Capitulo 13 de A educação sentimental de Xavier Renart
Adivinhe quem vem para almoçar?
É uma farsa! A frase, mesmo que voltada para outras pessoas e situação, ainda assim incomodava Karine profundamente. A palestra “Radicalidade e Assemblage na Moda”, proferida por Tomas, que à muito tempo não dava as caras na Faculdade de Design de Moda, veio trazendo o sopro seco e abrasador do pensamento novo e conflitante com os modelos estabelecidos de pensar. A noção de que as propostas estéticas provindas de elementos que se propunham a uma vivência radical de questionamento do status quo, seja esse questionamento em que aspecto for, apesar de ser uma das principais fontes de elementos para compor a moda, não poderia sê-la enquanto ato de composição de coleções , necessitando para isso que esses elementos sejam articulados com outros provindos de outras radicalidades ou de elementos da vida cotidiana já estabilizados. Fazendo o paralelo entre sentidos, tão ao gosto de Tomas, ele comparara as noções de terroir, para indicação estética do vinho de uma variedade específica de uva, de um único vinhedo, e da assemblage, a elaboração de um sabor a partir dos diversos tipos de uva, fazendo o mesmo paralelo com o café e a cerveja. Depois de discutir a questão da originalidade na assemblage, veio então a discursão sobre a farsa. Esta se constituía, sobretudo, de uma pretensão de uso de elementos da radicalidade descolados da proposta à que a vivência das pessoas que desenvolveram padrões estéticos adequados às necessidades decorrentes de suas propostas questionadoras de vida se referiam.
Em primeiro lugar, poucos são os que estão dispostos a entregar sua vida à uma proposta radical de questionamento. Essa vivência é insustentável para a maior parte das pessoas. No entanto, mesmo que não consigam se entregar à vivência questionadora, podem possuir também o questionamento dentro de si, sentido como um incômodo sobre a égide da hipocrisia, na qual vivem. Os elementos estéticos criados pelos que se propõem à vivência radical, então podem ser aproveitados, quando articulados com outros elementos que os tornariam mais palatáveis, através de uma assemblage, e transformados em moda, possibilitariam uma expressão estética mais satisfatória para o sujeito na construção de sua imagem compartilhada socialmente. E isso seria bom. A farsa constituiria-se na adesão por parte de pessoas que não possuíssem a vivência estética a ser expressa pelos elementos da assemblage por pressão da moda. A própria pressão da moda, como pressão por uma semelhança de consumo para participação de estamentos norteados prioritariamente por padrões estéticos do vestir-se se constituiria então como um chamado à farsa, e à farsa mor, por se constituir em um autoengano da não aceitação da existência de uma multiplicidade de adesões estéticas mesmo nos grupos semelhantes que serveriam de base para o processo de referência identitária para os indivíduos. E terminava advogando uma moda múltipla, questionando a adesão de radicalidades como foco central da moda e defendendo uma assemblage que fosse múltipla e desse margem à diferentes possibilidades de combinações e usos de acordo com a mudança constante às quais estão sujeitas as pessoas na contemporaneidade.
Como a tudo que vinha de Tomas, Karine escutou com muita atenção e se colocou à disposição daquele pensamento. Ela entendia que ele não criticava a radicalidade. Questionava somente a sua pretensão heróica, ou sua exaltação como modelo de vida. A Grande Assemblage era a ação heróica segundo Tomas. E mesmo que de certa forma se constitui-se para seus articuladores, em última instância, em uma forma de radicalidade, ela não o seria no sentido de uma exercício de expressão singular, como uma raiz, mas uma ação de comunicação e integração dos elementos e dos sujeitos, que o remeteriam não a um isolamento dos seus contemporâneos, como seria o caso da vivência radical, mas na integração com eles. Assim se cumpririam as duas formas de experiência do mundo. A experiência íntima, de abertura para o mundo em profundidade, possível somente na esfera particular, e a experiência da superfície, predominante na esfera pública, também de extrema importância, por ser nela que se mantêm os elementos de contato das pessoas com os seus semelhantes. A “ensolarada superfície dos mares”, como diria Tomas no seu poema Ágora de Atlântida.
