Nos domínios da Morte-em-Vida: Viagem por Kishinev (Cap. VIII – O caderno de Mihai)

No dia seguinte, voltei ao Arco com o intuito de rever Mihai, mas não o encontrei lá. Procurei-o em vão por outras partes da cidade; nunca mais tive a chance de reencontrá-lo. Ainda hoje não paro de perguntar-me o que teria acontecido com ele desde o momento em que nasceu, e se algum dia algo ou alguém seria capaz de curá-lo, mas enquanto permaneci em Kishinev e passava próximo ao Arco do Triunfo, admirava-o em seu aspecto tacanho, respeitando-o como um monumento erigido de fato a todos os triunfos não cantados daqueles a quem o mundo destruíra as esperanças a ponto de levá-los ao vício e à insanidade.

Apenas não acreditei que tudo fora um sonho, ou alucinação, porque o caderno de Mihai permanecia lá, em meu criado-mudo, tão tangível como o fora após recebê-lo. Tirei os próximos dias para decifrar seus conteúdos, escritos numa cabalística mistura de romeno e russo, e aquilo que fui incapaz de verter ao português preenchi eu com elementos de minha própria fantasia – Mihai talvez não se importaria de compartilhar de minha musa.

E, assim, divulgo ao mundo sua obra; espero não só poder fazer jus a seus talentos desperdiçados como também homenagear este “Tasso sem risos de Eleonora” da forma digna que merece.

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Lembro-me que costumava passear por esta alameda o tempo todo quando eu ainda a tinha ao meu lado.

Ali onde está aquela construção dilapidada outrora se erguia uma bela bombonière, onde costumávamos nos empanturrar de chocolate e conversar sobre o que a vida tinha reservado para o nosso futuro.

Aquele outro prédio que se vê acolá, ocupado agora por mendigos e vagabundos, já foi o belo teatro onde segurei sua mão do começo ao fim da peça.

Lembro-me que um dia me sentei naquele banquinho de madeira atualmente destruído para desenhar seu retrato, enquanto ela posava para mim graciosamente.

Naquela praça carbonizada e repleta de lixo outrora cresciam milhares de tulipas vermelhas, e eu sempre colhia uma para entregar a ela no percurso para sua casa; às vezes, durante nossos passeios, o vento fazia com que muitas pétalas bailassem no ar, e imitávamos seus movimentos até que caíssemos, zonzos, e trocávamos beijos sob o céu azulado de agosto.

E meu coração, outrora tão feliz e risonho, tornou-se um vácuo desprovido de emoções desde que ela se foi, e a única coisa que me resta é perambular por estas ruas desérticas procurando pelos fantasmas dos amores que se foram junto com ela… mas em vão.

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Toda noite sonho com um reino de flores, governado por —, a princesa de meus sonhos. Ela me toma pelas mãos e me leva para bailar em meio às tulipas, como aquelas que eu costumava ver em Tulpstraat.

Em meus sonhos, nós nos deitamos na relva e olhamos as nuvens, boiando como naus de algodão no céu, e os cisnes que planam graciosos no encalço delas.

Aperto sua mão cálida e morena contra meu peito frio e quase sem vida, repleto de cicatrizes que o ódio me fez, e só o que importa para mim é ela e nada mais. E enquanto estamos unidos em laços da mais pura amizade, sinto que o tempo não passa e queria expirar para sempre neste sonho.

Porém, como todos os sonhos, eles fenecem com o nascer do Sol, mas ainda ouço os risos de — e sinto o cheiro das flores em minhas vestes ao acordar, e me pergunto se ela na verdade não é uma fada que, sabendo da tristeza de minha alma e compadecendo-se de mim, tenta devolver-me algumas das esperanças que o mundo espatifou cruelmente diante de meus olhos.

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Durante minhas caminhadas noturnas pela Cidade Azeda, um gato solitário me segue por onde quer que eu vá, esgueirando-se pelos telhados e muros do mundo. Seu pelo negro reflete a luz da Lua como se fosse metalizado, e seu corpo esguio desliza como uma sombra.

A cada alameda, beco, rua, viela por qual ando meu passo solitário e turbado por visões infernais, meu amigo gato sempre me segue. O que acha tão divertido em mim? Não sei. Mas seus olhos estão sempre me perscrutando, como dois globos amarelos.

