O SÓTÃO ll

SEGUNDO CAPÍTULO

James Norcon recebeu com indiferença a notícia de que sua filha era proprietária de uma escrava. Formado em medicina pela Universidade de Pensilvânia, logo se adaptou àquela sociedade aristocrata, entretanto a intensa dedicação ao trabalho acabou prejudicando lhe a saúde: contraiu tuberculose. Depois de três anos viajando pelo mundo retornou a Edenton. Seu casamento com Mary Curtis entrou em crise. Ajuizou então um pedido de divórcio acusando a mulher de alcoólatra, viciada em láudano, promíscua e “tolerar que os negros gastassem as provisões de um ano na metade de um mês”. A sentença lhe foi favorável, ficando ele com os bens e a guarda do filho John Norcon, de três anos de idade. Cinco anos depois do divórcio, então com trinta e dois anos, James Norcon casou com Mary Horniblow, de dezessete anos de idade. Depois de sua primeira experiência conjugal o Dr. Norcon determinou uma administração rigorosa por parte de sua nova esposa.

Apesar da pouca idade Mary Horniblow compreendeu que se quisesse manter seu casamento teria que ser o oposto da ex-mulher do seu marido. Para isso desenvolveu uma atitude formal e fria para com os escravos, não permitindo nenhum deslize às suas ordens ou às do esposo. Era capaz de assistir, sentada em sua espreguiçadeira, um escravo ou escrava ser açoitada até o sangue escorrer de cada golpe. Frequentava a igreja, mas o fato de partilhar da ceia do Senhor não parecia contribuir para despertar-lhe um espírito cristão. Se o almoço não fosse servido na hora exata no domingo, ela ia para a cozinha esperar que fosse posto na mesa e em seguida cuspia em todas as panelas usadas em seu preparo. E fazia isso para impedir que a cozinheira e os filhos comessem sua parca refeição com o que sobrava do molho e outros restos. Os escravos só podiam comer o que elas lhes desse. Os mantimentos eram pesados por quilos e gramas, três vezes ao dia. Ela sabia quantos biscoitos um quilo de farinha dava, e exatamente qual o tamanho que deviam ter. Não afeta a demonstrações de carinho, reservada, introspectiva, sabia, entretanto satisfazer o marido. Abraçou e criou o filho de James sempre pensando na melhor maneira de agradar ao marido, colocando-se sempre numa posição passiva, porém sem perder o controle da situação. Por causa do santo se beija o altar, costumava dizer em voz baixa. Com a tranquilidade necessária pôde o Dr. Norcon se dedicar inteiramente aos seus estudos médicos de pesquisa das doenças frequentes da região, bem como se tornar um dos melhores clínicos de Edenton.

- Por que sua irmã não nos deixou os escravos? Teria sido bem melhor, resmungou ele quando Mary lhe falou do testamento.

- Também pensei assim, mas Meg gostava muito de Matilda. E também gostava muito da mãe de Linda. Acho que ela juntou as duas pensando no bem delas. De qualquer modo amanhã ela estará aqui. A avó vai trazê-la.

Durante o percurso para a casa de seus novos patrões a menina contrariou-se pela sorte do seu pequeno irmão Williams. Marta consolou-a:

- Fique tranquila Linda. Ele ficou como propriedade da mãe de Dona Margareth e tenho certeza que não o venderá para estranhos. Eu estarei por perto. Agora se anime, pois vai para uma nova casa. Não espere que a irmã de sua ex-patroa seja como ela era ela, mas tenha fé em Deus que nós vamos comprá-la. Eu e seu pai estamos trabalhando para isso.

A imponência da residência do Dr. Norcon não conseguiu desanuviar a aflição do coração de Linda. A recepção fria, a voz seca e autoritária de Mary Horniblow, os olhares maliciosos dos filhos do médico encheram-na de tristeza. Ela, então com doze anos pertencia agora a uma menina de três anos, cujos pais respeitavam a sua avó, mas não abdicavam do direito de usar os horrores do sistema de escravidão para constranger e manter os negros em seu status de inferioridade, evidenciando a supremacia de uma sociedade aristocrata e conservadora.

