Nos domínios da Morte-em-Vida: Viagem por Kishinev (Cap. V)
Kishinev foi erigida às margens do rio Bâc, tributário do Dniester. Numa explicação deveras convincente de por que o lugar era tão pesaroso, o rio foi o literal fruto de lágrimas.
De acordo com uma antiga lenda, em distantes tempos antediluvianos quando o homem coexistia com aquelas criaturas que hoje recheiam as páginas dos contos de fadas, os humanos e os gigantes viviam em conflito, e a população de gigantes já começava a ficar escassa naquela região. Certo dia, uma jovem giganta – que ainda nunca tinha visto nenhum humano em toda a sua breve vida – avistara um homem, levando consigo dois bois amarrados por uma corda. Ante o ocorrido, voltou correndo para casa a fim de contar à mãe.
“O que viste foi um homem, minha filha”, explicou-lhe a mãe gigante com carinho, “mas não se deixe enganar por seu tamanho diminuto. Os homens são nossos inimigos, e querem ferir-nos a todo custo; tanto é que hoje em dia nós gigantes somos pouquíssimos. Mantenha-se longe dele, minha querida, e de todos os outros!”
Típico a todas as crianças, sendo elas prole de gigantes ou não, a garota não deu ouvidos às admoestações da mãe; tomando aquele homem como a personificação par excellence da raça humana, saiu ela à sua procura novamente, intencionando destruí-lo com toda a infantil fúria inerente a uma criança contrariada. Dias e dias se passaram, e provando-se a aventura infrutífera, a garota sentou-se e começou a chorar; numa metamorfose digna da pena de um Ovídio, seu corpo todo veio a esvair-se, misturando-se com as lágrimas. O fluxo da água, por justiça poética, foi delineando-se até encontrar o homem (e seus bois), afogando-os – posteriormente, o rio foi batizado de Bâc, em referência aos bois (por motivos que tanto eu quanto a lenda desconhecemos, tendo eles desempenhado um papel tão pequeno em todo o conto), e ofereceu um pretexto aos humanos para aniquilar definitivamente todos os gigantes que habitavam ali.
Fazendo jus às suas lacrimosas origens, as águas do Bâc são negras, estagnadas; nenhum peixe, nenhum anfíbio ousa singrá-las. Durante a época de chuvas, o rio é propendente a transbordar, afogando a cidade em pesares do passado e tentando, em vão, lavá-la das nódoas do presente. Sunt lacrimæ rerum! Até as coisas têm pelo que chorar…
Lembrei-me de ter pensado quase a mesma coisa em São Paulo, tanto tempo antes, ao me expor pela primeira vez à tímida garoa paulistana e contemplar pessoalmente o miasmático curso do Tietê, tão inóspito e insalubre quanto uma exata réplica do Flegetonte. Naquele tempo, quando eu ainda tinha Nelly, como dois feiticeiros conseguíamos transmutar tudo aquilo nas quimeras mais encantadoras; sem ela, enxergava tudo aquilo que já era naturalmente feio com feiura redobrada. Tentei imaginar um lindo sonho sentado às margens daquele rio malfadado, mas só consegui derramar uma lágrima repleta de Nelly em suas águas, acrescentando ainda mais ao fardo de sua função de portar consigo todas as lágrimas que já foram um dia choradas. Irmãos em desventura, o Tietê era o Flegetonte; o Bâc era o Cócito.
Melpômene surgiu para consolar-me, e dando vazão às minhas aflições do único modo que sei, escrevi o seguinte soneto:
***
SONETO AO RIO BÂC
Ao mais negro destino estavas fadado;
Ainda mais negro que tuas águas estagnadas.
Nos já longínquos tempos dos contos de fadas,
Por lágrimas teu curso foi delineado.
E hoje neste país tão triste situado,
Nesta cidade das mais amaldiçoadas,
Quantas mais lágrimas não foram misturadas
A este teu fardo, naturalmente pesado!
Minhas próprias haverei de acrescentar
Às tuas águas, e que a consolação
Encontremos quando a jornada acabar.
Ó Bâc, da tristeza humana guardião!
Que vivalma jamais venha a profanar
Os segredos ocultos em teu coração!
[Continua no Cap. VI]