhos e segurará os maus espíritos que trazem as doenças. – Terminou de falar, e em um gesto ritual jogou a pequena pedra ao fogo. Puugi parou de tocar o tambor e Terer tocou então uma grande tropa feita com o chifre de um alce gigante e todos ficaram em silêncio. Então Puupuki começou a falar novamente.
- Em breve o tempo branco chegará novamente. E teremos que descer para o nosso acampamento abaixo das montanhas. Lá encontraremos novamente com os povos do vale, e trocaremos nossas peles, ervas e pedras, pelas suas comidas e pelos seus instrumentos. Mas é preciso que vocês se lembrem. Os que esquecem não retornam. Perdem o caminho de volta para a montanha. Esquecem quem são seus pais, como o povo do vale e não cumprem o ditado por Gapugarn para Pugarn e para nós, seus filhos. Não se esqueçam, lutem contra o esquecimento que as coisas dos povos do vale trazem para nós. Pois os que se esquecem são condenados a vagar pela terra sem nunca chegar a lugar nenhum.
Terer tocou a tropa novamente saiu com Puugi levando Puupuki com eles. O grupo se retirou, alguns para as suas cabanas e outros para a grande gruta que servia como habitação coletiva para os idosos e os órfãos como Pukerd. Alguns homens também dormiam lá, na expectativa de conseguir sexo com as mulheres mais velhas que, mesmo não podendo mais ter filhos, ainda serviam para desafogar suas necessidades. Mesmo alguns jovens, na época de calor também iam lá. Mas agora com o vento frio que começava a soprar à noite, quem podia ficava em suas cabanas, ou nas cabanas das suas famílias. Com a imposição de abstenção de sexo também decretada por Puupuki ficariam lá somente os que não tinham mesmo para onde ir. Em breve desceriam para os acampamentos de inverno à margem dos lagos, e todos iriam ficar em cabanas, sem separações ou distinções, todos se obrigariam por todos, e Pukerd e sua mãe dormiriam junto aos outros. Com sorte, dormiria na mesma cabana de Garns, ou de Ciocick. Enquanto saia encontrou Garns. Esse escapuliu um pouco dos pais e veio correndo em direção à Pukerd.
- Pukerd, o que você acha? – Pukerd ficou olhando Garns sem entender. – Já conversei com Ciocick. Hoje depois que cheguei em casa vi que nasceu o primeiro pelo em mim. Logo nascerá em você e em Ciocick também, e seremos homens. Então poderemos sair para caçar, e podemos ir do outro lado da montanha ver a Caverna Sagrada do Anel.
Pukerd acabara de expelir uma pedra, e sofrera medonhamente. Isso o deixara um pouco sem coragem para as aventuras nas quais entrava com os dois amigos. Ainda sentia dor, e estava extremamente cansado. Ficou mais triste em desapontar o amigo do que por sentir que não poderia aderir à viagem.
- Garns, tenho medo de ir e o mal espírito me pegar de novo e não ter Puupuki para tirar ele de mim. Esse outro lado da montanha é muito longe. Dizem que é mais longe que o acampamento de inverno, e a gente demora a mudança de uma lua inteira só para ir até o acampamento. Com vou fazer se ficar doente.
Garns fez uma cara contente, de quem já havia pensado antes sobre o assunto. – Não se preocupe, vamos aprender com Puupuki como tratar de você. Ele gosta de nós porque levamos mel para eles. Quando você estava doente vi uma colméia no alto de uma árvore. Não dá para ver a colméia, mas vi algumas abelhas no chão, e sei que ela está lá. Vamos lá amanhã e pegaremos o mel, o daremos a Puupuki e pediremos para ele nos ensinar a tratar de você. Nós aprenderemos e você não terá que se preocupar.
- Pukerd olhou para a mãe que o esperava um pouco mais à frente conversando com alguns homens do clã. Ela poderia se virar. Pukerd Sabia que ele era um estorvo para ela. Que ela não conseguira arrumar outro homem só para ela não só por estar mais velha, mas porque ele teria que ir junto. Sua mãe preferia ficar com ele. Ele sabia disso e isso doía quase tanto quanto a pedra. Mas era uma dor mais funda. Garns correu para junto de seus pais, e Pukerd foi para junto de sua mãe. Ainda estava muito cansado. Mesmo tendo dormido a maior parte do dia. E ele não havia levado o remédio para a fogueira.Teria que tomá-lo ainda antes de dormir. E ele tinha um gosto muito amargo.
* * *
Pukerd acordou se sentindo bem melhor. Ainda restava um pouco de dor, e sua urina ainda estava um pouco vermelha. Sobrara um pouco do remédio na cabaça que usava para carregar água, e tomou-o até o fim. O gosto amargo com o estômago vazio fez com que sua barriga se revirasse. Precisava comer algo. Saindo da caverna encontrou Garns que estava com o mesmo ar efusivo da noite anterior. Ele trouxera um pedaço de carne da fogueira de sua cabana para Pukerd.
