ESCURIDÃO - 1º Capítulo

-1-

O Barão acordou no susto de um profundo sono, formou-se uma ponte de saliva entre o céu e a terra. Desdebruçou-se da escrivaninha, olhou em redor para ver o que fazia antes de ter sido enfeitiçado pela imunda ninfa do sono.

Uma carta, estava escrevendo uma carta. Para quem? Não conseguia se recordar, apenas o vocativo estava escrito no inicio da página amarelada “Querido amigo...”. Amassou o papel e arremessou-o pela janela, esbarrou na caneta-tinteiro, segurou-a pela ponta do rabo de pavão. O negro Fulgêncio, que estava rastelando o gramado, gritou:

-Ô!

O barão correu até a janela, desculpou-se com o negro, que saiu resmungando algo em sua extinta língua nativa. Debruça-se no parapeito da janela, observando o fim de suas terras, que são muitas, vê os negros trabalhando pesado, com o sol no cocuruto a lhes queimar a saudade da terra Mãe. Os pés de café carregados enfeitando a esplanada sem fim, como um esplendor de uma vida, felicidade para poucos, tristeza para muitos, sempre foi assim, essa é a lei ,ai que divina, essa é a lei pura e universal.

Cataria entra, vestida num brocado delicadíssimo azul com detalhes verdes à moda francesa, em alta nesta época, que ronda entre 1912 e 1913. A moça não chama pelo pai, fica a observar sua postura, remexendo os quadris pra lá e pra cá, feito uma mucama velha. Ela tenta conter o riso, o barão assusta-se, um pouco envergonhado pela posição na qual se encontrava.

-Filha...

-Papai...-entre risos.

O outro sentou-se em sua cadeira. Catarina permaneceu em pé.

-Você já pensou na minha proposta?

-Não – disse a moça, seca e ríspida, mudando de humor da água para o vinho.

-Pois deveria, estudar Direito em Coimbra não é coisa pra qualquer moça, você ainda deveria me agradecer por eu não te forçar a casar-te com qualquer moço rico. E olha que pretendentes...-Torcendo os lábios, para desestabilizar a filha- não estão em falta.

-Eu disse que iria pensar e é o que eu estou fazendo. O senhor fica empurrando com tanta pressa essas coisas na minha cabeça, que eu nem tenho tempo de lhe dar respostas.

-Acontece, minha filha, que eu nem tenho tanto tempo assim- levantou-se, cruzou os braços, começou a andar de um lado para outro. Um semblante preocupado no rosto, deixando suas rugas ainda mais acentuadas. Preocupado ele parecia muito mais velho.

Catarina tentou segurar o assunto, não conseguiu:

-Não é porque minha mãe formou-se lá que eu vou ter de seguir exatamente os passos dela.

O barão corou-se, ficou estático, lançou um olhar furioso para filha.

-Vou fingir que eu não ouvi isso - disse o barão, levantando as mãos para o céu.

-Ih! Começou...

-Você é ingrata, não vê que eu quero o seu bem?! Eu só quero que você estude, não tem nada a ver com a sua mãe.

-Se não tem nada ver, porque eu tenho que estudar no mesmo lugar que ela, sendo que no brasil existem excelentes universidades...e mais, porque tem que ser direito, não pode ser medicina?

-Minha filha, veja bem, advogados estão ganhando muito mais que médicos hoje em dia, e além do mais, vou precisar de você para continuar a administrar esta fazendo no futuro, e para isso você terá que saber das leis, mais que isso, você as aplicará!

-Não pai, quem aplica as leis são os Juízes.

-Está vendo só, você já até entende do assunto.

Catarina suspirou , olhou para os retratos sobre o piano, em um deles, estava a mãe com ela no colo. Voltou-se para o instrumento, com as teclas amareladas, alienadas no tempo.

-Tia Gracileuma disse que mamãe tocava divinamente.

O barão deixou-se cair sobre a cadeira.

-A tia Gracileuma disso o que?

-Disse que a mamãe...

-La vem aquela velha chafurdar na lama do cemitério de novo.

-Papai...-disse Catarina, ofendida.

-Minha filha, não gosto de desenterrar defuntos, na minha consepção, eles param de ser motivo de conversa a partir do momento que passam a ser o que são, DEFUNTOS!

Ele colora os óculos e começa a remexer na papelada.

-É...acontece que o defunto em questão foi minha mãe, sua esposa!

-Falecida!- levantando o indicador.

-Minha mãe! Mãe da sua única filha, que eu saiba...

-Que insinuação mais descabida ein...Catarina segunda.- disse o barão, sorrindo para filha.

-O senhor sabe que eu não gosto que me chame assim, tenho ódio dessa czarina.

-Não diga isso...

-Pai, não me faça mudar de assunto. Eu quero saber mais sobre a minha mãe.

O barão fitou-a silenciosamente, talvez procurando traços da falecida, e, depois de encontrar muitos, disse:

-Minha filha, sua mãe...

O negro Fulgêncio na saleta, esbaforido, enlameando todo carpê.

-Sinhô, sinhô, o coroné ta aí, ele qué discuti com vosmecê aquelas terra sem fronteira demarcada...

O barão suspirou profundamente, levantou-se e saiu apressado, passou pela sala de visitas, vestiu o chapéu de palha e tomou os chicotes para cavalgadura.

Catarina e o negro Fulgêncio o observavam da porta da saleta. O barão toca na maçaneta da porta e volta-se para Catarina:

-Depois conversamos.

Catarina fica sozinha no cômodo, imersa em seus pensamentos.

Bego
Enviado por Bego em 13/01/2014
Reeditado em 28/01/2014
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