CAPÍTULO 1 - ALUCINADAMENTE ALICE

1.

(ATENÇÃO: NÃO DEIXE DE LER A SINOPSE!)

Não sei quando deixei de ser dona dos meus próprios desejos para me tornar escrava deles. Há em minha memória uma névoa branca e úmida a encobrir as lembranças.

Nasci em uma típica família de classe média. Meu pai trabalhava muito para nos sustentar e oferecer uma vida digna que significava ter moradia, comida e um bom colégio onde estudar. Ele acreditava que conhecimento era a melhor herança que podia oferecer aos seus filhos. Tinha orgulho de ser capaz de fazê-lo e esperanças de que nós honrássemos seus esforços. Era engenheiro e lembro-me de voltar para casa no final do dia com aspecto cansado. Deixava a maleta marrom surrada num canto da sala, dava um beijo em cada um de nós e ia tomar seu banho. Suas noites eram sempre iguais. Não era da sua natureza surpreender. Eu sempre podia esperar dele mais do mesmo. Depois de lavar-se, jantava e lia o jornal, enquanto assistia à televisão.

Quando fecho meus olhos, consigo ver com mais nitidez sua imagem. Era um homem de 1,78m, cabelos castanho-escuros, olhos verdes e magro. Nenhum traço marcante destacava-o. Durante a semana usava terno e gravata de cores clássicas e previsíveis como ele. Sua voz era tranquila e monótona. Meu pai nunca ria fora de hora.

Nos finais de semana, gostava de pescar e trabalhar em uma pequena oficina nos fundos da casa. Fazia objetos incríveis esculpidos em madeira. Meu olhar de criança enxergava seus dons como pura magia. A matéria-prima disforme ganhava vida em suas mãos. Quantas vezes entrei lá para vê-lo trabalhar na esperança de que conversasse comigo e me contasse histórias encantadas. Ele limitava-se a olhar em minha direção de vez em quando e sorrir. Nunca recebi dele asas para voar, mas, em compensação, de suas mãos saiu o presente de aniversário que mais marcou a minha infância. Ele fabricou uma linda casinha de bonecas de dois andares. Eu devia ter seis anos de idade, mas entendi que era um jeito de dizer que me amava. Ainda me lembro de suas palavras doces e de ter visto um brilho diferente em seu olhar ao me dizer:

– Filha, um dia, quando você crescer, terá uma de verdade como esta.

Nossa residência era térrea e pequena. Havia uma sala, uma cozinha, um toalete, um quarto para os meus pais e outro que dividia com meu irmão, além da oficina mencionada. Os objetos de decoração eram claros e modestos, porém de bom gosto e estavam sempre nos seus devidos lugares. Meu pai esperava que eu tivesse uma situação financeira melhor do que a dele.

Nossa vida social limitava-se a encontros familiares e algumas tardes passadas no clube náutico da cidade. De vez em quando, íamos almoçar na casa do chefe do meu pai. O Sr. Wilson era um gordo bonachão de bochechas rosadas. Comia e bebia bastante. Falava alto e sua risada parecia um trovão. Apesar de o achar estranho, eu admirava a vida que havia nele. Meu olhar estudava-o e, muitas vezes, levei bronca dos meus pais por causa disso.

– Filha, pare de olhar para o Sr. Wilson! Assim ele vai ficar sem graça e achar que não a educamos direito - eles me advertiam.

Eu até tentava não fixar meu olhar nele, mas era bastante difícil conseguir tal intento. O magnetismo não desaparecia, embora eu realmente quisesse obedecer aos meus pais.

Acredito que o Sr. Wilson não se incomodava com minha curiosidade e, no fundo, ficava envaidecido por despertar a minha atenção. Antes de ir embora, aproveitando a distração dos meus pais, ele sempre dava um jeito de esconder balas e outras guloseimas em meus bolsos. Seus olhos fitavam os meus, enquanto um largo sorriso fazia suas bochechas rosadas subirem. Sentia o cheiro da bebida alcoólica que emanava de sua boca ao sussurrar em meus ouvidos:

– Menininha, preste atenção, nunca faça tudo o que seus pais disserem, O.K? Trate de ser feliz!

Eu não entendia direito o que isto queria dizer, mas como ele era rico e chefe do meu pai, então, acreditava ser um conselho importante. Tinha muito medo de que minha família descobrisse nossa travessura e de receber uma punição severa. Enquanto não chegava em casa e escondia o tesouro açucarado em local seguro, meu coração ficava aos pulos e eu mal conseguia respirar. O segredo e a sensação de estar fazendo algo proibido faziam com que me sentisse de algum modo especial. Eu rezava todas as noites para que Deus me perdoasse e entendesse minhas fraquezas. Precisava acreditar na remissão dos meus pecados para dormir sossegada.