- Não sei se posso. Puupuki fala para evitar carne um pouco depois das pedras virem.
- Puupuki fala isso para quem come muita carne, e você não come. Coma esse pedaço. – Pukerd estava com fome e comeu. Saíram em direção à cabana de Ciocick. Encontraram-no na frente da cabana, aprendendo com um tio a raspar o couro de uma lebre que servira de jantar para a família. O tio fechou a cara quando viu os dois amigos chegarem e a atenção de Ciocick para a atividade tão necessária desaparecer. O tio deu um tapa em Ciocick e o mandou prestar atenção e que ele só sairia dali depois que a pele já tivesse sido raspada.
Garns se ofereceu para ajudarem. Haviam outras peles que precisavam ser raspadas, e essa tarefa cabia ao tio de Ciocick na família. Esse viu a ajuda como uma chance de poder terminar mais rápido a tarefa e fazer o que importava, que era procurar mais comida para si, e não depender do que a família lhe daria. Não era muito mais velho que Ciocick, e se parecia muito com ele. Os mesmos olhos estreitos e marrons, e o nariz curvado, que dava a ambos a feição de uma águia.
- Vocês já sabem raspar o couro?
- Sim, respondeu Garns. – Purked ficou em silencia e abaixou a cabeça envergonhado. O tio de Ciocick olhou para suas roupas palha, com cordas também de palha, em detrimento das roupas dos colegas de peles e couros trabalhados. Garns tinha até uma presilha de osso de veado trabalhado com marcas triangulares. O tio de Ciocick conhecera o pai de Pukerd. Ele dera uma vez uma vez uma noz amassada com mel para um grupo de crianças, da qual o tio de Ciocick fazia parte. Era um homem fechado, mas não era pobre. Tinha suas roupas e equipamentos de couro. Tinha até uma pequena faca de sílex, com cabo de osso. Tocado pela amizade para com os homens que emanava de Gapugarn, e com medo de que um dia um filho seu ficasse reduzido àquela situação, mandou os três se sentarem. Ensinou-os a raspar o couro e a como cortá-lo para fazer roupas e cordas. Disse que ensinaria a curtir o couro se eles trouxessem as plantas necessárias e um pouco de comida para ele ainda naquele dia. Ainda não estava a pleno sol, e saíram rápido para a floresta atrás de comida para aprender a elaborar os apetrechos de couro. Pukerd estava reluzente. Sua mãe não sabia curtir nem preparar couro, que era função de homens. Embora Garns já soubesse bem os rudimentos, pensou que a atividade com os amigos seria uma boa atividade. Na mata precisaram decidir.
- O que faremos primeiro, pegar o mel ou a comida e as ervas para o tio de Ciocick.
- Acho que primeiro pegaremos a comida e as ervas Garns, pois ele está esperando, e a comida não está tão fácil mais de achar assim.
- Eu sei onde há as duas coisas. Vi romãs que estavam verdes na lua passada debaixo da rocha por onde passa o rio. Lá não tem nenhuma outra comida, então ninguém vai lá. Provavelmente estão maduras agora. Ai damos as frutas para meu tio e as cascas para curtir o couro. Ai depois dá tempo de pegarmos o mel e entregar para Puupuki.
Foram para a parte mais baixa do pequeno córrego que corria montanha a baixo entre pedras pontudas. Como Ciocick havia falado, logo abaixo da pedra indicada por Ciocick estava uma árvore de romã com cinco grandes romãs maduras. Pegaram as romãs e colocaram no pequeno cesto de palha que Ciocick trazia junto de si, e uma grande quantidade de cascas da árvore amarradas em folhas largas que encontraram e que serviam de envelope natural. Depois foram em direção à colméia, que também era no mesmo córrego, um pouco mais acima. Pegaram argila e encheram o corpo com ela. Colocaram folhas coladas na lama no corpo inteiro e Garns subiu na árvore com uma pequena faca de pedra enquanto os outros dois faziam fogo e fumaça com folhas verdes misturadas com folhas secas. Garns cortou um grande naco do mel e jogou dentro de um embrulho feito com as mesmas folhas com as quais embrulhara as cascas do romanzeiro. E desceu rápido. As abelhas os perseguiram e tomaram algumas picadas cada um. Mas a cobertura de folhas e barro funcionou bem, e não tiveram nenhum grande problema. Foram primeiro para a pequena gruta onde Puupuki morava, pois se aparecessem com mel perto do tio de Ciocick sabia que esse o tomaria. Esconderam as cascas e as romãs fora da caverna, com medo de Puupuki agir da mesma forma.
- Puupuki, trouxemos mel. – Puupuki estava sentado perto da fogueira envolvido em um mundo próprio, meio dormindo e meio acordado. Ao ouvir sobre o presente despertou de vez e olhou para os meninos.
- Garns, Pukerd, Ciocick, trouxeram mel?
- Sim Puupuki. Trouxemos mel. Você quer.
- Sim.
Deram a folha com o favo de mel para Puupuki. Repararam que as mãos de Puupuki além de muito magras estavam começando a tremer um pouco. Puupuki cheirou o mel.
