Viagem por São Paulo: Crônica de neves de antanho (Cap. XIV)

Meu amor por Nelly era como uma febre, consumindo inteiramente todo o meu ser; a única explicação plausível para o fim de nosso amor é que, tendo consumido a tudo aquilo que podia, chegando a seu acmé, não foi mais capaz de se manter. “Zuviel Liebe kann dich töten”, como dizem os alemães.

Ergo, gradualmente a intensidade de nossa paixão feneceu.

Quando nos encontrávamos já não lia-lhe meus escritos, ficando ambos calados grande parte do tempo. Sua efusividade de sentimentos também diminuíra; passou a deitar-se em meu colo cada vez menos, perdendo aquela graça pueril para tornar-se retraída e ensimesmada. Sem que nos preocupássemos em saber de quem (ou do quê) era a culpa, começáramos a atacar um ao outro verbalmente sempre que a oportunidade aparecia – chamava-me ela de poetastro fracassado e futuro mendigo, enquanto eu não hesitava em lembrar-lhe, valendo-me dos termos mais grosseiros possíveis, de como sua mera existência causara um extremo desconforto à sua família, e que desperdiçara nove meses no útero da mãe quando poderia ter cedido seu lugar a um esperma mais digno. Adquiri um prazer mórbido de fazê-la chorar, e ceifar qualquer alegria sua por mais ínfima que fosse, só para depois retirar o que disse, abraçá-la e beijá-la com a mesma boca que lhe proferira tamanhas injúrias momentos antes…

Apenas meu coração pode conter os negros anais dos crimes que cometi para com aquela garota, não podendo eu dividir meu fardo com ninguém – desde então, carrego-o ardendo em chamas no meu peito, numa verdadeira símile do tormento dos condenados nas galerias de Iblis descritas nas lôbregas páginas do “Vathek”, e invoquei mais espíritos que Manfredo para conseguir uma mísera amostra do consolo da “forgetfulness”. Sonhava que uma Nelly espectral aparecia-me, proclamando que minhas provações terrenas se findariam, apenas para que as retomasse em dobro desperto.

Nelly tornou-se “o ídolo de minhas insônias, a obsessão de minhas noites”; não podia dormir, pensando em nossos dias de felicidade e em como se degeneraram, e quando conseguia que o sono finalmente me abatesse era acometido por pesadelos nos quais seu rosto sempre predominava, e eu afogava-me em meio àquele mar de rostos – tão tristes, tão distorcidos pela agonia que eu próprio havia-lhes infligido…

Ulteriormente não fiz outra coisa fora buscar uma outra Nelly, procurando-a em meio às mulheres perdidas das tavernas, das ruas, dos lupanares – e em meio a estes grotescos simulacros da garota a quem amei esvaí minha capacidade de amar e de interessar-me pelas coisas; afinal, que era tudo sem ela? Apenas Zarema foi-lhe uma substituta fiel durante minhas excursões pelo país de Sakartvelo; mas não poderia eu amaldiçoar a vida de mais uma garota inocente, e dela despedi-me à força.

A morte, e ela apenas, permitirá que eu expie completamente minhas culpas, quando puder depositar meu coração aos pés de Nelly para que ela extinga o fogo de meu pecado e envie-me em paz ao vácuo da imatéria; até lá, porém, prometi-lhe que continuaria vivendo do melhor modo que posso.

Mas vejo que estou adiantando-me: retornemos ao ponto de onde parei.

Um dia pretendia conversar com Nelly, e tentar salvar o que restara de nosso relacionamento – ou encerrá-lo de vez. Ela não apareceu no lugar de costume. Por todo o mês segui ao nosso ponto de encontro, mas nunca mais a vi: a partir daí, minha estadia em São Paulo tornou-se insuportável. Cogitei suicidar-me pulando do Viaduto do Chá, mas um acesso de vertigem impediu a concretização deste nefasto desígnio que tantas vezes veio a se intrometer em meu cérebro – resolvi, então, pôr um ponto final à minha fracassada jornada em busca de fama (e amor), e em fins de janeiro despedi-me de meu mestre, a quem também nunca mais viria a ver pessoalmente (e que, nas minhas horas de um paroxismo incontrolável de fúria, maldizia cruelmente em meu âmago por ter convidado-me àquele baile, pois se recusasse não conheceria Nelly), e retornei à minha cidade natal, sendo recebido com os reconfortantes abraços de meus amigos e a inabalável apatia de meus pais.

[Continua no Cap. XV]

Galaktion Eshmakishvili
Enviado por Galaktion Eshmakishvili em 22/11/2012
Reeditado em 19/10/2022
Código do texto: T3999156
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