Viagem por São Paulo: Crônica de neves de antanho (Cap. XV – ཉི་ཟླ་ཁ་སྦྱོར)

Uma página de meu diário, à época, lia-se:

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Em dias nos quais a culpa e o remorso fustigavam-me mais impiedosamente, e a imaginava particularmente infeliz no solitário, lúgubre cárcere onde se encontrava, valia-me de todas as minhas forças criativas para sonhar um novo, encantado mundo, orando a Deus com os derradeiros vestígios de minha fé para que compartilhasse ela de meu sonho – que pudesse ser este o único ato de gentileza permitido a mim realizar, como uma parcial expiação de meus pecados.

Em meu sonho, ela era “Lua-em-Sua-Plenitude”, esposa de “Sol-em-Seu-Esplendor” – ambos monarcas de um reino medieval de iluminuras e pergaminhos. Sol-em-Seu-Esplendor a tomava pela mão, dizendo-lhe:

“Bela e pequena garota, de sofrimentos tão desproporcionais à idade! Não é aqui teu lugar, onde encarnaste por engano – a Terra ainda não está pronta para tua presença. Dê-me a mão! A magia pela qual procura em vão não se encontra neste mundo, que tanto mal fez-lhe.” Minha criança, então, daria-lhe a mão de boneca de porcelana, recuperando o lugar que deveria tê-la abrigado desde o início.

Nelly gostava de magia; por isto, imaginava seu reino como uma réplica genuína de algum arcaico códice alquímico, repleto de símbolos e criaturas mitológicas. Cada símbolo a ser decifrado pelo casal faria algo novo e magnífico acontecer, deslumbrando a ambos (pois tudo neste mundo é feito para seu contentamento), e todas as criaturas, do Unicórnio ao Basilisco, lhes prestavam tributo, aclamando-os como os mantenedores de tal lugar. Imaginei também um bonito castelo de onde os dois pudessem reinar, cuja sala do trono possuísse uma grande janela, por onde toda a extensão de seus domínios pudesse ser vista. A mais bela coisa que imaginava, no entanto, sempre que conjurava este reino à minha criança, era o que vem a seguir.

Para que uma pessoa comum pudesse visitar o reino de Sol-em-Seu-Esplendor e Lua-em-Sua-Plenitude, ela precisaria sofrer muito. No ápice de seu pesar, ela seria transportada à corte dos dois monarcas, e tendo conhecido como ninguém o sofrimento, Lua-em-Sua-Plenitude apagaria a todas as suas angústias com um beijo, tomando-as para si e armazenando-as num canto oculto de seu coração – à noite, quando o marido dorme, derramaria ela lágrimas que cairiam no mundo humano como chuva, trazendo raros, efêmeros momentos de beleza que apenas olhos muito atentos poderiam ver.

[Continua no Cap. XVI]

Galaktion Eshmakishvili
Enviado por Galaktion Eshmakishvili em 06/03/2013
Reeditado em 19/10/2022
Código do texto: T4174831
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