- Vocês usaram folhas verdes de faia. Usem da erva da erva cheirosa da próxima vez, as abelhas ficam atordoadas e não vão ir atrás de vocês. Trouxeram também alguma fruta? – Os meninos não sabiam se conseguiriam mentir para Puupuki. Este percebeu na hora e Continuou – Sei que vocês também pegaram frutas. Só não sei para quem é. Se é para vocês ou para outra pessoa. – Puupuki tinha poderes e eles temeram mentir para eles. Pukerd explicou.
- Puupuki, trouxemos romãs para o tio de Ciocick, pois ele disse que se lhe dessesmos comida ele nos ensinaria a curtir o couro e a trançar cordas de couro e a fazer roupas. Então pegamos também cascas de romãzeiro e vamos dar para ele para que ele nos ensine.
Puupuki pensou um pouco e trouxe algumas raízes que ele já se fartara de comer e trocou pelas romãs. Ele não poderia comer muitas romãs, embora pretendesse comê-las mesmo assim, mas suas cascas seriam bons remédios, juntos com o mel, para as doenças que começariam a atacar agora com o início dos ventos. Provavelmente um deles mesmo as utilizaria. Depois pensou melhor e deixou uma das romãs com os meninos, pois eles já estavam levando as cascas de romazeiro o tio de Ciocick poderia querer também romãs. Entregou e esperava que os meninos fossem embora mas não foram.
- Porque vocês ainda estão esperando.
- Puupuki, quermos que você nos ensine a tratar de Pukerd. Em breve seremos homens e vamos começar a caçar longe. E se Pukerd cair com dores nós poderemos tratar dele onde estivermos. – Embora Puupuki não esperasse o pedido também não se espantou. Quando começavam a se tornar homens os meninos começavam a escolher caminhos específicos, e aquele parecia ser o caminho que Garns ia querer para si.
- Sim, ensino. Vocês venham para cá todos os dias, um pouco antes do sol se esconder. Os três querem aprender? Você também Pukerd?
- Sim, pois se um deles se machucar eu também vou poder ajudá-lo.
- Muito bem, então venham amanhã antes do sol nascer – e quando os meninos iam saindo - Garns, Pukerd, Ciocick, peçam também para o tio de Ciocick ensinar vocês a fazer arcos. Digam que darão carne a ele se ele os ensinar. Ele faz bons arcos.
* * *
Pukerd, Garns e Ciocick iam aprendendo aos poucos as duas artes. No fim da manhã, a arte de preparar o couro. No fim da tarde aprendiam as técnicas de cura com Puupuki. Era uma rotina pesada, pois entre as duas aulas saiam para procurar alimentos, em uma floresta cada vez mais fria e com menos frutas. Mesmo os animais iam aos poucos ficando mais raros. Os meninos sabiam como contornar esse problema. Procuravam pequenos animais, larvas, sementes, raizes e frutas onde os outros não iam por não oferecerem grandes presas ou colheitas. Os homens com melhores condições se concentravam na caça, cada vez mais distantes de animais para poderem comer suas carnes, e principalmente, preparar seus couros, e os mais valiosos eram os de animais de pelos longos, para poderem ter o que comercializar com os povos da planície, na descida da montanha que não tardaria a chegar. Algumas carnes já iam sendo preparadas para a viagem. Na verdade, a carne era um produto que aos poucos ia começando a se perder, e esta era a única época do ano em que havia uma certa abundância de carne no clã. Puupuki era um dos que mais recebia carnes, apesar de não comê-las. Dava parte delas para seus três mais novos alunos que lhe davam em troca frutas, plantas medicinais e o mel e favos das abelhas. Mesmo os três nunca haviam comido tanto carne quanto agora, principalmente Pukerd, que ficava geralmente com as frutas, sementes e raízes que a mãe ou ele colhia, e os restos das carnes e ossos, que eram cozidas nas grandes panelas de barro para alimentar o coletivo mais pobre do clã.
Na manhã procuravam as frutas, as raízes, as sementes e o mel, que iam tirando aos poucos da colméia maior já descoberta e de outras pequenas colméias, de abelhas diferentes, menos eficientes, mas com produções mais fáceis de serem encontradas. Era interessante essas abelhas que faziam pequenas colméias, nos trocos de árvores ou mesmo no chão, abaixo de pedras ou raízes. Essa era a época em que elas tinham mas mel, mas geralmente, muito pouco. Mal dava para uma pessoa. Mas esse pouquinho de mel, associado a mais um pouco de sementes temporãs, ou raízes ainda pequenas, e frutas também dadas fora de estação, aos poucos iam criando uma junção de elementos que possibilitavam que os três se alimentassem. Ciocick e Garns contavam com os restos de seus familiares, que tinham tendas próprias. Pukerd também recebia algo de sua mãe, e do alimento geral da tribo, mas era menos. Gostavam principalmente das larvas, que não precisavam ser cozidas. Poucas eram o suficiente para lhe darem mais ânimo. As vezes achava uma quantidade grande, mas mortas não poderiam ser comidas. Levava com cuidado, escondidas em folhas ainda vivas para a mãe, e as dava em separado do resto dos membros do clã.