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À medida que escrevo estas palavras, há uma belíssima virgem ao meu lado. Os graciosos cachos verdes de seus cabelos coroados com uma guirlanda de artemísia ondulam com a brisa fria da madrugada que entra pelas janelas de meu quarto, e suas vestes, também esverdeadas, farfalham levemente, fazendo um agradável barulhinho no assoalho. Suas mãos de esmeralda dedilham meus cabelos em desordem com a graça de um pianista, e posso sentir seu hálito fragrante enquanto ela sussurra surreais e violentas canções em meu ouvido.

Nenhuma dessas coquetes de hoje em dia, com seus úberes de vaca inchados, suas faces horrendamente pintadas com maquiagem barata e desfiguradas por um sorriso grotesco, e suas cabeças repletas de ar, se equiparam a você, ó minha doce fada verde, com seus beijos de absinto e olhos de turquesa nos quais o brilho da loucura se insinua. Pena que desapareces toda manhã, e devo invocá-la novamente toda noite, sorvendo do líquido sagrado!

Quando pintarem meu retrato de general, cavalgando em guerra contra Deus e o mundo, e com a morte ao meu lado, pintem não uma espada em minha mão, mas sim uma taça de absinto.

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Ó negra serpente do ódio! Como meu coração se rejubila ante sua presença! Como adoro ouvi-la rugindo em minha alma, esmagando tudo o que há de bom em meu ser com sua gigantesca cauda! O quão doce é o veneno que injetas em meu coração com suas presas fatais! Se eu pudesse, dele beberia o dia todo.

Que graça tem o amor, com seus insossos céus de primavera e brisas amenas? Eu pertenço aos carregados céus que prenunciam a tempestade, ao majestoso ribombar do trovão, ao mar revolto sugador de vidas, ao filhote do tubarão e do tigre. Pertenço aos gritos de horror, ao coração perfurado furtivamente, ao sorriso do assassino, à gargalhada do louco.

Ah, humanidade! Jamais conhecerá a felicidade enquanto não souber dos prazeres da fúria e das delícias do ódio e do horror, e jamais atingirá o mais alto nível de desenvolvimento enquanto não reconhecer tais sentimentos como força motriz.

Pois arte é revolta, e sou um artista.

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Erigi um Panteão, e nele coloquei apenas um retrato; no centro do salão se ergue, triunfante e ocupando a parede toda, o sombrio retrato do Montevideano, pálido, com os olhos vácuos e negros refletindo a perversidade, sobrepondo-se a uma paisagem marítima na qual um navio em chamas desliza como uma salamandra no horizonte.

Seria sublime se todos os escritores fossem como você, Lautréamont! Como precisamos de um novo Maldoror nesta Terra, para incutir o belo sentimento da discórdia e do ódio entre os corações humanos! Como precisamos de um homem de visão tão ampla como você! A monotonia do amor impera sobre a literatura, e tudo fede ao perfume aguado do sentimentalismo! Comerei meu chapéu no dia em que alguém cantar tão lindamente sobre a beleza da crueldade como tu cantaste; beleza que poucos afortunados, muito poucos, podem enxergar.

Ofereço-lhe este pútrido salmo em sacrifício, Senhor Deus; e em troca, manda-me teu Maldoror para estraçalhar a todos os pomposos e eruditos pavões da Academia, e trazer-me suas cabeças em bandejas de merda, pois são indignos da prata tocada por Salomé para assassinar o Batista.

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Há muito tempo amei uma garota. E ainda a amo.

Mas, oh, como não queria amá-la! Ela me dá nojo! Quando vejo suas faces tão rosadas e sadias, sinto vontade de dilacerá-las a unhadas e mordidas, até ficarem irreconhecíveis. Quando ela me fita, longa e ternamente com seus olhinhos castanhos e faiscantes, controlo-me para não vazá-los de suas órbitas e brincar com eles em meus dedos, como duas sangrentas bolas de gude. Costumava deslizar lentamente meus dedos por seus cabelos, que sob o Sol pareciam emitir um brilho arroxeado; mas minha vontade era arrancar suas madeixas aos tufos.

Sua voz é uma melodia que deixaria o mais belo dos anjos invejoso, e seu sorriso é uma fileira de pérolas imaculadas; mas não concorda comigo, ó meu leitor, que ela ficaria muito mais bela chorando de dor após eu arrancar todos os dentes de sua boca e montar um lindo colar de rubis? Sempre achei rubis mais lindos que pérolas. E também julgo a melodia do choro mais agradável que a do riso.