A primeira noite na casa do Dr. Norcon foi horrível. Linda foi acomodada em um pequeno quarto nos fundos da residência. Uma minúscula janela permitia visualizar os campos de algodão, mas as lágrimas tornavam seu mundo totalmente escuro e apavorante. Em uma cama estreita e dura ela gemeu sua dor como nunca. Poucos dias depois seu sofrimento aumentou: O Dr. Norcon, a conselho de sua esposa, conseguiu a propriedade do seu irmão Williams.

Decorrido um mês após a chegada de Linda à residência dos Norcons, Daniel Jacobs veio visitar os filhos. Era um homem alto, a pele amorenada, bem como a de todos os seus descendentes. A prática imoral dos senhores brancos, engravidando as mulheres escravas, desmascarava-se na geração de uma nova categoria de homens: os mulatos. Linda notou que a ânsia de liberdade continuava no brilho do olhar do pai, mas alguns cabelos brancos e a palidez da tez denunciavam contrariedade. Mary Norcon permitiu-o conversar com a filha.

- Eles também compraram Will – desabafou Linda num soluço.

- Eu estou sabendo, mas talvez seja melhor assim. Pelo menos vocês estarão juntos. Onde está ele?

- Deve estar lá na frente. Ele serve diretamente ao Sr. Norcon. É seu menino de recado.

- Vá chamá-lo. Preciso falar com ele.

Alguns minutos depois Linda voltou.

- Ele disse que não pode vir agora. A senhora Mary encarregou-o de levar um bilhete para o Dr. Norcon.

- Mas ele é meu filho! Não pode desobedecer-me.

Linda sentiu um tremor na voz do pai e viu os olhos dele ficar cheios de lágrimas. Daniel baixou a cabeça, suspirando profundamente. Sua voz soou como o gemido de um animal ferido. Subitamente Marta apareceu no limiar da porta.

- Que foi que houve? Perguntou ela sentando perto do genro.

- Will deixou de obedecer a papai para levar um recado ao Dr. Norcon, explicou Linda.

- Eu sinto muito, Dan, mas o menino está certo – disse Marta. Você é o pai, mas não tem nenhum poder sobre ele. Daqui a pouco você vai embora e ele vai ficar aqui. O que será dele se irritar aos patrões? Não tem jeito. A solução é continuar trabalhando para comprar a liberdade deles.

- Ai é que está o problema, dona Marta. Como a senhora sabe, depois da morte do Dr. Knox fiquei sendo propriedade de sua filha Loiusa Matilda. Enquanto ela estava solteira estava tudo bom. Ela permitiu que eu continuasse trabalhando para mim conforme havia autorizado o seu pai. Mas agora que ela se casou, o desgraçado do marido dela me proibiu de trabalhar e me levou para sua fazenda em Green Hall.

- Isto é realmente muito ruim, mas devemos continuar confiando em Deus.

- Qual deus dona Marta? Ele nos abandonou há muito tempo.

- Não blasfeme! Você pode ser castigado!

- Nada pode ser pior do que a escravidão, dona Marta. Não entendo um deus que permite uma injustiça dessas. Qual a finalidade de tudo isso? Porque me deu um sentimento de pai e permite que o branco me roube a autoridade?

- Quem pode entender a mente de Deus? Ele tem seus mistérios – retrucou Marta.

Linda sentiu pena do pai. Era razoável aquele questionamento. Ela sempre soube que o maior sonho dele era comprar a liberdade dela e do Will. Ele mesmo já nem se preocupava com a própria emancipação. Na última visita ele estava todo animado, respirava saúde por todo o corpo, o sorriso era fácil e a esperança fazia seu olhar brilhar como uma estrela de um céu escuro. Parece que o golpe foi muito forte para ele. Deus é realmente muito misterioso. A vovó Marta devia ter suas razões para ter tanta fé, mas os caminhos divinos estavam cada vez mais complicados.

Daniel Jacobs se despediu com um forte abraço na filha. Linda o viu caminhar lentamente em direção ao portão de saída. Nunca mais o veria.