Mas agora, que já sabiam melhor como funcionava a floresta, e que recebiam alimentação extra de Puupuki, podiam se concentrar mais em procurar o que era necessário. Puupuki ia aos poucos lhes mostrando as ervas das quais precisava. Eles já as conheciam, e as encontravam com certa facilidade. O mais difícil era realmente o mel, pois implicava necessariamente em tomar algumas picadas. Os olhos brilhantes e a febre posterior era indício de que tinham mel, e isso também lhes trazia problemas com outros membros do clã que lhes ameaçavam ou mesmo batiam para que lhes dessem o mel. Mas iam aprendendo aos poucos. As aulas com Puupuki se resumiam, no momento, a dois aspectos principais. A elaboração de remédios, e do entendimentos de algumas dores, entre elas a de Pukerd, e as outras mais comuns, como as de cortes e pancadas, ou as de ingestão de alimentos envenados e dores na barriga e suas febres. Puupuki lhes ensinava também sobre o hábito manter suas mãos sem restos de comida ou terra, e de não beber todo tipo de água.
A elaboração de remédios consistia em macerar algumas ervas com água, ou fervê-las. Algumas específicas usavam o mel ou uma parte verde das colméias que segundo Puupuki era um dos melhores remédios para a falta de ar ou dores ao respirar. Ensinava também que alguns alimentos não são bons para algumas pessoas. Por exemplo, Pukerd não deveria comer tanto os cozidos de ossos. Mas sabia que era difícil, pois era o que geralmente tinha. Outros, como ele, não podiam comer muitas carnes, principalmente as fortes, como as de urso.
A outra ação que Puupuki ensina aos três era a transmissão do que ele chamava de força da vida. Ele ensinava aos três como colocar a força da vida na palma da mão e colocá-la sobre a pessoa doente ou fraca, e transmitir a força da vida para ela. Essa força não se perdia em quem dava, se viesse do céu e não da própria pessoa. Essas forças eram de diferentes cores, e cada uma delas era voltada para um tipo de dor. As de Pukerd eram forças da vida verde e roxa. As que Puupuki precisava eram as azuis. As crianças treinavam a princípio nele e em Pukerd, ou mesmo nos outros dois. E depois de um curto tempo, em alguns outros que iam lá para procurar ajuda de Puupuki, que agora não contava tanto com seus ajudantes costumeiros, que se ocupavam de procurar couros, ou raízes e pedras para trocar com os habitantes da planície.
Mas isso era no fim da tarde. Antes disso, iam no tio de Ciocick, que lhes ensinava a raspar e depois, a curtir o couro. Os três também ficavam responsáveis por trazer material para curtir o couro. Isso ia dando ao tio de Ciocick uma vantagem muito grande em relação aos outros membros da tribo, pois o que os três iam fazendo ia sendo convertido em couro para eles. Em pouco tempo, Garns parou de ir a essas tarefas, e ficou ajudando seu pai a fazer esse serviço. Mas com mesmo só com Ciocick e Pukerd, a produção era alta. Tanta que em pouco tempo ele já tinha mais que o que poderia carregar. Parou então de trabalhar e deu um pequeno pedaço de corda de couro a Pukerd. Este esperava mais, o tio de Ciocick se resumiu a ignorá-los após parar de preparar suas peles. Trocariam algumas com algumas das mulheres sem homens certos, como a mãe de Pukerd, em troca de sexo, e talvez até pudesse arranjar uma das mulheres mais novas para ele e construir uma cabana própria. Mas isso só seria possível após retornar do acampamento na planície. Procuraria alguns itens estimados, como ferramentas e adornos deles para que pudesse melhorar seu status e talvez conseguisse alguma das mulheres dos outros clãs das montanhas para ele. Se conseguisse encontrar algumas pedras brilhantes, poderia até tentar trocar as peles e as pedras por uma das boas mulheres do clã da águia.
Eram quatro os clãs principais dos povos da montanha, filhos de cada uma das quatro Gipugarns. O da Águia, com pessoas mais altas e de nariz curvo, como os de Ciocick, o da Andorinha, os menores deles, com corpo pequeno e magro, mas os melhores caçadores, e os mais temidos, praticamente invisíveis e silenciosos na floresta. Os das codornas, de tamanho médio, e os grande edificadores, pois dominavam a arte de construção de cabanas melhor que todos, e praticamente não viviam em grutas, e só caçavam com armadilhas e modificavam a montanha para terem sempre água. E o deles, o clã dos Tordos, que dominavam a arte do canto e sabiam coletar as pedras coloridas de dentro da terra. Cada uma dos clãs habitava um lado da montanha e viviam em harmonia entre si. Perfaziam um total de umas oitocentas pessoas, em algumas épocas de fome, menos, em épocas de fartura mais. A montanha era o suficiente para eles, que apesar de compartilharem a mesma língua, pouco se comunicavam, a não ser na época da descida à planície, quando acampavam juntos. Mesmo nesse momento, também viviam em harmonia, pois não produzia muitas coisas semelhantes, e trocavam tudo que tinham, e que não era muito, logo, com os habitantes da planície, e depois esperavam os ventos diminuírem e iam voltando aos poucos, a medida que a pior parte do frio passava, para os acampamentos intermediários, para procurarem comida.
