Nos domínios da Morte-em-Vida: Viagem por Kishinev (Cap. VII)
Se fosse-me dada tal honra, imortalizaria a todos estes meus amigos do jeito que merecem nestas páginas de meu relato – mas na grande maioria das vezes não fui ao menos capaz de discernir-lhes os nomes. Dentre todas as experiências que vim a ter em meio aos bêbados de Kishinev, porém, uma delas provocou-me um assombro que nada nem ninguém havia me proporcionado antes, e ainda hoje ao recordar-me sinto um pesar inexprimível.
Próxima ao supracitado Parque Pushkin fica a Praça da Vitória, famosa por seus dois maiores marcos que são a Catedral da Natividade e o Arco do Triunfo. A primeira é uma agradável igreja branca, elegante na simplicidade de sua fachada dórica e de sua cúpula; minha fé em Deus começara a abalar-se naquela época, então nunca a adentrei, coisa da qual muito me arrependo hoje, independente de minha fé – ou falta dela. Logo em frente à catedral está o Arco, que não é tão conhecido (ou até mesmo belo, ou imponente) quanto seu sósia francês, mas compensa sua falta de atrativos pelo enorme valor histórico imbuído em seus alicerces. Construído na década de 1840 para celebrar o aniversário da vitória russa sobre os turcos na guerra de 1828, é dotado de um relógio e um sino fabricado com o metal de canhões turcos capturados durante o conflito e derretidos para este propósito posteriormente.
Era uma manhã fria. O céu cinzento combinava com meu humor – tudo indicava que haveria de chover dentro em breve. Voltava para meu quarto depois de um de meus costumeiros passeios no parque e, como sempre, o Arco fazia parte de meu percurso. Achei que não precisaria de um guarda-chuva, pois chegaria a tempo no hotel, mas num contrappasso autoinduzido sempre acabo por perder-me em meus pensamentos, tornando-me alheio do mundo ao meu redor e, para minha extrema irritação, sujeito às intempéries da Natureza. Maldigo a mim mesmo por ser tão distraído e prometo trazer o guarda-chuva da próxima vez enquanto tiro as roupas encharcadas – mas quando a próxima vez de fato chega esqueço-me de minha promessa e o ciclo recomeça, inalterável.
Desta vez não foi exceção. Começara a chover a cântaros e pensei que realmente deveria ter pego o guarda-chuva antes de sair – e que não o esqueceria da próxima vez. Estando eu próximo ao Arco, resolvi refugiar-me sob ele até que a chuva amainasse; mas não estava desacompanhado, como pude bem ver.
“Que vieste fazer em meu lar, erigido pelas mãos de meus triunfos?”, inquiriu-me uma voz masculina roufenha. Um hálito de vodca e nicotina, misturado ao odor corporal de quem não se banhava há meses, impregnava-me as narinas.
“Não pretendo te fazer mal”, respondi, assustado. “Apenas quero proteger-me da chuva…”
“Meu amigo!”, gritou o homem, sem que eu pudesse distinguir se estava entusiasmado ou aborrecido. “Estou contente de receber-te em minha casa! Os meus lauréis a construíram a mim – sou poeta!”
Encarei-o com um pouco mais de atenção, ainda sem saber se devia temê-lo ou não; meu companheiro (ou anfitrião) aparentava ser um homem na casa dos 50 anos, de cabelos raspados e uma penugem cinzenta a cobrir-lhe o rosto. Os olhos eram baços e injetados, típicos de um alcoólatra, mas sua expressão facial tinha um certo ar de amabilidade e altivez camuflado sob as distorções da embriaguez – talvez fosse alguém instruído de fato, antes de render-se ao vício. Vestia uma jaqueta preta que já vira dias melhores sobre uma camisa que outrora devia ter sido branca, calças surradas e sapatos cujas solas estavam a ponto de desintegrar-se; numa das mãos, tinha uma garrafa de vodca. Tomado pela curiosidade, tentei entabular uma conversa com ele.
“Poeta?”, perguntei-lhe.
“Sim!”, respondeu-me com uma alegria quase que demente. “Sou poeta e esta é minha casa, construída por meus triunfos. Querem roubá-los de mim, mas nunca haverei de permiti-lo! Não pretendes roubar meus triunfos de mim, pretendes?”
“Claro que não…”, declarei timidamente. Tinha medo do que poderia acontecer se eu o zangasse. “Eu sou poeta também! Somos colegas de ofício, então?”
