Nos domínios da Morte-em-Vida: Viagem por Kishinev (Cap. X)
Preparava-me para deixar o Circo após cansar-me de ser surpreendido por paredes emboloradas, vidros quebrados e esculturas depredadas onde quer que eu olhasse, quando ouvi as tristes notas de um acordeão partindo de onde era o picadeiro. Com a curiosidade atiçada, saí à procura daquele melancólico músico a fim de prestigiar-lhe o trabalho – sempre cri eu que artistas devem ajudar-se mutuamente. Se pudesse fazer ao menos um amigo durante minha estadia na cidade, todas as decepções que sofrera até então seriam aliviadas, pois até o pior dos lugares se torna mais aprazível quando tem-se a Amizade para suavizar-lhe os caminhos: e digo isto por experiência própria, de outra forma como teria suportado viver tantos anos em —?
Continuei seguindo o som da música até chegar ao coração do Circo – seu picadeiro destruído. Sendo de dia, a luz solar o iluminava por rachaduras no teto; desprovido de eletricidade, estaria impossibilitado de ver qualquer coisa à noite. A uma distância respeitável, para não incomodá-lo, vi que o musicista era um rapaz mais ou menos de minha idade: vestia uma colorida e bufante roupa de palhaço, manejando o acordeão com graça e desenvoltura quase que femininas. Sem me fazer notar, fui aproximando-me e sentei-me numa das cadeiras da primeira fileira da arquibancada – continuava ele absorto demais em sua música para perceber que tinha companhia. Começou a cantar; uma canção triste e bela, com uma voz de timbre simultaneamente aveludado e suave, mas forte e seguro. Nada entendi da letra, por ser em romeno, porém o idioma é o que menos importa em se tratando do apreço de uma obra de arte – entretanto, ao pedir que a traduzisse para o russo, obtive sua permissão para vertê-la num poema, e compartilho-o com os leitores curiosos:
***
A CANÇÃO DO PALHAÇO
Desde meus mais verdes dias até então,
Ando em meu colorido traje exagerado,
E com este sorriso em meu rosto pintado
Diligente desempenho minha função.
Como palhaço, levo a sério a profissão;
Se me visses, jamais teria imaginado
Que trago no peito um coração macerado
E não tenho outro amigo fora a solidão!
E por mais que sinta vontade de chorar,
Minha tristeza sou forçado a engolir
E meu artificial sorriso ostentar –
Até minha morte haverei de prosseguir
Buscando ouvir os transeuntes gargalhar
Sem que ninguém em troca faça-me sorrir!
***
Incapaz de conter-me ante tão encantadora música, o aplaudi com lágrimas nos olhos – a princípio ele pareceu sobressaltado, mas logo se recompôs e fez-me uma mesura.
“Peço mil perdões se incomodei-o!”, disse a ele em russo, pulando a divisória da arquibancada e correndo a seu encontro no palco. “Estive visitando o Circo e não pude evitar de admirar sua música. Emocionou-me tanto!”
“Muito pelo contrário”, respondeu-me na mesma língua, oferecendo-me a mão para que a apertasse. Agora podendo observá-lo de perto, vi que era um formoso rapaz: seus cabelos, variando entre o castanho-claro e o louro, enrolavam-se em volumosos cachos, com a aparência de seda, que davam-lhe os ares de um anjo como aqueles pintados pelos artistas do ottocento. Os olhos eram de um verde cintilante, e seu rosto, de feições tão afeminadas que poderia jurar que falava com uma garota não fosse pelos contornos de seu corpo e pelo timbre masculino de sua voz, estava oculto sob uma camada de maquiagem branca, com duas cartunescas lágrimas azuis pintadas sob os olhos e um vermelho sorriso rasgando-lhe as bochechas de uma extremidade à outra. Um típico nariz arredondado de palhaço concluía-lhe o disfarce. “Em verdade, até gostaria que mais pessoas aparecessem para aplaudir-me – os espíritos deste Circo são críticos generosos, porém mudos.”
“E quem seriam eles? Não tive a chance de encontrar-me com nenhum.”
“São os risos que permaneceram confinados nas fendas destas paredes; se ninguém vem para entretê-los, seu humor fica terrível…! Apenas nós, palhaços, podemos enxergar o Riso; somos seus intermediários na Terra, sabia?”