Como eram o único povo que conseguia viver nas montanhas, e não tivessem nenhuma grande riqueza, também não eram molestados por outros povos, que raramente subiam a montanha atrás de algo, geralmente de maneira pacífica, buscando trocas que eram altamente disputadas pelos membros dos clãs. Mas isso era raro. De forma geral, passavam somente parte da estação do gelo na planície, e essa era a única época que viam alguém que não do seu clã.
Nessas épocas também se realizavam as trocas de mulheres entre os membros dos clãs. Geralmente pais trocavam filhas disputadas em um tipo de leilão cerimonial, nas festas onde as meninas, enfeitadas dançavam juntas, e os jovens as observavam cobiçosos. Depois procediam as negociações, geralmente feita por um representante mais velho. Muitas vezes mais de uma pessoa ajudava o pretendente a dar o lance necessário, e estabelecia assim uma obrigação de retribuição de ajuda no ano seguinte para que o que o ajudou pudesse conseguir a comprar uma esposa.
Os clãs da montanha só casavam entre si, nunca com os povos da planície, sob a punição de ser expulso. Diferentes desses, que não possuíam o conhecimento da paternidade, os clãs da montanha eram muito ciosos de suas descendências, e temiam que as mulheres da planície, que não conseguiam entender o conceito da paternidade, também não conseguissem entender o conceito de fidelidade dele decorrente, o que geralmente acontecia. O que geralmente acontecia também é que por sua liberalidade sexual, muitos dos jovens que desciam à planície não retornavam à montanha, deslumbrados com as farturas da planície e com os costumes de seus povos. Mas era uma grande ilusão. Os que ficavam geralmente eram depois hostilizados e discriminados, e pouco aproveitavam das farturas depois que seus bens de troca acabavam.
Porém, apesar disso, dos que ficavam poucos voltavam. Saiam a errar pelo mundo, geralmente não duravam muito tempo e eram mortos. Alguns ficavam nos sopés das montanhas, e lá se estabeleciam, nem povos da montanha, nem da planície, sem clãs, alguns com famílias, outros se tornavam criminosos. Mas eram poucos. A maior parte dos que ficava geralmente morriam rapidamente, ou sumiam em direção ao fim do rio, buscando algo ainda mais abaixo. Outros povos de outras planícies. Alguns diziam que ao fim do rio chegava em um grande lago, e em povos que realizavam proezas impossíveis, e que erguiam montanhas só com a força do olhar, ou que pudessem voar, ou se transformavam em peixes. Mas nunca nenhum deles vira nenhum membro desses povos, ou mesmo conhecessem alguém que os tivesse visto. O que sabiam é que para baixo no rio era a terra da qual Pugarn viera, e que lá o grande lago havia destruído os primeiros homens por sua maldade. Não queriam nada dessa terra, pois se o próprio Pugarn a havia abandonado por ordem divina, não teriam nada que fazer lá.
Iriam somente à planície para seus locais de acampamentos, lá trocariam mercadorias com os povos da planícies, e de lá voltariam, assim que o tempo branco ficasse mais fraco. Lá trocariam informações com os outros membros dos clãs da montanha, trocariam mulheres, perderiam alguns jovens, ficariam nas cabanas, quando as provisões que levassem terminasse, trocariam seus bens por comida, e sobreviveriam a mais um tempo branco, e depois voltariam para uma montanha cheia de vida e segurança. Mas agora todos se preparavam para descer a montanha.
O pai de Garns já conseguira o que queria. Caçara três grandes ursos pretos. A pele de um grande urso era o artigo mais procurado de todos. Só uma já seria o suficiente para que toda uma família fosse alimentada no tempo branco. As outras duas seriam para aquisição de uma esposa para o irmão mais velho de Garns, um pouco mais velho que esse. As peles de ursos eram raros porque era um grande risco caçá-los, e só caçadores experientes e extremamente fortes e corajosos como o pai de Garns conseguia ou tentava caçá-los. Também eram raras as peles do leões da montanha, mas não haviam muitos na região do clã. Eram mais comuns na região do clã da Andorinha, e um dos seus principais artigos de troca. As outras peles eram de menor valor, mas também faziam uma boa venda, principalmente quando conseguiam encontrar animais grandes, mas esses eram raros, e tinham de descer demais a montanha para achá-los. Geralmente um conjunto de lebres era o suficiente para passar o tempo branco.
