Viagem por São Paulo: Crônica de neves de antanho (Cap. XVI)

Retornemos ao presente. Vivi (ou, melhor dizendo, tolerei) os anos que se sucederam como se protagonizasse um interminável sonho febril. Fora a publicação tardia de minha noveleta e meu Grand Tour, que já mencionei en passant, nenhum evento significativo veio a agregar-se à minha compilação de desgostos – pensar em Nelly ocupava demais de meu tempo para que buscasse mais decepções.

Quantos anos haviam se passado desde a última vez que nos vimos mesmo? Às vezes parecia que apenas ontem me encontrara com aquela garota lindamente trágica (ou tragicamente linda?) que se autoproclamava um fantasma extraviado da Lua; outras podia jurar que um século se decorrera, e que eu era muito mais velho do que aparentava. Tendo já perdido a fé em Deus neste ponto, era a ela a quem orava, todo dia e toda noite, para que se mantivesse fora de perigo e – se não estivesse disposta a voltar a mim – que encontrasse alguém de temperamento menos inflamado pelas elucubrações da poesia.

Acima de tudo, porém, orava para que recebesse seu perdão.

Continuava a trocar cartas com meu mestre, que fazia o possível para aliviar meus pesares mesmo sentindo-se cada vez mais indisposto como vinha a escrever-me; T… estava doente, mas acreditava não ser nada demasiado sério. Algum tempo depois, ele e eu viemos a compartilhar nosso próprio contrappasso: era câncer. Entretanto, anunciava de maneira bastante segura as esperanças que punha no tratamento, ansiando voltar aos palcos o mais breve possível e receber-me em sua casa novamente em algum ponto, quando conseguisse esquecer-me de Nelly – a partir deste anúncio, não levou muito tempo até eu receber a notícia que T… “estava morto. Não mais se movia, ou pensava, ou sentia. Era tão inanimado quanto o pó com o qual dentro em breve haveria de misturar-se”.

I… havia me escrito; uma carta breve e repleta de sua característica gentileza desengajada pranteando a morte do marido e mandando-me boas energias para permanecer forte no luto – e, de fato, necessitaria de bastante força, pois Nelly já levara uma metade de meu coração, e agora meu mestre levava-me a outra! Estranhamente, porém, havia um outro envelope junto com a carta de I…. Dizia ela que chegara uma semana antes e, estando endereçada a mim, enviava-o em anexo.

Estudei as letras pequenas e delicadas que formavam meu nome, e ao virá-lo para constatar seu remetente cri sonhar ou ser vítima de algum trote cruel num momento sumamente inoportuno – pude claramente distinguir “Helena M…”, escrito com todas as letras… e a carta era-me endereçada de Carcassonne! Meu corpo tremia; precisei sentar-me para que não desmaiasse. Abri o envelope com o máximo de cuidado que minhas mãos trêmulas permitiam, esperando deparar-me com uma torrente de imprecações, e com lágrimas escorrendo profusamente de meus olhos li o seguinte:

***

Querido!

Não sei se ainda vive com T… (muito provavelmente não), então mandei esta carta a ele para que a entregasse a você, já que são correspondentes de longa data. Espero que tanto vocês dois quanto I… estejam bem e saudáveis.

Há várias coisas que gostaria de dizer-lhe, rompendo este silêncio de anos, mas antes de mais nada quero garantir que eu própria estou ótima e, como pode ver, na cidade com a qual sonhei por tanto tempo! Estou viajando por aqui e ali acompanhada de um rapaz que conheci, de nome A…, com quem comecei a namorar – de jure, como você costumava brincar. Vocês dois se parecem um bocado; ambos são idealistas, sonhadores – mas ele não possui estes desejos transcendentais dos quais você sempre discorreu, preferindo contentar-se com o que o mundo material tem a oferecer.

