Nos domínios da Morte-em-Vida: Viagem por Kishinev (Cap. III)
Contrário a Pushkin, meu exílio em Kishinev era voluntário; portanto, esperava julgar um pouco melhor a cidade, assim tão duramente imortalizada nos anais da Literatura como amaldiçoada – por mais amaldiçoada que de fato fosse. E tão amaldiçoada quanto ela estava eu.
Noutros tempos, antes de minha derrocada moral, os prédios em estilo brutalista, semelhantes a prisões da alma, afetariam negativamente meu humor, e o fato de nenhum sorriso ser-me dirigido, à guisa de boas-vindas ao país, desanimar-me-ia a ponto de ressenti-lo por toda a vida – mas já não importava-me. Achei os prédios belos, com seus intimidadores ângulos retos e sua aura de ameaçadora opressão, e as pessoas eram todas extensões de mim, carregando o peso de incontáveis desilusões em seus corações; poderia eu culpá-las por seus modos taciturnos ante um estrangeiro, que em sua percepção viera ao país para divertir-se às suas custas?
Mesmo com sua aparência agourenta, talvez os prédios aparentassem mais agradáveis aos olhos se estivessem bem conservados; a grande maioria das grandes construções que vi estavam num estado horrendo de dilapidação, e como vim a aprender depois, um ou outro que avistei estava abandonado sabe-se lá desde quando. Eu próprio havia hospedado-me num gigantesco e decadente hotel de nome Național (pelo menos julguei ser este o nome; a letra L desaparecera do letreiro e o O já bambeava, muito em breve acompanhando sua predecessora) – pouco antes de sua entrada havia um espelho d’água que há muito não era mantido, e onde a cristalina água preenchia outrora estava repleto de lixo. O vinho que me foi servido, porém, era excelente – e como pude constatar posteriormente, a embriaguez era o principal método empregado pelos cidadãos de Kishinev para que a existência fosse-lhes mais tolerável.
Meu quarto era simples, mas confortável e asseado; a luz elétrica ocasionalmente fraquejava, mas não deixei-me incomodar. Pela janela eu só conseguia enxergar concreto, concreto e mais concreto – e pensei em como havia achado São Paulo uma cidade melancólica durante minha estadia por lá na aurora de minha juventude. Agora que conhecia Kishinev, podia proclamar sem quaisquer titubeios que São Paulo não passava apenas da Morte; triste, porém compassiva até certo ponto. O lugar onde agora encontrava-me, entretanto, eram os domínios do “pesadelo Morte-em-Vida, que engrossa o sangue dos homens com gelo” – um lugar que, sendo proibido de morrer, seguia vivo contra a sua vontade, sem nada almejar e sem ter no que crer.
Senti-me acolhido.
[Continua no Cap. IV]