Outros como Puupuki, e os poucos que conheciam as principais artes de confecção de remédios especiais também eram bem recompensados, principalmente das ervas só encontradas nas montanhas. Mas esses eram muito poucos. No clã da Trepadeira dos Muros Além de Puupuki só Puugi e Tarer sabiam fazer esses remédios, e já estavam com suas bolsas cheias dele para trocarem com os povos da planície.
Quando terminavam as caças necessárias, a maior parte parava de preparar os couros e ia cuidar de si ou de preparar comidas para a viagem, reformar as roupas, ou os mais previdentes, que já estivessem com isso resolvido, iam procurar pedras coloridas ou conchas dos caracóis para trocar com o povo da planície. Alguns conseguiam sobreviver só com elas, mas era um risco, pois diferentes dos outros produtos, geralmente com valores que não mudavam muito, as pedras podiam ou valer muito ou pouco, dependendo da época. De maneira geral, os povos da planície as desejavam, mas não estavam dispostos a pagar muito por elas, a não ser em épocas de grande fartura para eles. Então se davam ao direito de trocas mais liberais pelas melhores pedras. Mas era sempre algo inseguro.
Mesmo os mais novos também tinham alguns trunfos. Não arriscavam a trocar com os mais velhos, pois poderiam ser simplesmente roubados, mas havia sempre um mercado também das crianças. Pequenas pedras, ou sementes coloridas, uma pena de uma ave rara na planície geralmente rendia alguma comida, ou algum pequeno objeto ou ferramenta usada. Garns, no ano anterior trocara uma pequena pedra azul por uma ponta de sílex que usava desde então presa em um cabo de madeira com uma pequena corda de couro. Era um utensilho muito útil para ele, e um dos elementos que lhe dava grande prestigio entre os jovens do clã. Com a experiência veio a natural ganância. Os três já conscientes da experiência procuravam elementos para negociar. Dividiram algumas sementes coloridas que haviam encontrado antes, de pouca valia, mas que poderiam ser trocadas por alguma comida extra à da tribo ou de suas famílias enquanto estivessem perambulando. Garns ganhara três pedras pequenas, sem valor para seu pai que não trocaria aquilo com outros adultos, e Ciocick roubara uma das peles de rato da montanha de seu tio. Era pequena, mas poderia servir para confeccionar uma pequena bolsa. Pukerd que só tinha sua parte nas sementes, que mesmo assim guardava com extrema cautela, pois se descoberto com os pequenos bens, seria logo deles despojado por alguém mais velho. Procurara sem os outros enquanto era mais a noite, mas logo sua mãe o proibiu de sair da caverna. Embora a maioria já estivesse hibernando haviam ainda ursos, que estavam mais famintos antes do tempo branco, e ele deveria ficar junto aos outros membros do clã. Os ursos não se aventuravam a entrar dentro do agrupamento, pois já sabiam que seriam presas fáceis. Então se resumiam a caçar silenciosos quando perto do agrupamento, animais, ou mesmo os homens, mas principalmente crianças e idosos que estivessem sozinhos, mas isso era raro. Geralmente só os lobos, em matilha, se propunham a enfrentar os homens que se encontrassem também em bando. Mas mesmo os lobos ficavam mais abaixo na montanha, e pouco se encontravam com os povos da montanha. E como sua pele não era valiosa, não eram caçados.
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O clima ia ficando cada vez mais frio, até que os primeiros flocos do tempo branco apareceram. Puupuki então chamou a todos para se reunirem no anfiteatro natural da montanha. A noite estava extremamente fria. De forma geral, a grande maioria já estava preparada para a viagem. As roupas de frio já estavam prontas. Os de maior status vestiam seus casacos de pele de urso. Os mais pobres, seus casacos amarrados de palha, que esquentava bem, mas juntava pulgas e se desfaziam com o tempo. Os bons duravam pelo menos por todo tempo branco. Mas a maior parte continha as duas coisas. Faixas e pedaços externos de couros simples e costurados, preenchidos por palha ou com penas. As crianças geralmente é que tinham mais roupas de palha, mas mesmo elas possuíam, na maior parte, alguns itens em couro preenchido com palha para proteger seu peito e pés.
