Nos domínios da Morte-em-Vida: Viagem por Kishinev (Cap. XII – Diálogo entre o Autor e Scarbô)

[Prospectul Păcii. Noite. Entram o Autor e Scarbô encarapitado em seu ombro.]

SCARBÔ — Todo dia, todo dia minha visão deve ser bombardeada por estes blocos hediondos de concreto! Sou um ser feito de puro pesar, mas isto consegue destruir até ao meu espírito!

O AUTOR — Reclama até mesmo de um lugar que parece ter sido feito sob medida a você. Nada nesta Terra dá-lhe prazer?

SCARBÔ — Meu prazer é o de não conseguir achar prazer em nada; aquilo que a raça humana faz para entreter-se é vão. Mais sublime é estudar a Criação divina e apontar seus defeitos.

O AUTOR — Então crê que, se houvesse de criar um mundo, teria feito um trabalho melhor do que Deus?

SCARBÔ — Não gosto de gabar-me… Ah, que vá para o diabo a falsa modéstia! Amo gabar-me. Sim, teria feito um trabalho excelente, e talvez até levaria menos tempo – pois, no lugar de Deus, criaria um mundo em cinco dias, dando-me dois de descanso! Se criasse eu um mundo, o preencheria de uvas para que o vinho não faltasse, e até os lugares mais gelados abundariam em tabaco. O único habitante seria eu mesmo, e todo dia inventaria algo diferente sobre o que reclamar; bebendo e fumando, eu reclamaria, reclamaria e reclamaria, e quando ficasse cansado teria uma ótima noite de sono até o dia seguinte, recomeçando o ciclo.

O AUTOR — Jamais pensei que diria isto, mas prefiro mil vezes este nosso mundo atual. Pois bem! Se quer criar um mundo, por que não o cria?

SCARBÔ — Tenho preguiça. Além do mais, não gostaria de deixar tua presença; tua desgraça é outra coisa que me dá prazer. Ando, porém, bem entediado! Apenas observo-te suspirar por aquela garotinha impertinente, que já deve tê-lo esquecido inclusive. Por que não faz o mesmo? Esqueceu-se de C… muito mais facilmente – mas, devo admitir, como era feia…! Cada centavo ganho às custas daquele dragão é criminoso!

O AUTOR [sorrindo.] — Acho que é a sina de todo poeta e artista enxergar beleza onde menos se espera.

SCARBÔ — Pude bem vê-lo! De outra forma não teria inscrito o nome de uma garota tão feia na mesma lista encabeçada por Beatriz e Laura! Tampouco acharia assim tão encantador o estado de desalento desta cidade!

O AUTOR — Gosto daqui pois é um espelho de minha alma. Se ainda estivesse com Nelly, talvez conseguiríamos revitalizar este lugar com nossa paixão mútua. Quem dera fosse eu capaz de encontrar um novo amor nesta cidade…! Abandonaria meu país para nunca mais voltar, e só então Nelly seria destronada de meu coração. Não cometeria os mesmos erros que cometi com ela…

SCARBÔ — Os cometeria piores.

O AUTOR — …e poderia viver com a certeza de que não estou destinado a trazer o mal às pessoas que amo.

SCARBÔ — Devia ter se declarado ao palhaço quando teve a chance.

O AUTOR — Mas como é irritante!

SCARBÔ [sarcástico.] — Se sente tanta falta assim de um toque feminino, é só pedi-lo a qualquer meretriz; nem ao menos precisa fazer com que se apaixonem! Com o bolso cheio de moedas, será tratado como um rei sem que tenha que preocupar-se com o teatro preliminar de demonstrar seus atrativos e desperdiçar tempo com “small-talk”. Aposto que, num pardieiro como este, as encontraria às mancheias, e a preço de banana!

O AUTOR — Não haverei de prostituir minha virgindade envolvendo-me com mulheres perdidas.

SCARBÔ — Isto é o que dizes agora; mas vejo em seus olhos que entretém, sim, tal possibilidade. A mente diz que sim, mas o coração diz que não – e os argumentos dos quais me valho para convencê-lo são os seguintes: arranque fora o coração se pretende continuar vivendo neste século. Ninguém pode ser perpetuamente puro! Quanto mais rápido sujar-se, mais tolerável lhe será a existência, pois não se desapontará perseguindo quimeras. Ora! Achei que era Musset… e Nelly era a George Sand…

O AUTOR — Calado, maldito! Minhas memórias com Nelly não são assunto para suas sátiras.

SCARBÔ — Na melhor das hipóteses, pode até ser que consiga resgatar uma dessas garotas. Ah, é digno de um romance! Haverás de retirar uma pobre mulher do lodo, devolvendo-lhe o alvo manto de sua pureza… Ela abandonará os caminhos da depravação e será somente tua… Conhecendo-o como o conheço, só de pensar em tal perspectiva já começa a salivar, hã?

O AUTOR [exasperado.] — Maldito! Não devo-lhe nada!

SCARBÔ [aos berros.] — Não pense que não reparei quando pôs-se a mirar tão demoradamente para aquele cartaz colado naquele poste! Amanhã mesmo sei que se encontrará lá, recebendo os beijos frios de uma prostituta e esforçando-se ao máximo para enxergar o rosto de sua amada nela!

[Silêncio. O Autor apanha um cigarro e acende-o.]

O AUTOR [melancólico.] — Infeliz…! Conhece a mim mais do que eu mesmo.

SCARBÔ [sorrindo.] — É uma bênção e uma maldição estar a par de teus passos rumo à Queda; mas desfruto de cada momento.

[Exeunt.]

[Continua no Cap. XIII]

Galaktion Eshmakishvili
Enviado por Galaktion Eshmakishvili em 25/04/2014
Reeditado em 20/10/2022
Código do texto: T4783114
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