Ele me deu um forte abraço, repleto de genuína afeição e do qual teria gostado mais se não fedesse tanto. “Oh, rapaz! Consigo enxergar teu futuro!”, exclamou após soltar-me. “Apenas de ver-te sei que terás uma carreira brilhante! Se continuares a seguir por este caminho, haverão de construir-lhe uma morada muito mais bela do que a minha!”
“Geralmente costumam ler meus escritos antes de dizerem-me isto… Mas agradeço-o.”
“Veja bem”, disse-me, apontando um dedo encardido ao meu rosto. “Houve um tempo no qual eu era poeta, tinha um amor e tinha uma família. Tinha vários triunfos! Com eles me construíram esta casa. Minha família fez com que meu amor se perdesse de mim! E queriam fazer com que perdesse meus triunfos! Meu amor agora está na Lua… Sabia que tudo aquilo que se perde na Terra vai parar na Lua?”
Suas palavras vieram a lembrar-me de Nelly, e senti um doloroso aperto no coração. Por que a Lua, com seus objetos e pessoas lá perdidos, sempre apareceria para me assombrar quando eu menos esperasse?
“Meu amor e meu juízo estão na Lua, mas eu não deixarei que meus triunfos sigam para lá também”, continuava o louco, não mais falando diretamente a mim e sim consigo mesmo. “Eu sou poeta!”
Nisto ele começou a chorar inconsolavelmente, e sentou-se no chão cobrindo o rosto com as mãos. “Queria matar a todos…”, repetia. Qualquer temor que viesse eu a ter dele foi substituído pela pena – o sofrimento daquele homem me dilacerava. Pus-lhe a mão carinhosamente no ombro, e lhe ofereci conforto até que se recompusesse.
Depois de alguns minutos assim, ele se desvencilhou bruscamente de meu toque, e com um movimento desesperado tirou de um dos bolsos de sua jaqueta estropiada um caderno ensebado.
“Cuide de meus versos”, disse, estendendo-o a mim. “Se roubarem meus triunfos, poderás guardá-los. Querem retirar-me meus triunfos!”
Tomei o caderno de sua mão. “Obrigado. Quer vir comigo ao hotel onde estou hospedado? Pode me fazer companhia enquanto estiver aqui…”, propus eu. “Isso se prometer que não beberá tanto…”, acrescentei em voz mais baixa.
“Não posso!”, respondeu-me como se o houvesse ofendido grandemente. “Queres que me roubem minha casa comigo fora?”
Um breve momento de silêncio.
“Poderia dizer-me seu nome?”, perguntei.
“Mihai.”
“Foi um prazer conhecê-lo, Mihai.”
Prosseguimos calados contemplando a chuva. Fui o primeiro a romper o silêncio, quando parou de chover.
“Necessito ir. Fique bem, Mihai. Virei para te visitar mais vezes.”
“Ao levantar para um novo dia, não chores por teres pesares. Siga o exemplo do Sol, que sempre nasce sorrindo!”, respondeu ele à guisa de despedida. Enquanto me afastava, julguei que o ouvira recomeçar a chorar.
Seguindo para casa não conseguia pensar em outra coisa que não a sina de Mihai. Como permitiram que aquela mente, outrora tão bem cultivada, se degenerasse tanto? Se a história de Mihai fosse de fato verdadeira, tal como eu ele não tivera boas relações com seus familiares; um de meus maiores medos, inclusive, era o de ser deserdado pelos meus pais e definhar de corpo e mente reduzido à indigência – entretanto, mesmo que isto viesse a acontecer, só estaria seguindo os passos dos grandes vates que me precederam: sendo educado por Camões, Chatterton, Otway, Tasso, Spenser estava habituado com a perspectiva de morrer na penúria, passando fome, trancado num manicômio ou por suicídio – o que cogitei várias vezes mas, “não tendo coragem de antecipar a partida”, prosseguia a existir forçosamente. Nas palavras de Wordsworth, “We poets in our youth begin in gladness, but thereof comes in the end despondency and madness”.
“Meu pobre amigo…”, disse eu comigo mesmo, os olhos marejados de lágrimas.
“Por que te compadeces dele?”, sussurrou-me Scarbô aos ouvidos, com um sardônico e asqueroso sorriso. “Guarde tuas lágrimas para chorares por ti mesmo! Haverás de acabar feito ele!”
Passei o resto do dia em extremo estado de agitação e, à noite, não consegui dormir.
[Continua no Cap. VIII]