Nos domínios da Morte-em-Vida: Viagem por Kishinev (Cap. VI)

Travei amizade com grande parte dos ébrios (os que fossem inofensivos) da cidade; sempre foi uma qualidade minha, ou, como querem assegurar-me alguns, um defeito, conseguir comunicar-me muito mais facilmente com os marginais da sociedade, os delirantes, os não conformistas – que, por sua vez, tratam-me com muito mais civilidade do que meus compatriotas que vivem gabando-se de seu “juízo”. Em quase todos os casos, tais pessoas um dia tiveram uma vida minimamente satisfatória, mas vieram a cair de seu estado de graça por um motivo ou outro: amores não correspondidos, esperanças destruídas, incapacidade de batalhar contra seus vícios, ou algum outro revés advindo da Fortuna e do fato de Deus ocasionalmente dar a certas pessoas fardos muito maiores do que conseguem carregar. Criou-nos à sua imagem e semelhança, mas nossa natureza é limitada comparada à divina; aguenta as emoções até certo ponto, vindo a ruir em suas fundações se dele ultrapassa – desde o primeiríssimo Werther que tal o constatou, quantos mais não seguiram em seu encalço?

Tratei de modo cortês todos aqueles que me foram simpáticos; dividíamos doses de vodca e cigarros de má qualidade em esquálidas tavernas, ríamos (ou chorávamos) daquilo que nos oprimia o coração, aplaudiam-me os poemas – mesmo que não os compreendessem – e encorajavam-me com seus chistes rudes, porém bem-intencionados. Devido a meu caráter irrequieto, dediquei-me ao estudo de todo e qualquer capricho que viesse a pairar ao redor de meu cérebro: feito uma esponja, absorvi um pouco de tudo sem fiar-me com disciplina em nada. Perscrutei livros de filosofia, ocultismo e – por obrigação, não interesse – jurisprudência; além da poesia tentei dedicar-me à pintura e ao desenho, interrompendo minhas incursões em definitivo ao perceber que cada uma de minhas produções artísticas era uma blasfêmia ao ofício do venerável São Lucas, e não muito tempo depois optei pelo aprendizado de línguas.

Decorei inglês (único idioma no qual vim a tornar-me fluente) por necessidade, um pouco de francês por vontade e os rudimentos mais básicos do russo por vaidade – o que, no fim, provou-me ser algo completamente benéfico, pois o russo servia como lingua franca não apenas onde me encontrava, como também em vários outros países vizinhos. (Meu conhecimento de romeno, a língua nativa, resumia-se nas palavras “obrigado”, “anseio” e “terra”.) Comunicava-me com aquelas almas perdidas de modo fragmentário devido à barreira de idiomas, e elas respondiam-me de modo igualmente fragmentário de acordo com o que seus cérebros danificados em maior ou menor grau lhes permitiam; mas conseguíamos nos compreender feito amigos de longa data, pois qualquer sentimento compartilhado de maneira altruísta entre os homens (seja ele o amor, o pesar ou qualquer outro), independente de seus lugares de origem, culturas ou idiomas, não conhece obstáculos.

[Continua no Cap. VII]

Galaktion Eshmakishvili
Enviado por Galaktion Eshmakishvili em 23/10/2013
Reeditado em 20/10/2022
Código do texto: T4538966
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