“É um discípulo de Gelos; eu sou um de Apolo”, sorri.
“Um poeta, então? Como não o conheci antes? Nem ao menos acho-o familiar de rosto.”
“Não sou daqui”, expliquei-me. “Sou brasileiro – de lá saí numa viagem à procura de mim mesmo.”
“E conseguiu se encontrar?”
“Encontrei um amigo, ao menos.”
Ele deu uma gostosa gargalhada, dizendo-me em seguida:
“Adoraria continuar aqui conversando – porém, chega a hora de despir-me de meus trajes de palhaço e, com minhas roupas comuns, desempenhar meu papel na comédia da vida, deixando a do circo para uma outra hora. Se esperar por mim na entrada, não tardarei a reencontrá-lo.”
“Certamente, amigo!”, respondi, deixando-o a sós para que pudesse trocar de roupa. Feliz por ter encontrado alguém de disposições similares com quem pudesse dialogar, não me importaria de esperar pelo tempo que fosse; e tal como prometera, ele não demorara a reaparecer, agora livre das vestes de palhaço e presumivelmente carregando-as na grande mala que trazia consigo. Com um gentil sorriso no rosto feminino, ofereceu-me um maço de cigarros.
“Fuma?”
“Comecei há pouco tempo”, respondi, tomando um e permitindo que o rapaz o acendesse a mim. “Creio que, como num rito de passagem, todo homem começa a fumar após a depressão instalar-se em sua alma.”
“Não é um palpite equivocado”, disse ele enquanto acendia seu próprio cigarro. “Tanto é que uma maldição recai sobre todo palhaço: devemos fazer os outros rirem, mas ninguém nos oferece risos em troca.”
Sentamo-nos no chão, próximos à porta de entrada do Circo.
“Fale-me sobre você, camarada brasileiro”, continuou meu companheiro. “O que o faz deixar as maravilhas de seu país tropical e vir embrenhar-se nesta cidade construída por séculos de desgostos?”
“Estando imune à consolação proporcionada pela luz, julgo ser natural tentar encontrá-la em meio às trevas.”
“Bom – apenas não deixe que as trevas o consumam no final. Se importa em compartilhar comigo aquilo que o aflige?”
“Aquilo que aflige a todos de minha casta: o amor. Por amor registrei num livrinho os mais puros sentimentos que uma pessoa me proporcionou, apenas para que ela os pisoteasse; por amor matei a irmã de minha alma…”
“Jamais pensaria que é um assassino”, interrompeu-me ele. “Seus olhos não queimam com o ódio de alguém que sente prazer por ceifar vidas humanas.”
“Matei-a com palavras.”
“Compreendo.” Ele deu uma longa baforada em seu cigarro. “A morte por palavras é a única que tem chances de ser revertida, se assim o quiser; por que não tenta pedir desculpas?”
“Ela não quer mais ver-me. Fugiu de tanta aversão que vim a causá-la.”
“Por que então não escreve um outro livro a ela? Assim poderá cair-lhe nas mãos e ela saberá como se sente; e talvez venha a procurá-lo de novo.”
“É uma ideia que de fato venho nutrindo”, respondi pensativamente, apagando os restos de meu cigarro com a sola do sapato.
“Independente do que tenha acontecido entre vocês, agradeça o fato dela estar viva, havendo a possibilidade de que façam as pazes; eu já fui casado, mas minha esposa faleceu devido a uma doença ano passado e não há um dia no qual não desejo que ela ainda estivesse aqui comigo.”
“Sinto muito, meu amigo”, disse eu, segurando-lhe uma das mãos. “Ela deve ter tido muita sorte de ter um marido tão bondoso como você; como se chamava?”
“Elena.”
Meu semblante anuviou-se. “Também amei uma Helena.” Peguei outro cigarro.
“Às vezes penso que todos no mundo já amaram uma Elena e a perderam; seja ela metafórica ou não. Todo dia morre o ideal de alguém em alguma parte do mundo, entrando para o rol de Elenas que não para de crescer – meu sonho desde que enverguei meus trajes de palhaço pela primeira vez era poder tocar neste Circo, até ele fechar as portas e eu ser forçado a vir para cá às escondidas, na companhia de uma plateia de fantasmas. Não consigo mais fazer ninguém rir! Penso em deixar de ser palhaço.”