Pukerd possuía um casaco grosso de palha trançada com ervas aromáticas que diminuíam os carrapatos, amarrados com cordas de material também vegetal. Seus sapatos eram também de palha trançada. Sua mãe sabia fazer bem os sapatos e era uma de suas principais habilidades dentro da tribo. Principalmente nessa época. Ela usava uma camada dupla de palha na sola dos pés de forma que ficavam bem isolados do frio. Ela mesma possuía sapatos de couro, feitas com presentes de pedaços de couro dos homens, também recheados com palha para servir de isolante. Tinha juntado parte de couros para fazer uma parte do casaco de Pukerd de couro, mas o uso para remendar um rasgo em seu próprio casaco. Ginagi só tinha Pukerd de filho. Tinha tido mais um do pai de Pukerd, mas ele morrera na última época da fome que assolara a montanha. Ela não conseguia mais ter filhos, apesar de ser ainda relativamente nova. Mantinha os cabelos negros, e os seios fartos, o que a fazia ser objeto de desejo de alguns dos homens do clã, mas ninguém a queria desposá-la, pois além de não poder ter filhos, tinha Pukerd. Seria melhor tentar uma mulher na época da descida à planície. Ela não era a única na mesma situação no clã, e ficava junto com os outros idosos sem familiares, com os órfãos, e com as viúvas. A ausência de um homem adulto que possuísse laços sagrados diminuía a chance de qualquer um. Apesar dos outros membros do clã darem as partes rejeitadas de suas caças, e dos próprios membros do grupo da caverna também caçarem e colherem, nos momentos de dificuldade, onde todos ficavam mais egoístas, a dificuldade era maior para os mais pobres. Ginagi esperava ansiosa para o seu filho se tornasse um adulto pleno, e pudesse sustentá-la. Por isso defendia-o de todos os perigos, como seu bem mais precioso, o que na verdade era. Pukerd era a chance de Ginagi de sobreviver quando perdesse a força e seu cabelo branqueasse. Alguns órfãos eram da mesma forma adotados por outros idosos sem filhos com a mesma intenção. Era um investimento, depois retribuído com maior ou menor boa vontade, mas geralmente retribuído, principalmente nos casos onde havia realmente uma ação de proteção da criança por uma pessoa mais velha, geralmente uma mulher. Como Ginagi era relativamente desejável, e Pukerd inteligente, alguns homens mais velhos já haviam pensado em casar-se com ela, mas como Pukerd tinha as pedras ficavam receosos. Poderia morrer jovem se contorcendo em dores como o pai, e não restituírem o investimento, além do medo dos espíritos envolvidos no processo.
Pukerd, embora sempre sentisse essas coisas só agora começava ter alguma compreensão sobre esse processo. Observando alguns dos poucos mais velhos que ele, também órfãos da caverna, percebia o que o esperava. E sabia que dependeria de si quando pudesse caçar. Nunca caçara nada grande, nem ouvira as histórias, a não ser em companhia de Garns, dos membros da família desse. Mas era raro freqüentar as casas dos amigos. Não era um costume. A cabana de cada família era, de maneira geral fechada aos membros de fora. Quando escutara a história foi fora do ambiente familiar, em uma coleta na floresta com um dos tios mais novos de Garns se gabando. Mas isso lhe dera alguns elementos para imaginar uma caçada. Seu pai era um bom caçador, segundo as histórias de sua mãe. Sempre trazia comida e não lhes faltava carne em casa, mesmo em épocas de fome. Não se preocupava em caçar ursos, mas pequenos animais, pois era mais simples e os mantinha alimentados. Sua mãe tinha uma vida boa. Depois de sua morte, veio o tempo do sofrimento. A cabana da família de seu pai foi se desfazendo pelas mudanças familiares, até que tudo se acabou e eles foram para a caverna coletiva. Seu irmão logo morreu, na época da fome, e ele por ser menor, e comer menos, sobrevivera. Depois, foi aprendendo a se virar, e sendo sempre protegido pela mãe que tentava se virar do jeito que podia. Eram pobres, mas não estavam em situação de fome, como alguns da caverna, o que significava que em breve morreriam.
Pukerd arrumou-se nas suas roupas de frio refeitas para ficar exposto à noite fora da caverna. Eram roupas de pobre, mas bem feitas, pela habilidade da mãe, e ele estava aquecido. A roupa pinicava muito, mas com o tempo iria se desfazendo e o incomodo diminuiria. Provavelmente ao fim da viagem para a planície já estaria boa. Colocou as botas de palha, estavam confortáveis. Foi em direção à mãe que o observava e dando a ela a mão, saíram em direção à grande fogueira.
O vento era muito frio agora. Todos estavam agasalhados. À proximidade da fogueira alguns retiravam casacos, mas logo os colocavam de volta quando o vento frio vencia o calor que vinha do fogo. Alguns dos mais fracos, velhos e crianças novas sem pais, já começavam a tossir. Provavelmente não chegariam à planície. A falta de comida os impediria. A comida coletiva era pouca. E mesmo que tivesse sido um bom ano, e a caça fosse abundante, a pouca comida que levavam era insuficiente para alimentá-los adequadamente pela viagem, então, o que contaria era a comida que tinham armazenadas em gordura em seus próprios corpos.
O som do tambor de Tarer indicava que era para todos ficarem em silêncio para que Puupuki falasse. Este logo apareceu. Estava com a aparência melhor do que da última vez que falara na grande fogueira. Sua voz também estava mais animada e mais alta.
