Viagem por São Paulo: Crônica de neves de antanho (Cap. XVII – Conclusão)
Numa comprovação da existência da lei do eterno retorno, encerro minha crônica do mesmo jeito que a iniciei: em meio aos cinzentos blocos de concreto de São Paulo novamente, com a única diferença sendo que meu mestre T… e Nelly já não contavam entre seus habitantes – e eu mesmo já havia encontrado uma merecida consolação nos braços da gentil Anastasia, que tomou para si boa parte de meus fardos e preenche minha existência com um amor entre musa e artista que nem Rafael seria capaz de proporcionar à sua Fornarina, passando nós os dias em meio a “gatos, incenso, velas e vinho”, nossos corações embevecidos com a Arte em sua forma mais pura.
Mas eis que um outro capricho da Nostalgia veio a dardejar em meu cérebro, e há pouco tempo decidi-me por revisitar a cidade onde passara por tantos momentos bons e ruins em meus anos de formação, mesmo não tendo ela nada de novo a me oferecer.
Tomei um chá com I… e conversamos bastante sobre T… e a vida em geral. Perguntou-me ela sobre Nelly; “Tornou-se uma abstração”, respondi-lhe em tom jocoso, “e já não tem mais corpo ou forma.”
Despedimo-nos, e enquanto andava pelas ruas sem destino fixo senti a verdade por trás de minha afirmação metade irônica; comecei a pensar que, sendo que Nelly fora uma moradora de lá, talvez tenha andado por esta mesma rua em algum ponto, ou parado para admirar aquela árvore em flor, ou adentrado aquela loja a fim de comprar o que quer que fosse; estava caminhando sob o mesmo céu que contemplara sua gestação e crescimento, e respirava o mesmo ar que ela. Talvez ela não pensasse nisto, mas a cada instante compartilhávamos um doce momento de intimidade no qual podíamos ser um único ente, apesar da distância – e por mais metafísica que esta ideia pudesse soar, achei-a bela.
Guiado por um magnetismo instintivo, vim a dar naquele mesmo parque que tantas vezes frequentara, e onde conheci Nelly pela primeira vez – continuava do mesmo jeito depois de todo aquele tempo, mas por alguma razão o nihil admirari deixou as páginas de meu credo temporariamente e tudo nele parecia-me novo. Sentei-me naquele mesmo banco (que, como única novidade, tinha apenas mais pichações), e uma parte minha esperou que uma excêntrica garota, pálida e semelhante a uma criança de tão pequena, de madeixas espessas e rebeldes e grandes olhos emotivos, viesse a interpelar-me com uma história estranha na qual dizia ter se perdido da Lua; suas esperanças malograram-se porém, pois ninguém apareceu, e lá permaneci, a sós com meus pensamentos, até deixar São Paulo pela segunda e última vez – no mesmo dia.
Continuo cumprindo a promessa que fiz a Nelly, e haverei de assim fazê-lo até que nossos destinos permitam que nos reencontremos; mas às vezes não posso deixar de prantear pelas neves de antanho que se foram. Ao perguntar onde estão, não obtenho resposta, mas posso ao menos guardar suas lembranças com o carinho e a devoção que merecem.
(28 de maio de 2021)