A sensação ainda que dúbia de farsa vinha da sensação, não menos cheia de dubiedade, de seu engajamento em uma radicalidade. Sua experiência afrontosa a partir do triângulo amoroso que compunha com Carol e Theo, agora se ampliava, com a participação ainda titubeante de Fernanda, e seu novo encontro com Renart, com o qual conversara expondo um pouco mais de sua intimidade, e que ela sabia possuir um interesse explícito por Carol. Ela ainda tinha dúvidas se ele entendia aquilo, que ela mesmo não entendia, ou se era só uma ação predatória sobre seu espaço de intimidade. Ela sentia necessidade de conversar com Tomas sobre o assunto, mas talvez por não ter uma questão clara a apresentar, ou porque por um motivo desconhecido para ela, que também pouco conhecia esse tipo de sensação, se sentisse insegura, não o procurou após a palestra. Absorta em seu mundo interno de questionamentos deixou-se caminhar automaticamente após a palestra pelas caminhos que fazia pela faculdade no horário.
- Karine! O mulher, tá indo onde?
- Oi! Ah, oi Theo. E ai, a gente... cadê a Carol?
- Parou para conversar com a Dorothea e o Renart. Acho que eles vão almoçar com um pessoal de fora que veio aqui para assistir a palestra do Tomas. O Renart falou para a gente ficar por perto lá para ver se a gente vai junto. Você viu a Fernanda? Eu vi ela entrando no auditório mas depois não vi mais.
- Ela tava com o pessoal da sala dela.
- Deve estar lá na cantina. Vai lá ficar então com a Carol que vou atrás dela.
-Tá. – Theo Saiu em direção à cantina enquanto Karine terminava de sair de dentro de si mesma se situava na ante-sala do auditório. Voltou para o auditório e localizou o grupo de Renart, Dorothea, Carol, e mais duas pessoas que ela não conhecia logo abaixo do tablado do lado esquerdo do palco. No mesmo lado, mas no alto do palco, estava Tomás rodeado de professores que aproveitavam sua agora rara presença na faculdade. Enquanto se dirigia ao grupo de baixo, o professor João Celestino resgatava Tomás do grupo de cima com a lembrança do compromisso seguinte. Karine chegou enquanto Tomás apresentava João aos dois desconhecidos.
- Gente, esse aqui é meu Coordenador da Faculdade de Moda, o Professor João Celestino. Se a gente hoje tem essa faculdade, em grande parte é mérito dele que acreditou na gente desde o começo e colocou o talento e a energia dele à disposição do projeto da Allons. João, esses aqui são o pessoal que eu tinha falado. O Antônio Pedro e o Roland são do Mahalila. O Antônio Pedro é o responsável pelas operações na América do Sul, e o Roland é o gerente internacional de prospecção de tendências. Eles estavam interessados em estabelecer parceria aqui com a gente na faculdade.
- Sim. Muito bem vindos aqui na nossa faculdade. As portas estão abertas para vocês. O Tomás me disse que vocês vão ficar aqui até na quarta não é. Então temos tempo o bastante para você conhecerem tudo com tranqüilidade. Eu imagino pela hora o melhor seria a gente ir almoçar e depois terminar de mostrar a faculdade para vocês. A gente vai aonde Renart? No Farhein mesmo?
- João, eu estava conversando aqui com o Roland e ele falou que ouviu falar muito do movimento craftbeer daqui de Belo Horizonte. Então Pensei em levar eles lá agora, depois eles dão uma descansada, e de noite a gente conversa mais. Eu e a Dorothea já mostramos os laboratórios e a incubadora para eles mais cedo. Eles vieram direto do Rio hoje, então pensei que a gente pudesse esticar mais agora mesmo e deixar o resto do dia para eles descansarem e amanhã a gente discute o resto das coisas.
- Uai gente, por mim, está perfeito. – E riu um pouco nervoso com o nonsense da forma descontraída ao extremo com a qual tratavam os representantes de um dos maiores conglomerados de moda e cosméticos do mundo - Onde você pensou então?
- Naquele pessoal lá do Jardim Canadá, que ganhou o prêmio com a cerveja com pequi.