- O tempo branco chegou. Ele agora vai cobrir toda montanha, e os animais e plantas nos deixarão para voltarem quando os ventos partirem. Gapugarn nos deu boas caçadas e um bosque cheio de frutas e raízes e nos encontramos em fartura. Então, peço a vocês que espalhem essa fartura entre os membros do clã. Quem tiver mais do que possa carregar deve dar o que não conseguir carregar para os que não tem nada, para que eles possam ter o que trocar na planície, e conseguir sobreviver. O mesmo serve para a comida. Quem tiver mais comida guardada do que possa comer antes dela estragar, dê um pouco para quem não tiver mais comida durante a viagem. Não espere a comida estragar. Dê antes. A lua vai estar cheia daqui a três noites, então, nós partiremos. Arrumem suas coisas. Se ocupem disso agora, e parem de procurar bens para trocar na planície. Preparem as roupas, as tendas e o que mais for necessário para o acampamento na planície. Selem suas cabanas aqui para que não venham animais para cá enquanto estamos fora. E preparem a oferenda a Gapugarn e a Pugarn que ofereceremos daqui a três noites, antes de partirmos. Façam-na de coração puro. Gapugarn e Pugarn não precisam de nossas coisas, mas só da alegria que provém dela.
Puupuki saiu ao som dos tambores de Tarer. Não queria ficar no frio. Ninguém queria. Voltaram rapidamente para suas cabanas ou para a caverna. Ginagi recebeu dois pedidos de calçados. Iria receber alimento para isso. Castanhas. Com a carne seca na fogueira que conseguira juntar, teria alimento para uma semana. Fora o alimento coletivo. E depois disso contaria com o alimento que começaria a apodrecer dos mais abastados. Era sempre assim. Isso duraria mais uma semana. Depois, já na parte mais baixa da montanha, teriam que comer o que aparecesse, principalmente lobos. Provavelmente haveriam muitos deles, pois haviam muitos animais de caça naquele ano, e eles deveriam estar migrando para a parte mais baixa da montanha, dando comida o suficiente para os lobos, que estariam gordos. Os lobos tendiam a persegui-los, e sempre levavam alguns dos velhos, ou das crianças que se afastavam do grupo. No acampamento na montanha não se aproximavam. Era alto para eles e já sabiam, por experiência que não era um local seguro. Mas os lobos do pé da montanha não se lembravam deles. A memória ia diminuindo a medida que desciam a montanha, tanto nos homens quanto nos lobos. Então os lobos os atacavam, e eles conseguiam pegar alguns. Dois lobos era o suficiente para alimentar o clã inteiro. Não era fartura, mas todos conseguiam um pedaço de carne. Como eram atacados por mais, geralmente não passavam fome na última etapa da viagem. Isso fora a caça extra que encontravam.
Ginagi ao chegar à caverna começou a trançar parte da palha que lhes servia de cama, e ficou nisso por um bom tempo antes do cansaço fazê-la dormir. Colocou as duas solas já prontas e recheadas debaixo do próprio corpo. Ela e Pukerd dormiram com as roupas com as quais enfrentariam a viagem também. Era arriscado demais deixar roupas prontas soltas. Apesar de não haver muitos furtos no clã, algumas formas de se apropriar das coisas alheias eram toleradas. Então mantiveram-se presos aos seus pertences. Ginagi dormiu abraçada à Pukerd, um sono sem sonhos.
* * *
Pukerd acordou com o som dos preparativos para deixarem a caverna. Tivera sonhos extranhos durante a noite. Se viu com um arco com corda de couro, e com uma pele de lince sobre seus ombros. Os linces eram extremamente difíceis de se caçar. E sua pele, apesar de ser muito apreciada, principalmente pelas mulheres, não era tão boa quanto a dos ursos. Mesmo a pele das lebres, que era mais fina, era mais procurada, por ser mais fácil de preparar. Na noite anterior, quando retornaram à fogueira para que Puupuki, novamente com expressão abalada, viesse fazer os últimos rituais de preparação para que pudessem começar a viagem, oferecera uma imagem de pássaro que ele mesmo confeccionara com a cera de abelha que guardava quando mascava o favo de mel misturado com uma perfumada resina que encontrara nos últimos dias em uma árvore próxima da colméia que já haviam devorado por completo. Dormira novamente abraçado com a mãe, olhando para o disco prateado da lua, que passava por um pequeno intervalo de tempo em frente à abertura da caverna. Era um espetáculo que ele não podia deixar de admirar. Muitas vezes já havia sido surpreendido pela mãe observando a lua em sua lenta marcha noturna pelo céu em direção ao longínquo poente. Sempre era repreendido por isso, pois era uma ação mal vista pelos membros do clã. Tinham um temor reverencial pela lua, e pela noite. E o fato bastante objetivo de que ficar sozinho durante a noite, fora da caverna e sem atenção para o ambiente ao seu redor, era um grande perigo, principalmente nas noites de lua cheia, onde, apesar de ser raro, já haviam casos de animais, principalmente lobos e ursos, atacarem dentro do próprio acampamento. Mas o medo maior mesmo era outro. Era o medo de que o observador encontrasse algo nessa observação. Algo que lhe abrisse as portas para a entrada de um mal espírito, que poderia trazer malefícios para todo o clã. Pukerd, de certa forma já tinha essas portas abertas por trazer as pedras. Ficar observando a lua era só mais uma confirmação do perigo que representava para a tribo.