Nos domínios da Morte-em-Vida: Viagem por Kishinev (Cap. XI)
Ao término de um de nossos encontros, Constantin disse-me que no dia seguinte haveria de dar-me uma surpresa – também prometi-lhe algo em troca, para não deixá-lo de mãos vazias, e mal pude esperar pelo nascer do Sol para ir visitá-lo no Circo.
Quando lá cheguei, ele não estava em seus trajes de palhaço, o que achei deveras incomum; todo dia até então recebera-me sempre fantasiado, a fim de apresentar-me algum novo espetáculo. Seus cumprimentos afetuosos, porém, permaneceram imutáveis.
“Quando disse que tinha uma surpresa para dar-me, achei que seria alguma apresentação elaborada”, falei. “Não irá vestir-se hoje?”
“Hoje, não – o que tenho a dar-lhe é algo muito melhor!”, respondeu Constantin, irradiando alegria.
“Então o que é?”
“Vou partir de Kishinev ainda esta noite!”, exclamou triunfante.
Não entendi como aquilo poderia ser algo tão agradável assim a se compartilhar; geralmente despedidas são pesarosas, e se era aquela a surpresa, de fato me surpreendera – mas não positivamente. “E como isso pode ser melhor do que uma de suas apresentações?”, questionei. “Já sei: deve ser alguma nova anedota sua, não?”
“Falo seriíssimo”, Constantin começou a explicar-se, “pelo menos tão sério quanto o é permitido a um palhaço. Vejo que está confuso, porém; sente-se aqui comigo hoje.”
Ele e eu nos sentamos no chão do picadeiro, e ele continuou:
“Desde a morte de minha esposa meu crescimento pessoal estagnou e, estando confinado a fazer a mesma coisa todo dia, já começava a crer que merecia toda e qualquer infelicidade que viesse a recair sobre mim – passaria o resto de minha vida sofrendo numa cidade que já não tem mais nada a oferecer-me, vendo a chama de meu sonho apagar-se, por ser a lei natural.”
Ele suspirou fundo.
“Mas então, quando faltava muito, muito pouco para que meu último fio de esperança se rompesse, conheci você, que fez com que me lembrasse de por que escolhi ser palhaço em primeiro lugar; num mundo de tristezas, fui escolhido para semear a alegria! Não quero que Elena, onde quer que esteja, assista-me definhar de pesar dia após dia; quando eu for juntar-me a ela, que seja com a felicidade no rosto de quem viveu uma vida plena!”
“Fico extasiado por ter contribuído para este seu entusiasmo recém-adquirido”, disse eu, pressionando-lhe uma das mãos. Recebi um caloroso e encantador sorriso em troca. “Entretanto falta-me saber das motivações de seu desejo de partir daqui.”
“A desolação desta cidade é muito grande, e pelo menos por ora não posso ajudá-la. Partirei para um lugar menos corroído pela apatia e lá aprenderei novos truques – quando tornar-me um palhaço muito mais renomado do que hoje, voltarei a fim de atrair espectadores para esta terra, tão necessitada de sorrisos. Se conseguir bastante dinheiro, talvez até compre o Circo, e mande-o restaurar à sua antiga glória… Afinal, não é muita coisa que separa um palhaço de um capitalista!”
“Entre fazer palhaçadas por risos e fazê-las por dinheiro, a primeira opção é muito mais honrosa – é inegável”, ri-me. “E a recompensa causa menos dissabores.”
“Vou dar um conselho a você, meu caro, e espero que o carregue tal como carrego os que vieram de você”, Constantin retomou o raciocínio, fitando-me com seus olhos verdes. “Nada pode abater a verdadeira Arte, por mais que ela seja deturpada pelos indignos e vilipendiada pelos néscios; um dia você e eu haveremos de morrer, mas nossas criações habitarão o imaginário popular por eras! O trabalho dos medíocres desmorona; o daqueles que foram genuinamente tocados pela Arte pode até fraquejar nas fundações, mas jamais haverá de cair, por mais que os maus tentem derrubá-lo. Como este Circo”, ele mirou por longos instantes o teto, “que apesar de seu estado deplorável, não sucumbiu por completo; está apenas adormecido, esperando pelo toque que haverá de despertá-lo. Talvez venha amanhã, ou depois, ou depois, ou depois… Não importa. Só sei que ele haverá de acordar, e trará de volta a alegria que este povo tanto precisa. Em suma, quero que prometa-me que jamais abandonará seus dons, por mais que tentem insultá-lo e desviá-lo caminho das Musas.”
“E precisa perguntar-me?”, disse eu, sorrindo. “Só vou parar de escrever morto!”
“Espero que um dia possamos nos reencontrar aqui, e que até lá o Circo esteja tão bonito quanto o foi no passado.”
“Vai se realizar.”
Constantin e eu nos abraçamos demoradamente. “Antes que me esqueça!”, exclamei, após nos soltarmos. “Preparei-lhe uma surpresa também; não queria que fosse o único a compartilhar algo bom comigo.”
Entreguei-lhe um pedaço de papel que trazia no bolso. “É algo que escrevi para que carregasse sempre consigo, e o consultasse quando sua luz interior fraquejar. Sinto muito se cometi algum erro gramatical; meu russo é horrível.”
Ele desdobrou o papel, e leu em voz alta:
***
“SONETO AO CIRCO DE KISHINEV
Em meio a teus grandiosos murais descascados
E magníficas estátuas mutiladas,
Quantas interjeições de espanto, gargalhadas
E sorrisos por eles foram presenciados?
Agora jazem todos eles sepultados
Em cada fenda de tuas paredes rachadas;
Ó oco mausoléu de alegrias roubadas,
Que teus corredores não sejam profanados!
Continue, Kishinev, a perseverar;
Algum dia estas portas vão se reabrir
E tua felicidade haverá de voltar.
E neste dia (que certamente há de vir),
Espero também junto a ti reencontrar
Minha própria habilidade de sorrir!”
***
Após o término da leitura, apertei-lhe a mão.
“Acest oraș merită mai mult”, disse eu.
“Toată lumea merită”, respondeu-me. “Todos merecem.”
“Apenas não vá se envolver nas desventuras amorosas da nobreza – não gostaria que levasse um tiro como seu xará.”
“É uma lição a ser levada por todos os Constantins do mundo!” Ambos explodimos em risos.
Como aquele seria o último dia que passaríamos juntos, o aproveitamos conversando ao máximo antes de nossa derradeira despedida. Não senti mais interesse em visitar o Circo subsequentemente, pois queria resguardar-me para o dia em que haveria de revê-lo devolvido à sua antiga glória e matar as saudades de Constantin, que já começavam a arraigar-se em meu coração – ainda hoje, sempre que penso em desistir de tudo, lembro-me de como proporcionei-lhe ao menos um lampejo de esperança, e do quanto o decepcionaria se deixasse que meus fracassos me derrotassem. O brilho incandescente daqueles olhos verdes haveria de ser a estrela-guia não só de meu porvir, mas também do daquela cidade – estava certo disso.
“Quem sabe…?”, pensei então. “Talvez será este mesmo brilho que acabará por mostrar-me o caminho de volta a Nelly.”
[Continua no Cap. XII]