- Mas eles só abrem fim de semana não?
- Ai é que está. Nossa aluna funcionária aqui é prima primeira do cervejeiro lá e já conversou com ele que acabou de ligar falando que já está lá e já está preparando o almoço/degustação da cervejaria pra gente.
- Nossa, que eficiência hein Dona Carol. Muito bem... Bom, como vamos então. Você vão comigo ou...
- Eu vou com os dois no carro da faculdade. O Tomás e a Dorothea podem ir com você. Pode ser?
- Claro.
- E os meninos vão com a Carol. Pode ser Carol?
- Pode sim. – Carol aproveitara a possibilidade de falar e apresentou Karine para Roland que estava mais perto e atento à conversa sobre o almoço. Como Roland não falava português direito, aproveitou para esbanjar o francês cultivado nos seus dois anos de intercâmbio que fizeram durante a adolescência na França. Dorothea que participava da conversa entre Tomás e Antônio Pedro olhou para Carol com medo de que ela fizesse alguma bobagem. No entanto, Rolando com um sorriso extremamente gentil, se esforçou para responder em um português lento e pensado.
- Muito prazer. – Karine respirou aliviada, pois não falava nada de francês.
- O prazer é todo meu. – Roland já era um homem de quase sessenta anos, com modos fluídos e leves. Vestia-se também de maneira leve, apesar de um certo formalismo. Nisso contrastava com Antônio Pedro, com aparência bem mais jovem, mas com o ar formal e incisivo que era de se esperar do tecnocrata corporativo de alta patente.
- Vocês possuem uma cidade muito interessante aqui em Belo Horizonte. – Roland seguia em seu português lento e pensado. – É a primeira vez que venho aqui. A visão sobre o Brasil é muito a visão do Rio de Janeiro. Mas aqui, apesar de muitas coisas semelhantes, é também muito diferente. E principalmente as cidades históricas. Vi fotos antes de vir e pretendemos ir a Sabará e Ouro Preto antes de voltarmos.
- A sim, é muito bonito. Tem São João Del Rey e Tiradentes perto também, e Diamantina e Serro um pouco mais longe.
- Sim, vi essas cidades, mas vão ter que esperar um pouco. Mas Diamantina é uma visita programada também. E... Paracatu?
- Sim Paracatu. – Karine não entendeu a associação entre as cidades mas não procurou aprofundar no assunto que sentia não lhe dizer respeito.
- Mas agora, Ouro Preto. – Roland parou um pouco de falar cansado do esforço de pensar em português, e ficou olhando para Karine com um sorriso meio perdido no meio do rosto. De súbito, começou a falar de novo, como se iluminado por uma lembrança.
- Vi o trabalho de vocês inspirado em Ouro Preto. Gostamos muito. Me disseram que você se inspiraram também nas técnicas de Apollinaire. – O mesmo sorriso cheio de gentileza e leveza voltou ao rosto de Roland. – Ele foi meu professor de desenho. Isso a trinta e ... quarenta... Ah, muitos anos – falou com um gesto de deixa pra lá e um sorriso agora mais cheio de alegria da lembrança do antigo professor e da piada sobre sua própria idade. – Vou aproveitar para revê-lo também.
Theo chegava com Fernanda sem saber muito bem o que acontecia. Renart, em Francês, apresentou Fernanda, e falou algo mais que parecia se referir à joalheria de sua mãe. Roland fez menção de que entendera a que Renart se referia e comprimentou Fernanda com a mesma gentileza com a qual cumprimentara Karine.
- Bom, todo mundo aqui. Vamos então, tomar uma cervejinha, lá no primo da Carol. Eu vou com quem?
- Comigo e com a Dorothea, Tomás. Você sabe onde é? Eu já fui uma vez, mas não sei se sei chegar lá não. Nem a Dorothea.
- Hummm, não.
- Theo, você sabe onde é?
- Sei sim, posso ir com vocês então.
- Tá bom então. Tomás, tudo resolvido. Vamos? – João Celestino se voltou para os convidados – Podemos ir? – Estes concordaram também e foram para os carros.