Aproximei-me mais um pouco dele, dando-lhe um abraço. Lágrimas começavam a escorrer-lhe dos olhos.
“Lhe darei um conselho”, disse eu, deslizando minhas mãos por suas costas vagarosamente, “que recebi de uma velha amiga certa vez. Totus mundus agit histrionem – o mundo é um palco, e muita sorte tem aquele que o percebe e consegue manter o bom humor perante as agruras da vida. Os palhaços desempenham o papel de alívio cômico para a sociedade; não pode desistir desta ocupação tão nobre! Entristeceria demais sua esposa.”
Ele suspirou fundo e, tendo recuperado um pouco do ânimo, encarou-me com os olhos rebrilhando de determinação:
“Tem razão, amigo; não posso fraquejar. Ouvir os risos das pessoas é tudo para mim! Não sei se aguentaria tanto tempo sem ouvir uma gargalhada. Sou grato por ter-lhe conhecido a esta hora!”
“Eu é que agradeço-o por dar-me a chance de compartilharmos nossos fardos. Por sinal, acabei de perceber que não nos apresentamos! Meu nome é Galaktion – é um pseudônimo, em verdade, mas é como sou conhecido.”
“Me chamo Constantin.”
Nem bem ele terminou de dizer aquilo, um ruidoso estalo ouviu-se em meu cérebro; lembrei-me de quando, há tantos anos ao trabalhar em minha noveleta, criara um de meus personagens preferidos (e que fora igualmente bem recebido pelo público) – o valente cigano Constantin, tocador de acordeão, cuja esposa Elena também havia falecido. Era bom demais para ser verdade! Os frutos de uma criação que me causavam tamanho embaraço literalmente saltavam de suas páginas para que não deixassem-me esquecer. Explodi em gargalhadas ante tamanha coincidência tão agridoce, proporcionada por um fado dos mais abstrusos.
“Sempre me julguei um palhaço passável”, Constantin encarou-me, um tanto quanto assustado, “mas nem tudo aquilo que digo é um chiste. O que tem meu nome de tão engraçado?”
“Vou contar-lhe uma história inacreditável, meu amigo”, respondi, a barriga doendo de tanto rir. “E é bom que se prepare! Será uma história e tanto…”
Contei a ele todos os episódios de minha vida até então: meus deprimentes anos no Liceu, a crueldade de C…, o tragicômico caso de minha noveleta, a grande parte de meus anos de formação passados na casa de meu mestre T… e – principalmente – sobre Nelly. Ouviu-me tudo com respeitosa atenção, ora divertido, ora apiedado, e em troca ele contou-me sobre seus dias mais felizes ao lado da esposa; ensinou-me a letra de sua canção e, sendo nativo da cidade, inteirou-me de fatos sobre o Circo nos dias de seu auge que nenhuma fotografia poderia ter-me dito.
Passamos assim quase o dia todo conversando, até nossas gargantas latejarem. Por fim, despedi-me de Constantin e fui cuidar de meus afazeres, prometendo a ele que voltaria para visitá-lo sempre que pudesse enquanto permanecesse ali – promessa esta que cumpri religiosamente. Todo dia nos encontrávamos no picadeiro, e Constantin fazia-me apresentações particulares: tocava o acordeão, cantava, fazia malabarismos com bolas e pinos, e proferia espirituosos gracejos que reavivavam-me o riso dentro do peito. Nunca a amizade de alguém deixara-me tão radiante, e pude ver que Constantin sentia o mesmo a meu respeito; seus olhos brilhavam tão logo me avistava, correndo a meu encontro para apertar-me a mão, e as duas lágrimas pintadas em seu rosto haviam sido substituídas por espalhafatosas estrelas amarelas.
Passei os dias mais agradáveis de minha existência ao lado de meu novo amigo; e até ouso dizer que superaram o idílico período no qual vivi hospedado com T…. Encontrara finalmente um lótus em meio ao lodaçal!
[Continua no Cap. XI]