Viagem por São Paulo: Crônica de neves de antanho (Cap. XV – ཉི་ཟླ་ཁ་སྦྱོར)
Dou uma pausa à narrativa (que, inclusive, já se aproxima de seu fim, portanto não haverá grandes problemas, penso eu) para me recordar de um belo poema em prosa que escrevi após um momento de profunda agonia, algum tempo depois de ter retornado ao lar e desistido de correr mundo afora atrás de sei lá eu o quê. Devo admitir que meus escritos daquela época eram mais experimentos do que trabalhos sólidos de fato, e acabei por me desfazer de quase todos movido por uma vergonha quiçá tola; mas por este aqui acabei desenvolvendo um certo carinho e, independente de sua qualidade lia-o dia e noite, noite e dia, e ainda hoje o faço mesmo que já não tão assiduamente. Penso que Nelly gostaria de lê-lo, caso minhas páginas lhe cheguem em mãos, e adianto que, levando em consideração como nossa história chegou ao fim, é até que profético – sem, porém, adiantar as coisas novamente, cá segue o poema:
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Em dias nos quais a culpa e o remorso fustigavam-me mais impiedosamente, e a imaginava particularmente infeliz no solitário, lúgubre cárcere onde se encontrava, valia-me de todas as minhas forças criativas para sonhar um novo, encantado mundo, orando a Deus com os derradeiros vestígios de minha fé para que compartilhasse ela de meu sonho – que pudesse ser este o único ato de gentileza permitido a mim realizar, como uma parcial expiação de meus pecados.
Em meu sonho, ela era “Lua-em-Sua-Plenitude”, esposa de “Sol-em-Seu-Esplendor” – ambos monarcas de um reino medieval de iluminuras e pergaminhos. Sol-em-Seu-Esplendor a tomava pela mão, dizendo-lhe:
“Bela e pequena garota, de sofrimentos tão desproporcionais à idade! Não é aqui teu lugar, onde encarnaste por engano – a Terra ainda não está pronta para tua presença. Dê-me a mão! A magia pela qual procura em vão não se encontra neste mundo, que tanto mal fez-lhe.” Minha criança, então, daria-lhe a mão de boneca de porcelana, recuperando o lugar que deveria tê-la abrigado desde o início.
Nelly gostava de magia; por isto, imaginava seu reino como uma réplica genuína de algum arcaico códice alquímico, repleto de símbolos e criaturas mitológicas. Cada símbolo a ser decifrado pelo casal faria algo novo e magnífico acontecer, deslumbrando a ambos (pois tudo neste mundo é feito para seu contentamento), e todas as criaturas, do Unicórnio ao Basilisco, lhes prestavam tributo, aclamando-os como os mantenedores de tal lugar. Imaginei também um bonito castelo de onde os dois pudessem reinar, cuja sala do trono possuísse uma grande janela, por onde toda a extensão de seus domínios pudesse ser vista. A mais bela coisa que imaginava, no entanto, sempre que conjurava este reino à minha criança, era o que vem a seguir.
Para que uma pessoa comum pudesse visitar o reino de Sol-em-Seu-Esplendor e Lua-em-Sua-Plenitude, ela precisaria sofrer muito. No ápice de seu pesar, ela seria transportada à corte dos dois monarcas, e tendo conhecido como ninguém o sofrimento, Lua-em-Sua-Plenitude apagaria a todas as suas angústias com um beijo, tomando-as para si e armazenando-as num canto oculto de seu coração – à noite, quando o marido dorme, derramaria ela lágrimas que cairiam no mundo humano como chuva, trazendo raros, efêmeros momentos de beleza que apenas olhos muito atentos poderiam ver.
[Continua no Cap. XVI]