Esmeralda, a esposa do senhor Wilson, era uma mulher loiríssima e maquiada. Tinha um cheiro forte de perfume, vestia roupas justas e coloridas que chamavam a atenção. Não sabia como ela conseguia se equilibrar em saltos tão altos e finos. Sua voz era irritante e anasalada. O corpo era carnudo, os seios e as nádegas eram fartos. Eu já tinha visto o Sr. Wilson passar as mãos em suas ancas várias vezes. Ela fazia uma cara de ofendida, enquanto lhe piscava de maneira afetada um dos olhos.

Os filhos do casal, mais velhos do que eu, viviam viajando. O caçula de dezoito anos era um rapaz bonito, bronzeado e atlético. Sempre que eu o via, o que acontecia em raríssimas ocasiões, estava com uma namoradinha diferente. Ele me pegava no colo e me erguia em direção aos céus, enquanto dizia com um sorriso encantador:

– Alice, que pena que você é tão novinha porque senão eu ia namorar você.

Sentia meu rosto ficar vermelho e quente. Todos riam da minha timidez, mas, apesar da vergonha, eu gostava de sua brincadeira. Um dia, quando crescesse, ia procurar um namorado bonito e alegre como ele – assim eu pensava.

Tinha a impressão de que minha mãe não gostava muito da família do Sr. Wilson, embora jamais tenha ouvido um comentário negativo de sua parte. Parecia sentir-se desagradável nestes encontros. Seus gestos ganhavam um peso que não era familiar como se seus músculos estivessem tensos e esticados. Era uma mulher de traços finos e europeus. Os cabelos ruivos terminavam em cachos que dançavam em seus ombros. O rosto delicado possuía um sorriso de dentes enfileirados e brancos. Dona de uma personalidade discreta e recatada vestia roupas clássicas e gostava de pérolas. Trabalhava em uma biblioteca, quando conheceu meu pai. Com a chegada dos filhos, passou a dedicar-se apenas aos cuidados do lar. Frequentava a igreja todos os domingos. Eu achava normal acompanhá-la. Gostava de sentar ao seu lado no banco de madeira e ia dando um jeito de colar-me cada vez mais ao seu corpo morno e levemente perfumado. As músicas da missa ficavam muito bonitas em sua voz agradável.

O relacionamento dos meus pais parecia bom. Não me lembro de brigas entre eles. Faziam quase tudo juntos. Serviam como exemplo de um casamento tranquilo e bem sucedido.

Meu irmão era mais velho do que eu quase dois anos. Assim como acontecia com meus pais, não havia discussão entre nós nem tampouco afinidade. Gostávamos um do outro, mas habitávamos mundos particulares e distantes. A solidão sempre me fez companhia.

Eu era uma menina franzina e tímida. Nasci em uma época na qual as moças buscavam permanecer virgens até o casamento que deveria durar até a morte de um dos cônjuges. Pouco se falava sobre sexo que, quase sempre, estava associado à ideia de pecado, sendo impossível buscar informações sobre o assunto no Google, porque ainda não se sonhava com a internet nem com o celular. Herdei os olhos verdes do meu pai e os cabelos cor de fogo da minha mãe. Minha beleza não chegava a incomodar ninguém. A minha imaginação é que não me dava sossego. Eu vivia no mundo da lua. Minha mãe tinha muitos livros, herança do seu antigo trabalho na biblioteca. Era com eles que eu passava a maior parte do tempo. As histórias me levavam para lugares distantes e exóticos dos quais, muitas vezes, eu me recusava a retornar.

Por causa do colégio particular e de orientação católica em que estudei, aprendi desde cedo a rezar e ensinaram-me que Deus sempre se fazia presente quando praticávamos algum ato incorreto. Então fiquei com a forte impressão de que Ele tinha mais a ver com punição do que com amor.

Como aluna exemplar, tirava as melhores notas do colégio. Tímida, não dava o mínimo trabalho aos professores. Minha presença nem se fazia notar. Eu, realmente, muitas vezes só estava presente de corpo, enquanto minha alma viajava por mares nunca dantes navegados.

Apreciava o contato com meus colegas, embora não conseguisse fazer muitas amizades. Não era popular, além de ser bastante ingênua. Tinha dificuldades para perceber quando as pessoas estavam me enganando. Nunca me esqueci do que duas amiguinhas me aprontaram na 4ª série. Elas sabiam que eu gostava do Eduardo, então me disseram que ele estaria esperando por mim após o término das aulas no pátio do colégio. Foi muito difícil me concentrar nas aulas porque as pernas tremiam e as mãos transpiravam, enquanto meu coração tentava subir pela garganta e sair pela boca. Quando o sinal soou, respirei fundo e me encaminhei para o local combinado. Não encontrei o Eduardo para a minha surpresa. À minha espera estava José, o gordinho desajeitado da turma. Trazia flores na mão e um sorriso no rosto porque haviam dito a ele que eu o amava. Fiquei com tanta pena do menino que não tive coragem de desmentir. Assim começou a minha fama de escolher mal os meus pretendentes.

Lady Blue Eyes
Enviado por Lady Blue Eyes em 26/06/2013
Reeditado em 22/09/2015
Código do texto: T4360125
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