Nos domínios da Morte-em-Vida: Viagem por Kishinev (Cap. IX)

Um de meus maiores deslumbramentos durante a infância era o circo; e naquele tempo, não havia um mais bonito que o de Kishinev.

Lembro-me de devorar com os olhos todas as fotografias que me caíam em mãos do Circo de Kishinev e suas atrações – o pórtico de entrada era encimado por uma maravilhosa escultura de dois carismáticos palhaços, convidando o público com suas estripulias a deliciar-se numa tarde de espetáculos proporcionados pela mais fina flor dos praticantes das artes circenses, e o edifício em si fora construído num formato arredondado a fim de lembrar os tradicionais cestos fabricados de forma artesanal pelos camponeses dos tempos arcaicos. Do que mais gostava, porém, era de estudar por horas os lindos mosaicos que decoravam o chão e as paredes do interior, e sonhar, com aquele entusiasmo inerente à inocência da infância, com o dia em que haveria de ver tudo aquilo de perto.

Sorri-me dos acasos do destino: parando para pensar, devo ter escolhido aquele itinerário inconscientemente, por uma artimanha de minha criança interior. Resolvi não decepcioná-la para variar, e jurei que haveria de cumprir a promessa que fiz há tantos e tantos anos a mim mesmo visitando o Circo de Kishinev antes de partir.

Aprendi do pior modo que certos caprichos que carregamos de nosso tempo de criança não foram feitos para ser satisfeitos – e é preferível sepultá-los incorruptos do que vê-los esboroar perante seus olhos.

Pedi instruções a um passante sobre como chegar ao Circo; fui atendido, mas concluiu o diálogo dizendo:

“Por que tem tanto interesse em ver um prédio vazio? O Circo não funciona há anos! Está abandonado.”

Fiquei desanimado com tal notícia tão triste, mas não desisti de ir ver o Circo; mesmo que estivesse vazio, se pudesse contemplar sua fachada com os alegres palhaços ou espiar seus mosaicos de algum modo, talvez já estaria de bom tamanho, e voltaria contente ao meu país por realizar – ainda que de forma imperfeita – uma das maiores vontades de meu tempo de criança.

O Circo jazia num estado tão repugnante que quase fui levado às lágrimas ali mesmo.

Kishinev era repleta de antigas construções abandonadas, e por mais que seu aspecto deprimente deixasse-me num correspondente estado de humor, geralmente esquecia-me delas depois de algum tempo – mas algo naquele Circo perturbava-me o ânimo. A aura que aquele edifício emanava era uma de esperança perdida; mantendo-se em pé por devê-lo mas sem saber o porquê e sem ter nada a motivá-lo para tal. Estudei as esculturas dos palhaços que cativara minha imaginação por anos; para o meu extremo horror, a cabeça de um deles havia sido decepada, seja pela ação do tempo ou por algum vândalo mesquinho que, carregando um carvão no lugar de coração em seu peito, não sabia apreciar os encantos da Arte. Quis consolar-me daquela visão repulsiva e admirar os mosaicos, esperando que ao menos eles estivessem bem preservados, e adentrei aquele mausoléu de alegrias putrefatas.

O interior do Circo era ainda mais suntuoso do que seu exterior, todo decorado com mosaicos de cenas circenses e exóticos animais, e belas esculturas – em seus dias de glória, o efeito das duas coisas combinadas seria magnífico, mas agora, com o exterior dilapidado e o interior deserto, tudo meramente contribuía ainda mais para o ar de desolação que aquelas paredes encerravam. Quantas pessoas não entraram e saíram por aquelas portas no passado? Quantos espectros de gargalhadas de gerações – velhos e moços – não se ocultavam atrás das fendas daquelas paredes?

Felizmente, grande parte dos mosaicos estava intocada. Algumas pichações podiam ser vistas aqui e ali, mas nenhum estava grandemente desfigurado. Passando os olhos brevemente por elas, uma em particular chamou-me a atenção; em incisivas letras vermelhas li escrito “Acest oraș merită mai mult”. “Esta cidade merece coisa melhor”, como gentilmente vieram a explicar-me. Era como se o próprio Circo demonstrasse sua indignação ante o deplorável estado de apatia ao qual a cidade fora reduzida, mas sua voz, incapaz de deixar aquelas paredes, permanecia ali – congelada e inaudita, esperando que algum intérprete a tomasse para si e bradasse a todos os ouvidos de Kishinev.

Ab imo pectore, desejei que ele não tardasse muito mais a aparecer.

[Continua no Cap. X]

Galaktion Eshmakishvili
Enviado por Galaktion Eshmakishvili em 22/02/2014
Reeditado em 20/10/2022
Código do texto: T4702153
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