Imagino-a dormindo, um de meus passatempos prediletos. Seu peito sobe e desce à medida que ressona, e o barulho de sua lenta respiração enche o ambiente. Chego mais perto e posso escutar seu coraçãozinho batendo… um calmante tum-tum. Uma de suas mãos pende lânguida para fora do parapeito da cama, e a outra repousa em seu alvíssimo ventre. Seu semblante é uma pitoresca definição da palavra “paz”.

E então perfuro seu peito com um punhal, abrindo-lha um rasgão que vai até sua barriga. Seus gritos enternecem meu coração. Oh, harmônica sinfonia! Grite mais alto, minha amada! És bela por dentro e por fora, sabia? O som de tuas entranhas viscosas pulsando embalam meu coração até a mais alta das camadas do Céu. Sempre te achei semelhante a uma boneca de porcelana; quem sabe não és, realmente, feita de porcelana? Quebrar-lhe-ei o crânio a marteladas para descobrir.

Como amo causar-te a dor! Como amo destruir teu ser! Destruíste meu coração, e deixaste-o tão exposto como a deixo agora; massa disforme de órgãos e ossos fraturados.

Mas não julgue-me de todo mau… pouparei teu coração. Tenho piedade ainda, coisa que nunca tiveste. Colocarei-o numa caixinha e deixarei-o em minha mesa, para que eu possa ter sempre um pedacinho de ti perto de mim enquanto lhe escrevo, ó minha musa. E em troca, te sepultarei em meus cantos, que lhe servirão de caixão.

Será a aliança de amor eterno que sempre lhe prometi, —.

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Não se respira mais oxigênio, e sim guerra. Há guerra no olhar de cada homem que pega sua maleta para ir trabalhar, no falar de cada mulher lavando e passando roupa, no respirar de cada soldado marchando, de forma uniforme e semblante pétreo, para os braços de Tânato.

A pequenina Mädchen de pele marmórea, cabelos negros e olhos gélidos mas belos como o Mar Báltico, olha pela janela de sua casa.

Desfile de flâmulas e uniformes perfeitamente alinhados.

Preto, branco e vermelho. Santíssima Trindade da era moderna – há até uma cruz! Um tanto torta e diferente das que estava habituada a ver, mas servia bem a seus propósitos. Era até irônico ver soldados tão bem-arrumados marchando entre escombros e fumaça.

Ela cerra então as cortinas e vai de encontro a seu inseparável piano. Seus dedos pequenos e alvíssimos parecem fundir-se às teclas, e sua alma à música que toca. E sorri, plácida, os olhos bálticos brilhando como gelo, os dedos batendo às teclas com toda a delicadeza de seu ser, apesar do estrépito das botas dos soldados em constante marcha lá fora e da constante ameaça de morrer soterrada com seu piano em meio a fuligem e entulho. Se fosse para morrer, morreria tocando.

Nem mesmo uma guerra pode silenciar a música da alma apaixonada de uma artista. Pois, é o que dizem, a caneta é muito mais poderosa do que a espada.

Vai demorar até a humanidade perceber isto, porém.

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Nas profundezas obscuras do oceano o Leviatã coleia seu imenso e sinuoso corpo serpentino, rasgando a água com sua fúria.

Seus olhos baços e vidrados de peixe perscrutam o ambiente à procura de qualquer criatura movente, enquanto bufa e resfolega com as guelras parecendo caldeiras.

Em vão os peixinhos tentam fugir de seu alcance; abrindo ao máximo suas mandíbulas, a grande criatura traga para dentro de sua goela ignóbil tudo o que vê pela frente, e apenas quando está satisfeita cerra a boca e retorna à sua solidão.

Eu sou como o Leviatã; as trevas de meu ser feito de ódio engolem tudo de bom que tocam, e devo permanecer nadando no oceano negro de meu coração solitário por toda a eternidade.

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Não faço meus poemas por dinheiro ou prestígio; tais efemérides já deixaram há muito de me interessar. “Vanitas vanitatum”, como já dizia o Sábio Rei.

Cada um de meus poemas é uma oferenda que deposito a teus pés, ó minha musa; um salmo que vem das profundezas de minha alma.

Talvez os enxergue apenas como pedaços de papel, mas por trás daquilo que vês apenas como palavras frias escondem-se fragmentos de meu coração, e misturado ao que aparenta ser apenas tinta de uma simples caneta está o sangue rubro, inflamado e pulsante de meu coração; minha essência vital, doses de minha alma. Pode não ser muito, mas é tudo que tenho.

