Viagem por São Paulo: Crônica de neves de antanho (Cap. XIII)
O segundo foi o único Natal que passamos juntos. Nós quatro: eu, ela, T… e I….
I… passara a frequentar de forma assídua a casa de T… desde seu rendezvous no baile; tratava-me ela com amabilidade, ainda que de forma impessoal, e demonstrou-se uma companhia que tornava a vida com T… ainda mais interessante. Ao cabo de um de nossos diálogos veio ele a dizer-me certa vez:
“É injusto apenas você estar sozinho. Por que não traz a famosa Nelly para cá um dia desses?”
“O Natal está para chegar”, complementou I…. “Seria mais divertido se celebrássemos com um encontro duplo.”
E assim tramei para que passássemos o Natal juntos.
Há algum tempo vinha escrevendo febrilmente durante as manhãs, mal parando para comer; e ao voltar para casa depois de meus encontros com Nelly, trabalhava ainda mais, pelejando contra o sono até que fosse eu vencido. Dedicava-lhe uma história; ainda outra noveleta que, ao contrário da primeira, não mandaria à publicação. Queria que fosse algo nosso, e apenas nosso; e não que lançaria às multidões para que pesassem nossas intimidades na balança do Deus-Dinheiro, coisa que não tinha escrúpulos de fazer em relação a C… em parte por despeito. Esqueci-me de grande parte do enredo – dei o manuscrito de presente a Nelly, e não guardei um rascunho. Se ainda hoje ela o guarda, daria tudo que tenho para saber.
“Hoje escreveu algo?”, perguntava-me ela toda noite, e desde que iniciara meu trabalho minha resposta era negativa.
“Novamente?”, inquiria tristonha. “Mas por que não escreve mais?”
“Espere até o Natal…”
Ao que me replicava fazendo um beicinho de criança contrariada.
Chegado o grandioso dia do nascimento de Nosso Senhor, disse-me ela que a família havia viajado e, como todo ano, fora deixada para trás. Teríamos até o Dia de Reis para que nossos caprichos se extravasassem por toda a madrugada, se assim o desejássemos.
“Eles têm uma casa de veraneio na praia de J…”, explicou. “Um dia haveremos de ter a nossa, querido – e eles vão ver só! Será maior, melhor e, por mais que implorem, não vamos convidá-los!”
“Haverei de levá-la a um lugar especial hoje”, disse-lhe, “e esta será a primeira parte de seu presente.”
“E a segunda?”
“Contarei o porquê de não ter te agraciado com meus poemas ultimamente.”
Dei-lhe o braço, e a guiei à casa de T….
“Então é este o Parnaso onde se reúnem os dois maiores poetas do Brasil?”, perguntou ela, os olhos imensos faiscando de deslumbramento.
“Aqui é onde reside Apolo redivivo”, respondi, abrindo a porta. “Não passo de seu fâmulo.”
Introduzi Nelly a meu mestre e a I… com todas as formalidades que merecia. Ela estava embasbacada ao contemplar T… em carne e osso, de quem sempre falava-lhe tão favoravelmente, e o casal não ficara menos encantado com os modos corteses, dignos de uma lady britânica, da garota. Fui buscar seu presente em meu quarto; o caderno no qual passara tantos dias labutando.
“Peço perdão por ter ficado tanto tempo sem compartilhar meus escritos”, disse eu, estendendo o caderno a ela, “mas precisei dedicar minhas atenções a esta história, que fiz a você. Não perguntou-me se um dia eu haveria de escrever-lhe? É esta a resposta.”
Ela tomou o caderno de minhas mãos com uma reverência quase que sacrossanta, folheando-o como se perscrutasse um arcaico códice redescoberto dos tempos medievos.
“Uma história para mim? Só minha?”, perguntou, sem tirar os olhos do caderno, com a voz embargada.
“Sim, meu bebê. Só sua.”
Seus olhos ficaram marejados de emoção. “E eu não trouxe nada para te presentear!”
“Sua mera existência já me é o suficiente. Se há um presente pelo qual sempre desejei, foi que aparecesse um bebê como este em minha vida.”
“Lisonjeiro… Lisonjeiro…” Ela tentava sorrir em meio às lágrimas. Quando o choro silenciou-lhe a voz em definitivo, pulou em meus braços, cobrindo-me de beijos. Ah, se C… tivesse reagido do mesmo jeito…
Nelly hospedou-se na casa de T… até o Dia de Reis; o lugar fervilhava de vida com ela, atingindo o ápice da alegria que um conjunto de pessoas de disposições e temperamentos em comum, vivendo juntas, poderia dividir. Dormíamos juntos, e gostava de cantar para ela até que adormecesse; então contemplava-a deitada, de olhos cerrados, respirando suavemente com o peito a subir e a descer até que eu mesmo viesse a dormir… “É uma vida que tenho cá a meu lado, a vida de um ser humano”, pensava eu, “e haverei de protegê-la mesmo que às custas da minha.”
Repetia-lhe baixinho, no ouvido, aqueles versos de Dias:
“Quem me dera saber quais são teus sonhos,
Aventar teus mais fundos pensamentos
E ser o gênio bom que tos cumprisse!”
(E quem dera assim o tivesse sido…)
Nunca vim a passar um Natal tão prazeroso quanto aquele desde então, e talvez isto tenha contribuído para que eu despisse-me dos sacramentos do cristianismo para tragar avidamente do empedernido ateísmo de Percy Shelley e do epicurismo de Lucrécio, ostentando como único dogma a inegabilidade e infalibilidade dos átomos que compõem a matéria e da inércia à qual ela haverá de retornar. “Cedit item retro, de terra quod fuit ante, in terras”.
[Continua no Cap. XIV]