Mas não pense que digo-lhe isto para insultá-lo, ou querendo causar-lhe inveja! Muito longe disto (e, de todos os pecados capitais, sempre achei a inveja o mais feio). Não vou negar, porém, que senti ódio de você por algum tempo – ódio das coisas que disse, dos insultos que proferiu a mim – talvez por isto eu tenha corrido de você, não querendo mais falar-lhe. Entretanto, a vida é curta demais para que a passemos sentindo raiva de tudo e todos, não concorda?

Gostaria de pedir-lhe desculpas por aparecer em sua vida e ter-lhe deixado uma impressão tão negativa. Eu era uma criança extremamente isolada naquela época, e necessitava de alguém com quem tivesse disposições em comum; mas foi errado eu tentar imiscuir-me na vida de um estranho e empurrar meus problemas a ele quando ele próprio já os tinha em demasia. Meu amor e admiração por você, porém, sempre foram verdadeiros – e ainda hoje não posso deixar de admirar seus escritos. Imagino o quanto devem ter melhorado desde então, por sinal…!

Lembra-se daquele Natal que passamos juntos, no qual fui pega desprevenida e não pude dar-lhe um presente à altura do seu? Compenso minha falha agora, e concedo-lhe como meu presente o perdão. Eu o perdoo por tudo, por todas as ofensas, de todo o coração, da mesma forma que espero que você venha a perdoar-me de todo o coração – mas tenho uma cláusula, ou haverei de revogar-lhe meu perdão, como haveria de dizer você, Excelentíssimo Senhor Doutor.

Continue a viver.

As coisas podem ser difíceis às vezes, mas a resiliência é um dos maiores atributos da humanidade em minha opinião. Você e eu sofremos tanto! Mas no fim não continuamos vivos, apesar de tudo? “Aquele que viveu sem sofrer, passando pela vida adormecido em branca nuvem, foi um espectro de homem e não um homem em si”, se permite-me simplificar de forma tão crua e pueril aqueles versos tão bonitos de Otaviano; portanto, apesar do sofrimento, das agruras, das rejeições, das pessoas más que passaram por sua vida e tiraram proveito de sua boa índole, continue a lutar e a viver – no fim, seus triunfos haverão de ser ainda mais magnânimos, e estas pessoas que tanto lhe fizeram sofrer sucumbirão ante suas tentativas fúteis de o prejudicar.

Consegue prometer isto a mim, querido? Promete-me que vai viver?

Se sim, quero prometer-lhe algo também.

Se permanecer vivo, um dia haverei de dar-lhe a chance de um último encontro. Mesmo que até lá sejamos dois velhinhos (ainda excêntricos), deixarei que veja-me só mais uma vez, e deitada em seu colo daquele jeito que tanto gostava de fazer lhe contarei sobre minhas esperanças da velhice – e eu ouvirei as suas. Mas para isto você precisa continuar vivo, tudo bem?

Espero que abençoe minha união com A…. Se alguma outra garota muito melhor do que eu aparecer em sua vida, igualmente dou-lhes minha bênção. Seja feliz, querido… Viva, ame e escreva. Haverei de desejar-lhe tudo de bom até o fim de meus dias, e prestigiarei qualquer coisa que venha a escrever.

Com amor, de seu bebê.

Nelly

***

Ao término da leitura chorava copiosamente – meus pulmões estavam a ponto de arrebentar-se do tanto que soluçava. Um par de mãos invisíveis, mas semelhantes àquelas de Nelly, pálidas e pequeninas feito as de uma boneca de porcelana (assim queria imaginá-las), acabava de retirar um opressivo peso de meu coração. Se ela queria que eu vivesse, eu viveria! Haveria de doer, decerto – mais do que qualquer outra pessoa, eu já sabia como a vida pode ser dolorosa. Ainda assim, apesar de ser “um fado, tem seus pandeiros e mil tamborins” – e as coisas seriam relativamente mais fáceis tendo eu o conhecimento de que, dentre os dois componentes daquela agridoce liaison, apenas eu permaneceria infeliz.

[Continua no Cap. XVII]

Galaktion Eshmakishvili
Enviado por Galaktion Eshmakishvili em 18/04/2013
Reeditado em 09/09/2024
Código do texto: T4247733
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