CAPÍTULO 18 - ALUCINADAMENTE ALICE

18.

(ATENÇÃO: LEIA OS CAPÍTULOS ANTERIORES PARA ENTENDER A HISTÓRIA)

Ganhei quinze dias de folga no final do ano para passar o Natal e o Réveillon com minha família. Por intermédio de uma professora que gostava muito das minhas redações, consegui um emprego melhor do que na biblioteca. A partir de janeiro, eu começaria a trabalhar em um jornal local, escrevendo pequenas notas. O salário era melhor e maiores as possibilidades de aprendizado.

Enquanto arrumava as malas, ensaiava mentalmente a conversa que teria com Paulo. Nos últimos tempos, eu percebia que ele vinha se afastando de mim aos poucos, enquanto eu percebia aos borbotões.

Minha intenção era tornar viável a possibilidade de nos encontrarmos com mais frequência, mesmo que eu tivesse que abrir mão de horas de descanso ou de estudo. Agora, com mais dinheiro, eu poderia viajar de vez em quando para vê-lo.

Também havia em mim uma urgência em estar com Isabella. Logo depois do casamento, ela ficara grávida. Desde então, as cartas e os telefonemas diminuíram. Queria curtir um pouco esta fase com ela, além do mais, esperava uma oportunidade para conversarmos a sós e sem pressa. Eu continuava achando que minha amiga escondia algo importante.

O meu contato maior era com minha avó. Nunca ficávamos mais de uma semana sem conversar. Nancy estava envelhecendo e sua saúde começava a pagar o preço de tantos anos de existência. Eu me sentia triste e culpada por não poder acompanhá-la nas consultas médicas nem ajudá-la a tomar corretamente os medicamentos prescritos, enfim, cuidar dela no dia a dia. Mas como fazê-lo morando longe?

Meus pais foram me buscar na rodoviária.

Depois do almoço, avisei minha mãe que iria à casa de Paulo para tentar estreitar nossos laços afetivos. Falei isso na esperança de que ela não só aprovaria, como também ficaria satisfeita e orgulhosa com minha decisão.

Para a minha surpresa, a reação esperada não veio. Sem nenhuma compaixão ou preparação introdutória, ela disse:

- Eu sabia que isso ia acontecer. Se essa é sua intenção, não vá. É tarde demais, absoluta perda de tempo. Paulo está namorando Andréa agora. Pois bem... Você não escolheu seus estudos?

E continuou sem pestanejar:

- Alice, Paulo veio aqui uns quinze dias atrás para conversar comigo e com seu pai. De fato, é um bom rapaz. Pediu-nos desculpas por romper o compromisso com você. Disse que a ama muito, mas que procura uma moça com quem possa casar em breve e você ainda está no começo da faculdade. Quis lhe contar, mas achou inadequado fazê-lo por telefone ou carta. Virá procurá-la para conversar pessoalmente.

Sem saber o que fazer ou dizer, fiquei parada no meio da sala, olhando para os meus próprios pés. Se vovó já tivesse chegado para as festividades, eu teria corrido para o seu colo e, certamente, além de acolher minhas lágrimas e dores, ela teria usado suas palavras e experiência de vida para me consolar.

Quando consegui me livrar da inércia, abri a porta e caminhei a esmo pela cidade por um tempo que não sei precisar. Depois passei em uma lanchonete, comprei algumas guloseimas e resolvi visitar o Sr. Wilson no cemitério. Fazia tempo que eu não ia lá.

As sepulturas ficavam entre árvores robustas, flores de todas as cores e pássaros cantando alegremente. Era um lugar cheio de vida e de beleza que escapava ao olhar humano desatento.

Fiquei longos minutos apenas contemplando a natureza, respirando um cheiro verde que invadia os pulmões, espalhava-se pela corrente sanguínea e me acalmava.

Enquanto distribuía os doces pelo túmulo, olhava para a foto do Sr. Wilson e pensava que conselho me daria, se estivesse vivo.

Atrás de mim, um barulho de galho quebrado interrompeu meus devaneios.

- Que surpresa! Pelo visto meu pai está tendo um dia agitado – disse David com uma careta jocosa.

E mais uma vez fiquei ruborizada diante de seus olhos e me odiei por isso.

Ao ver os doces espalhados, soltou uma gargalhada de trovão como a do pai, fazendo os passarinhos voarem de medo.

- Alice, se papai estivesse vivo, você iria matá-lo de diabetes! – falou revirando os olhos para cima.

- Desculpe, sei que parece estranho, mas tem um significado especial para mim - foram as melhores palavras que achei diante do constrangimento que estava sentindo.

- Mocinha, sua cara não está nada boa. Parece que não sou o único com problemas – disse enquanto sentava-se ao meu lado.

- O que trouxe você aqui? – perguntei com medo de estar sendo indiscreta.

- Vim pedir perdão. Tornei-me um homem fracassado. Meu pai achava que liberdade era o melhor tesouro que podia me dar – David colocou o rosto entre as mãos e deu uma parada repentina.

- Acredita que ele tenha errado? – indaguei surpresa.

- Acho que ele foi ingênuo. A liberdade, de fato, não existe. Somos prisioneiros de nossos vícios, de nosso material genético, das regras impostas pela sociedade – respondeu olhando para o nada.

- Não sei o que dizer. Talvez você tenha razão. Não estou em um bom dia para filosofar, me desculpe.

- Sabe, cresci sem limites, achando que podia ter tudo o que eu queria. O que consegui? Nada! Desde cedo, aprendi a viajar, gastar dinheiro, jogar, beber e ter lindas mulheres. Em poucos meses, estou conseguindo destruir o patrimônio que meu pai levou uma vida para conseguir.

A noite vinha chegando e tingia o cemitério de cores plúmbeas.

David levantou-se e ofereceu seu braço como apoio. Caminhamos em silêncio até o carro.

- Posso lhe oferecer uma carona? Sei que Paulo está com outra garota agora. Sinto muito, mas confesso que fiquei um pouquinho feliz com a notícia. A propósito, tive uma idéia depois deste encontro inusitado. Acho até que deve ter sido uma traquinagem do meu pai. Escuta, Alice, você quer namorar comigo? – disse quase sem respirar.

Eu gostaria de ter dito sim, no entanto, não sabia se era certo fazê-lo. David era patrão do meu pai e eu nem sequer tinha me separado direito de Paulo. Tudo bem que ele já tinha outra, mas ele era homem. Minha mãe me fez crescer com a impressão de que mesmo quando eu tentava fazer tudo certo, ainda assim eu fazia tudo errado.

- Aceito a carona, obrigada. A resposta dou depois. Preciso pensar.

- Pense com carinho, por favor – disse com os olhos cheios de excitação.

David abriu a porta do carro e, para que eu pudesse sentar, teve que retirar as garrafas de bebida que ocupavam o espaço do banco do carona.

Lady Blue Eyes
Enviado por Lady Blue Eyes em 24/10/2013
Reeditado em 22/09/2015
Código do texto: T4540503
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