No trajeto, Karine voltou a ficar pensativa sobre a fala de Tomás. Pensou também no fato do trabalho deles já ter sido apresentado para pessoas de fora da Maine Coon mesmo antes de desenvolverem um modelo final. Só uma versão inicial da Jaguatirica havia ficado pronta, e mesmo assim precisava de uma série de correções, e principalmente de um modelo de produção menos artesanal. A Suçuarana e a Canguçu ainda eram somente desenhos. O conceito e as referências estéticas, que de certa forma, era o que mais importava já estava bem avançado, praticamente prontos. Mas não entendia ao certo o que Tomas pretendia com os representantes da mega empresa. Percebera que apesar da gentileza e da descontração de Roland esse mantinha a atenção em tudo que pudesse ser um pouco diferente do convencional ou do clichê. Percebera que ele reparara por um pequeno instante no colar de hematitas de Fernanda, mas de forma quase imperceptível em sua atenciosidade e gentileza. Mas ela sabia. Estava ali a negócios. E não deveria ser um negócio qualquer, pois ao que lhe parecia, eram funcionários de alto escalão demais para uma conversa inicial de convênio com uma faculdade. E pela preparação de Tomas para a palestra deveria ser mesmo. Obviamente, a palestra pareceria ter tido nenhum impacto em Roland e Antônio Pedro. Nesse por não ser seu interesse, naquele por já estar já a muito familiarizado com a discussão e não ver nela nenhum desvelamento, como fora para Karine. Saiu de seus pensamentos para interromper Carol que falava sem parar sobre algo que ela nem imaginava do que se tratava, pois não prestara nenhuma atenção.
- Carol. Nossa, quase que você me mata de vergonha. Eu não sei nada de francês. Você sabe disso. E se o Roland começasse a falar francês também, como eu ia fazer?
- Ah Ká, deu certo, relaxa. Você tá tensa demais hoje. Que que te aconteceu?
- Nada não. Sei lá. Você entendeu o que está acontecendo? Porque esse pessoal está aqui. Eles mostraram o projeto das canetas para eles. Eles não mexem com perfume?
- Também não entendi não – Carol ficar um pouco mais séria agora – Mas não sei se é para a gente entender isso agora também não Ka. Deixa a coisa fluir.
- Sei não. Sei que a gente não precisa saber disso mesmo não, e que o Tomás não ia precisar esconder isso da gente, mas acho estranho. O que você acha Fernanda.
- Eu não peguei a conversa não. Mas vi que eles falaram alguma coisa da Shanti e o francês parecia que sabia da minha mãe. Então, se vocês não entendem o que eles querem com uma faculdade de referência como a Allons, imagina então com uma joalheria pequena como a da minha mãe.
- E ele reparou no seu colar que não combina com nada também. – Carol, agora sem a agressividade aberta, e a intimidade, adotara a provocação cordial para com Fernanda.
- Combina comigo. Quer combinação mais importante.
- Pois é. Eu vi isso também. Engraçado né. Nunca deve ter visto uma hematita na vida. Nossa, naquele dia que a gente foi na casa do Tomás vocês repararam que ele tinha um terço com as bolinhas da Ave-Maria de Hematita e o resto de prata? Nossa, eu gosto muito do Tomás e acho ele TOP, mas nunca vi coisa mais brega.
- É mesmo. Tinha mesmo, vi sim, mas não sabia o que era. Vi que era um crucifixo. Estava em cima de uma arca de jacarandá antiga não é?
- Isso mesmo.
- Nossa Karine, você reparou e guardou isso. Pois é. O Fernanda, você sabia que a Karine aqui tem uma paixão platônica pelo nosso reitor e chefe. Tem paixão platônica com ele mas dá mesmo é para o...
- Ai Carol, para com isso. – Karine interrompeu Carol antes dela noticiar para Fernanda que ainda não sabia dos fatos. Na verdade, ela só contara para Carol depois da segunda vez que ficaram juntos, três dias antes, comentando sobre o interesse que ele parecia demonstrar nela e na possibilidade de ficarem com outros homens. E Fernanda era um dos motivos disso, por seu namorico extra-triângulo amoroso com Theo. Então Karine não sabia ao certo como se posicionar a respeito dela. – Aliás, pelo que eu sei, quem está pensando muito no assunto é você.