Sempre haverão poetas de maior fortuna e fama que eu; ao passo que morrerei pobre e desconhecido, à margem da sociedade e até mesmo de meus companheiros, como sempre suspeitei que iria. Mas não trocaria o sorriso e as graças de minha musa, que são o melhor pagamento que alguém poderia me ofertar, por quaisquer vaidades que estes escritores de meia-tigela da atualidade se vangloriam de ter.

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O mundo não é um conto de fadas, mas o místico e longínquo país de Herjned parecia ter brotado de uma página das Mil e Uma Noites.

Minaretes erguiam-se imponentes no ar, dividindo espaço com suntuosas mesquitas; procissão de estrelas e luas crescentes.

Homens usando turbantes e longas barbas caminham pelas ruas, recitando em voz alta versículos do Alcorão. Acompanhando-os estão suas inúmeras esposas, enigmáticas belezas ocultas em burcas.

No mercado, uma algazarra de vozes se mistura entre os aromas fortes de incensos, temperos e perfumes variados.

Nas tavernas, diáfanas figuras de dançarinas do ventre podiam ser vistas entre a fumaça dos narguilés. Tudo era riso e pândega.

Mas tudo pareceu cessar, pela primeira vez em muito tempo, quando — lá desembarcou com seu demônio.

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Desde que — se foi certifico-me de fazer com que seu quarto fique do mesmo jeito que ela o deixou.

O imenso espelho de sua penteadeira, na frente do qual ela passava horas escovando os sedosos cabelos negros à perfeição, permanece límpido e cristalino como ela gostava.

Todas as suas roupinhas, mais dignas de vestir uma boneca de porcelana que um ser humano, passadas e guardadas em seu armário, exalando aquele seu característico perfume tão querido ao meu coração.

Os brinquedos com os quais ela não brinca mais, mas que ainda assim zelavam por seu sono à noite, e seus inúmeros livros, estão intocados e alinhados na estante.

Cuidado particular vai à cama, grande e espaçosa, na qual nos sentávamos e, segurando minhas mãos, ela deixava que eu fitasse seus glaciais olhos nórdicos, nos quais via refletidos os espectros das auroras boreais de sua terra natal – olhos que, talvez, jamais voltarei a ver enquanto viver –, e até a noite cair ela me iniciava nos mistérios de Freyja e contava-me histórias de valorosos guerreiros vikings.

Outrora um santuário no qual repousava a minha alegria, o quarto de — é agora uma casca vazia que reflete minha alma – mas ainda assim gosto de certificar-me que fique do mesmo jeito que ela o deixou, caso um dia ela resolver voltar a mim.

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Em meio a goles de vinho tinto e lufadas de ópio gosto de reerguer tempos mortos e já putrefatos de suas tumbas no mais fundo do fundo da gruta repleta de aberrações que é minha mente.

Oh, quão doces eram meus tempos de infância! Ainda me lembro daquelas planícies onde os pomares se curvavam eternamente ao maligno sopro de Cécias.

Lembro-me de recolher as tulipas que cresciam das tripas dos corpos em decomposição com —.

Minha maman, de cabelos como caudas encaracoladas de serpente tão negras quanto breu e olhos frios e penetrantes, sorria como uma vampira enquanto encantava corvos e morcegos como filhotinhos de cachorro para meu divertimento.

Bailava com —, minha gentil namoradinha, sob a luz do luar no cemitério, ao som dos uivos dos lobos e almas penadas.

Desenhava símbolos abomináveis na areia úmida e viscosa da praia com —.

Subia no topo dos cadáveres para recolher maçãs com —, que cantava docemente antigas canções francesas enquanto trabalhávamos.

E no fim do dia retornava aos braços de maman, minha boca gotejando com restos de ninhos de gralhas e a roupa suja de terra dos sepulcros.

Mas estes dias há muito tempo se acabaram…

Tal como minha sanidade mental, perdida em meio a uma espessa névoa de vinho tinto e ópio.

***

[Nada mais consegui compreender das páginas subsequentes, e calculei que Mihai de fato perdera irreversivelmente a sanidade a partir deste ponto.]

[Continua no Cap. IX]

Galaktion Eshmakishvili
Enviado por Galaktion Eshmakishvili em 17/02/2014
Reeditado em 20/10/2022
Código do texto: T4695055
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