Nos domínios da Morte-em-Vida: Viagem por Kishinev (Cap. XIV)
“Chegamos”, anunciou o taxista de rosto indistinto, estacionando o carro. Paguei-lhe e caminhei lentamente em direção ao pequeno prédio quadrado de aparência decrépita sobre cuja entrada brilhava o letreiro de néon – “BEZNADYOGA”. “‘Desesperança’”, pensei. “De fato, estou para transpor os portões do Inferno; quem dera Virgílio me acompanhasse.”
A atmosfera de esqualidez era ainda mais proeminente no interior, como bem pude imaginar – era como se aquele prédio morresse de dentro para fora. Mesas e cadeiras de plástico e metal espalhavam-se ao redor em desordem, sem qualquer planejamento prévio, e as paredes, cobertas de cartazes obscenos, eram pintadas num tom horrendo de cor-de-rosa que começava a despregar-se em plaquetas de tinta. No centro da sala, uma pálida mulher se esfregava sem qualquer ânimo a um poste enferrujado, assistida por um moço calvo de bigode que, fortemente embriagado, não cessava de gritar-lhe impropérios.
Contra a minha vontade, sentei-me quase ao lado do rapaz para que pudesse ver a moça. Era bonita; em verdade, demasiado bonita para estar num lugar como aquele. Sua beleza triste, que quase vinha a lembrar-me de Nelly, destoava daquele lugar tão repelente – os cabelos negros eram curtos, partidos num simétrico bobcut, e o rosto ovalado tinha as maçãs salientes; ainda coradas, mesmo que tenuemente. Os olhos castanhos, semicerrados numa perpétua expressão de letargia, brilhavam momentaneamente com uma fugidia esperança; prestando um pouco mais de atenção, percebi que era estrábica. Seu olho direito virava-se para fora do centro, mas por alguma razão aquele “fair defect” me atraía ainda mais – estava decidido a perder a virgindade com aquela mulher!
Meus devaneios foram interrompidos quando o moço ébrio (que havia finalmente se calado há alguns minutos) vomitou, errando por pouco meu sapato. Geralmente não teria me importado com tamanha banalidade, mas algo naquele sujeitinho causava-me um grande incômodo; se embriagado era assim tão aborrecível, nem quis imaginá-lo sóbrio. Com a desenvoltura (e o gosto) de um nativo, gritei “Suka blyat!” e, levantando-me de minha cadeira, derrubei-o no próprio vômito, enchendo-lhe o rosto de socos. Não ofereceu-me qualquer resistência, e lá jazeu desacordado.
A stripper cessara sua dança, assistindo àquilo horrorizada. Após meus ânimos se equilibrarem, voltei-me a ela e, gaguejando, comecei a defender-me:
“Sinto muito por causar tamanha perturbação! Não sei o que deu em…”
Antes que pudesse terminar, ela desceu do palco e veio a meu encontro. Segurando-me pelo queixo, encarou-me profundamente com os olhos desalinhados; temi pelo que poderia acontecer-me. Muito provavelmente havia comprometido seus lucros da noite, e aquele crápula haveria de vingar-se descontando os bofetões na pobre mulher – preparara-me mentalmente para ser enxotado do lugar aos berros, vendo minhas esperanças de reencontrar o amor malogradas, mas para a minha surpresa ela dirigiu-me um sorriso; em meio àquele inferninho, “that smile was Paradise”!
“É você!”, disse-me. “Esperei-lhe por tanto tempo, e finalmente apareceu!”
Nada depreendi daquela afirmação; julguei, porém, ser um presságio do êxito que obteria resgatando aquela mulher com o poder de meu amor. Estaríamos predestinados por alguma coincidência? Fiquei ansioso para ver até onde aquela cena me levaria.
“Mesmo?”, questionei, ainda com o queixo comprimido em sua mão. “O que garante que não diz o mesmo a todos os homens que a procuram? Deve ter dito isto até a ele.” Apontei na direção do rapaz, ainda repousando inerte com o rosto empapado em vômito.
“Quem liga para ele? Quem liga para todos os outros? Você apareceu!” Ela exultava.
“Poderia me explicar como me conhece? A mim, que nunca ao menos estive neste país antes?”
“Ah, sim, claro!”, ela anuiu, soltando-me finalmente o rosto. “Muito provavelmente você deve ter se esquecido após reencarnar nesta nova vida, mas foi-me dado ver tudo! Haverei de explicar, se prestar atenção.”
A história que ela veio a contar-me parecia ter sido retirada das delirantes páginas de um romance escrito por alguém nos cumes da insânia. Como um sinal de respeito por sua pessoa, que poderia ter desabrochado lindamente em condições mais propícias, omito as circunstâncias mais particulares de sua vida; mas posso compartilhar com meus leitores que aquela moça (cujo nome era Alina) nascera sob a influência do mais aziago dos astros. Tendo sujado-se em todos os vícios imagináveis como consequência de seu destino infeliz, apenas as drogas eram capazes de fazê-la aguentar a vida dia após dia, porém mantinha as esperanças de abandonar tal estado, alimentadas por uma suposta visão de uma vida passada na qual fui seu amante. (Pelo menos dizia ela que quem havia visto em sua “visão” era parecidíssimo comigo.)
Era uma típica arenga incoerente de usuários de drogas, e várias vezes achei que explodiria em gargalhadas ouvindo aquilo; mas vi que poderia usar aquela loucura a meu favor. Tomei-a nos braços, beijei-a, prometi que não a abandonaria e até faria o possível para levá-la comigo ao Brasil. “Agora que nos reencontramos”, disse eu, “por que não aproveitamos o resto da noite para nos familiarizarmos um com o outro novamente?”
“Há um quartinho nos fundos”, Alina respondeu, tomando-me pela mão. “Lá poderemos conversar melhor, se entende o que quero dizer.”
Dirigi uma última olhada ao rapaz, ainda desacordado.
“Devo perguntar quem era ele?”
“Quem se importa com ele?” Foi a única resposta que obtive.
[Continua no Cap. XV]