Um ano depois, a notícia da morte do pai de Linda chegou ao meio de um sepultamento. Sem dúvida nenhuma o céu conspirava contra ela. Uma querida amiga residente na vizinhança havia falecido. Linda ouvia o choro desesperado da mãe enquanto a terra caía sobre o caixão de sua filha. De repente ouviu o chamado de sua avó:

- Venha comigo Linda!

A jovem percebeu pelo tom da voz que algo tinha acontecido. Marta a levou para longe das outras pessoas e num sussurro embargado disse:

- Minha filha, seu pai morreu!

Linda sentiu as pernas dormentes. Teve a impressão que uma gigantesca cova se abrira embaixo dela e se viu caindo em um vazio desesperador. Perdera a mãe, a patroa, a amiga, e agora o pai! Ele tinha razão: Deus a abandonara. Refazendo-se do golpe perguntou:

- Quando será o enterro?

- Deve ser amanhã pela manhã. Você vai dormir na minha casa, amanhã a levo para a casa de sua patroa. Acho que ela vai deixar você ir para o cemitério.

A casa da avó de Marta era simples, mas aconchegante. Mesmo tendo como objetivo comprar a liberdade dos filhos, Marta compreendeu logo cedo que em primeiro lugar teria que ter um lar para abrigar a sua família. Com o dinheiro da venda de seus biscoitos e um pequeno empréstimo comprou um pequeno bangalô em King Street, o qual terminaria de pagar em 1830.

A noite na casa da avó foi longa e amarga. Nem mesmo a presença de Benjamim conseguiu desanuviar a tristeza de sua alma. A diferença de idade entre eles era de cinco anos. A pele mais clara denunciava a herança do sangue anglo-saxônico não como algo do qual o rapaz pudesse se orgulhar, mas como uma chaga maldita impossível de ser destruída. E isto se refletia inconscientemente em toda a sua personalidade. As mãos enormes pareciam garras prontas para entrar em ação. Sentado perto da sobrinha crispava os lábios enquanto ouvia a mãe.

- Quem sabe os desígnios de Deus? Talvez seus pais tenham sido poupados dos dias maus que virão. Devemos orar para que a vontade dele se cumpra porque ele não esquece dos seus filhos. E eu ainda estou aqui para cuidar de vocês.

Linda ouviu em silêncio os argumentos da avó. Lembrou-se então das palavras de seu pai contestando a providência divina, mas seu coração estava deprimido demais para qualquer reação.

Na manhã seguinte ela chegou à casa de sua senhora pensando no enterro do pai. Precisava ver pela última vez aquele homem digno e amante da liberdade, que ensinara aos de sua raça a se sentirem seres humanos. Assim que Mary Horniblow a viu ordenou-lhe:

- Ainda bem que você chegou. Vá colher flores pra enfeitar a casa. Teremos uma festa à noite.

Linda ouviu a ordem como uma ferroada. Pensou em falar-lhe do sepultamento do pai. Ela acreditou que se colhesse rápido as flores seria mais fácil conseguir permissão para sair. Menos de meia hora estava de volta.

- Agora vá fazer as grinaldas, ordenou novamente Mary Horniblow. Sua voz era seca.

Havia se enganado. Por um momento surgiu ao lado da senhora de Linda a imagem daquela que lhe ensinara a ler, escrever e costurar. A avó Marta lhe avisara para não esperar que a nova patroa tivesse algo parecido com ela, mas aquilo ultrapassava a razão. Seu pai tinha razão. Will tinha razão em odiar os senhores. Benjamim tinha razão em querer esganar seus senhores. Como segurar o ódio? Talvez a avó Marta tivesse a receita, mas era difícil imaginar o pai morto, certamente exposto a menos de dois quilômetros dali enquanto ela fazia grinaldas para uma festa. Qual a importância para eles? Seu pai é apenas um objeto, uma coisa qualquer cujo desaparecimento devia ser comemorado por criar dificuldades para os brancos.

05/05/2014

henrique ponttopidan
Enviado por henrique ponttopidan em 05/05/2014
Código do texto: T4794719
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