ESCURIDÃO - 2º Capítulo
Enquanto Catarina penteava-se em frente ao enorme espelho oval da penteadeira,nem percebeu o vulto que entrou pela porta quase aberta, esgueirando-se pelos moveis com uma lamparina à óleo em mãos, chegou por trás de Catarina e tapou-lhe os olhos.
-Quem é, é o Lobisomem?
-ohoho! É mula velha sem cabeçaaaa!
-Tiaaa!
-Olá querida.
É tia Gracileuma, velha negra da fazenda que batizou o barão e o ensinou ler e andar. Criatura boa e sábia, sempre com a boca cheia de conselhos “Não vá comprar este gado que está doente!” ou “Veja se não te esqueça dos contratos na cidade!”. O barão a venera como se ela fosse sua própria mãe. Tia Gracileuma são os olhos e os ouvidos da fazenda, mesmo em seus redondíssimos 70 anos, está em plena atividade mental.
Tia Gracileuma toma delicadamente o pente de Catarina e passa a penteá-la.
-Eu ouvi parte da conversa.
-Que parte - contrariada.
-O suficiente.
Catarina vira-se para tia, quase chorando.
-A senhora não pode permitir que meu pai me enxote daqui desta maneira. Não é junto, passei a minha vida inteira neste lugar...
Silêncio no quarto, Catarina lembrou-se do dia em que perdeu a virgindade com o filho de um dos feitores quando tinha dezessete anos, o jovem Daniel, sedutor e inteligente. Aconteceu numa noite em que o jovem Daniel entrou na cozinha da fazenda, momento em que todos jantavam silenciosamente à luz de lamparinas, informou ao barão que os índios invadiram a plantação e estavam ateando fogo em todos os pés de café, tia Gracileuma estava em Petrópolis, fora tratar de um assunto de um testamento de uma prima que falecera. O barão saltou quase por cima da mesa, quase levou a colher da sopa na boca. Os dois ficaram sozinhos, Daniel e Catarina, entreolharam-se, ficaram ali, quietos. Ele com aquela cara de menino e o corpo de homem, e ela, coração inocente e ardente. Passaram a noite juntos no quarto de Catarina, o barão só voltou de madrugada, pois assuntos na cidade necessitavam urgência, decretar registros, para que o ato dos índio pudessem ser considerados ilegais.
Depois dessa, primeira noite, Catarina chorou por dias, com medo de estar grávida, felizmente(ou infelizmente?), não foi o momento, mas também, sentiu que, se estivesse grávida, cuidaria daquela criança com todo amor e carinho do mundo, já que feita com amor, cuidá-la-ia com amor.
-Minha filha...-começou a tia, com a voz delicadíssima, tentando confortá-la-, quem sou eu para contrarias as ideias de teu pai, ele turrão, você mais do que eu sabe disso.
Catarina baixou os olhos, como que aceitando, voltou a encarar sua própria imagem no espelho, emoldurando a tia com a lamparina nas mãos e seu próprio rosto. Tia Gracileuma tornou a penteá-la novamente, lentamente.
-Não posso te prometer nada, mais...-um sorrido se abriu no rosto de Catarina- posso tentar uma conversinha com teu pai.
Catarina virou-se e abraçou a tia pela cintura, que retribuiu, envolvendo-a.
-Só não esqueça que ele te ama muito.
-Assim como ele amava a minha mãe?
Tia Gracileuma suspirou fundo, disse:
-Tua mãe era uma mulher muito culta, ele só quer que você seja como ela.
-E como ela era? – Curiosa.
-Sua mãe?
-Não estamos falando dela?
-Ela era um anjo, a graça dela era o alento de todos na fazenda, só a presença dela já amenizava o parto das negras.
-Verdade?
-Verdade, ela era chamada todas as vezes que uma criança nascia, era a madrinha de todas.
Catarina abriu uma caixinha de porcelana sobre a penteadeira e pegou de lá de dentro um camafeu, observou-o meticulosamente, enquanto a tia a penteava.
-Tia...
-Hum...
-Como ela morreu?
Gracileuma parou o pente, pousou-o sobre o ombro de Catarina, as duas olharam-se através do espelho. A tia sentou-se na cama.
-Se teu pai descobrir que eu estou lhe falando sobre tua mãe ele me degola.
Catarina ficou enfurecida. Virou a cadeira para tia.
-Como assim? O que houve para ele sentir tanto ódio dela?
-Não posso dizer, não quero que você saiba por mim-olhando para o lado.
Catarina voltou-se a encarar a imagem da tia contra o espelho, debruçou-se na penteadeira e de seus olhos verteram tristezas contidas a muito tempo. Tia Gracileuma foi até ela, afagou seus cabelos lisos.
-Olhe só, às vezes, é muito melhor não saber de certas coisas, pois estas podem nos fazer mal, mais que isso, pode nos atormentar a vida inteira.
O choro de Catarina foi apaziguando-se pouco a pouco. As lágrimas formaram uma liga com o pó de arroz, que escorreu e caiu sobre o vestido de Catarina.
-E, além do mais, você já é quase adulta, faltam apenas três dias para o seu aniversário dedezoito anos.
-Nem me lembre tia, fico atarantada com a ideia de ficar mais velha.
-Velha estou eu querida - disse tia Gracileuma, puxando a pele do rosto com as duas mãos, esticando as rugas - ,fiquei sabendo que existe um produto que é aplicado embaixo da pele, um liquido que a faz esticar feito couro novo, vou mandar teu pai trazer de Petrópolis para mim. Será que eu ficaria bem sem rugas, o que acha? - Esticou-se para Catarina, fazendo caretas.
E as duas caíram numa gargalhada profunda, fazendo a tristeza confundir-se com alegria.