Nos domínios da Morte-em-Vida: Viagem por Kishinev (Cap. I)

“Проклятый город Кишинев!”

(PUSHKIN)

“The Nightmare LIFE-IN-DEATH was she,

Who thicks man’s blood with cold.”

(COLERIDGE)

I

Tendo nos bolsos boa soma de dinheiro,

E estando certa vez deveras entediado,

Quis constatar se era mesmo verdadeiro

O que tanto já me disseram no passado –

Depois de reunir uns pertences, ligeiro,

No primeiro paquete que vi, apressado,

Em meu próprio Grand Tour parti a viajar,

Mais sábio e menos triste almejando voltar.

II

Em meio a meus poucos pertences carregava

Algumas mudas de roupa (o essencial);

Meu exemplar do “Childe Harold” também levava,

Pois pretendia imitá-lo, afinal,

E enquanto no oceano eu sacolejava,

Tal qual Don Juan ameaçava passar mal –

O mais perto que até então me assemelhei

Dos heróis de Byron que tanto admirei.

III

E também não podendo faltar companhia

Para tornar o itinerário agradável,

Pois até ao pobre Yorick acompanharia

O gentil La Fleur, prestativo e afável,

E Sancho Pança ao fim do mundo seguiria

Seu mestre – aquele cavaleiro admirável –,

Trouxe o diabo azul que rege meu pesar;

Scarbô é como gosto de o chamar.

IV

Ora fazendo cabriolas, loucamente,

Gargalhando seu cruel riso amargurado,

Ora criticando o que via pela frente

Sem que por qualquer coisa fosse deslumbrado,

Em sua misantropia era mais contente

Do que eu, a um canto sempre amuado,

Pensando em meu país que me renegara

E que nada ou ninguém de valor lá deixara.

V

Nem pai, nem mãe, nem irmã por mim chorariam –

Se eu morresse talvez até celebrassem,

Já que na frente nunca a me ver tornariam

E de meu ofício não mais se envergonhassem.

Tampouco amigos, que saudades sentiriam,

Deixei que por muito a mim se apegassem,

E a única mulher a quem um dia amei

Não com as mãos, mas com a língua, a matei.

VI

Parto, portanto, sem ter nada a perder,

E só Deus sabe quando haverei de voltar.

No horizonte, infinito a se estender,

O azul do céu se mistura ao do mar –

E este paquete na água a estremecer

Já fez-me duas ou três vezes vomitar.

À minha cabine eu desço, bem zangado;

Pela náusea foi meu prólogo arruinado!

***

I

E, portanto, para a decepção não só de meus leitores como também das Musas, que desperdiçaram seus arcanos com tal servo tão indigno e negligente, continuo meu trabalho em prosa, com o intuito de agradar ao vulgo; alas! Meu grandioso poema, modelado no Childe Harold e inspirado por minhas viagens, tornou-se apenas mais um contrappasso a carregar nos ombros – e tanto os hei acumulado que quase me assemelho a Atlas.

Ante a calorosa recepção do público ao relato de minha viagem por São Paulo e suas intermináveis questões sobre particulares de meu Grand Tour, decidi-me por fazer as vezes de resurrectionist e revolver pelos verminados sepulcros de minhas memórias, onde meus sonhos jazem em estado de putrefação tão avançado que se tornam irreconhecíveis, resgatando meu poema, no qual tantas esperanças pus um dia, limando-o e galvanizando-o. Se a criatura haverá de exceder ou não a seu criador, se engendrei um Davi tão magnânimo quanto o de Michelangelo ou um Monstro de Frankenstein, deixo-o a vosso encargo, schwankende Gestalten!

A esta altura creio eu que devem estar familiarizados o bastante com minha história, evitando qualquer repetição desnecessária por parte do autor – as circunstâncias da publicação de meu début literário, minha estadia na casa de T…, que foi quiçá a mente mais iluminada a encarnar em forma humana, a perdição e a salvação oferecidas a mim por Nelly, estão à livre disposição de quem quiser consultá-las em minha obra anterior. Scarbô, meu inoportuno companheiro, é o único novo ator a ser acrescentado à dramatis personæ de minha tragicomédia particular; o diabinho encontrou um jeito de se imiscuir em minha vida mais ou menos quando vim a sofrer minha primeiríssima decepção, e fica cada vez mais vivaz e sardônico à medida que elas se acumulam. Como somente eu posso vê-lo, omiti um capítulo inteiro dedicado a ele na Viagem por São Paulo, não desejando pôr em xeque minha sanidade mental ao julgamento dos leitores; mas não tinha Sócrates seu daimon?

(E quisera ser eu capaz de exprimir o descontentamento da criatura com todas as palavras, ao ficar sabendo disto! Não deixou-me dormir por noites a fio. Não quero-te mal, diabrete! Afinal fazes parte de mim. Retrato-te da forma mais digna que mereces, em toda a tua ironia e malcriação.)

Quaisquer outras apresentações são dispensadas. O oceano da Memória chama-nos mais uma vez – e tal qual Byron, que a nós seja permitido bradar: “Away!”.

[N.B.: Para a melhor compreensão do leitor, verificar o poema “Kishinev: Fragmento de viagem”.]

[Continua no Cap. II]

Galaktion Eshmakishvili
Enviado por Galaktion Eshmakishvili em 01/07/2013
Reeditado em 20/10/2022
Código do texto: T4367627
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