Fernanda sabia que elas falavam de homens, mas sabia também que não deveria forçar seu conhecimento sobre o assunto. Ainda digeria o fato de ter ficado com as duas e Theo e de ter ficado novamente só com Karine e Carol. Ficar também com Theo mais duas vezes, mas isso não era novidade para ela. Não gostara muito das duas sozinhas. Com a presença de Theo era uma coisa diferente. Uma orgia. Com as duas era só uma coisa lésbica e meio sem sentido. Procurara também um ex-namorado do colégio por quem sentia muita atração antes. Mas fora ruim. Ela era outra pessoa, com outros interesses, outros assuntos, outra postura frente à vida. A vida anterior não lhe cabia mais. Ainda não estava onde queria, mas voltar não era opção.
- Bom gente, chegamos. Vamos lá tomar uma cerveja ao invés de trabalhar. Viva o Roland que nunca viu hematita. Ka, como vamos fazer para voltar. Você vai beber ou eu?
- Não sei, eu queria tomar uma cervejinha. Não vou malhar hoje mesmo.
- Nossa, eu também queria. Você vai ver. Essa degustação que ele prepara é ótima. E eu expliquei a situação também e se tem coisa que meu primo não é é bobo. Sabe que isso vai render para ele bem mais que o dinheiro do Tomás.
- Eu posso voltar dirigindo. Não gosto de beber. – Carol e Karine olharam surpresas para Fernanda. Nunca pensaram no fato de que aquela menininha que tinha feito dezoito anos a cinco meses tivesse carteira.
- Mas você tem carteira?
- Hunrum. Chegou ontem. Olha aqui. – Mostrou a carteira com uma foto sua com cabelos escorridos e um olhar de piedade para as duas.
- Nossa, então é hoje meu amor. – Carol sorria e bateu na mão de Karine comemorando.
Saíram do carro. Lá fora, perceberam que o dilema era o mesmo também nos outros carros. Renart e o pessoal da Mahalila estavam com motorista. João Celestino, que teria que voltar para a faculdade ficou para voltar dirigindo também. Depois se arrependeria, pois Dorotheia, beberia somente, um copo de uma das cervejas e dois dos pratos e ficaria com cara de paisagem escutando os outros que se embriagavam.
Esperavam na rua sem movimento debaixo do sol em frente à porta fechada de uma entrada que parecia ser mais a porta de uma casa. Estavam em dúvida se era ali mesmo. Carol ligou para o primo que atendeu para avisar que chegaram e logo desligou. Uns dois minutos depois o portão da Taverna Luar da Montanha se abria. O portão dava para um amplo quintal com grandes árvores com lâmpadas e pequenos holofotes coloridos que à noite iluminavam suas copas de baixo para cima. Era uma visão meio estranha durante o dia, com as mesas empilhadas na parede perto da casa junto a uma mangueira e outros materiais para lavá-las. Na verdade a entrada que era tão interessante durante a noite estava bem feia.
- Desculpem a bagunça gente. Nós só vamos abrir de noite. E como a Carol me falou em cima da hora não deu muito tempo de arrumar. Tive que arrumar aqui as pressas e ir pegar o pessoal que trabalha aqui comigo para ajudar a fazer os pratos que harmonizam com as cervejas que a gente vai oferecer.
- Não tem problema não Renato. Deixa eu te apresentar. Estes aqui são os meus professores, Tomás, Renart, Dorothea, e o João. – Renato cumprimentou-os e agradeceu por terem escolhido a cervejaria dele para virem. Estes são Antônio Pedro e Roland, que são diretores da Mahalila. O Roland é do movimento craftbeer lá da França e ouviu falar que havia um movimento forte na área aqui em Belo Horizonte. Então eu achei que o melhor lugar para eles virem era aqui.
- Ah tá. Nossa gente. Eu ficou é muito honrado com a presença de vocês aqui. Peço para desculparem a pressa na organização aqui, mas podem ter certeza que a cerveja mesmo que é o mais importante vai estar no ponto certo. Eu acabei de terminar uma hoje mais cedo, que ia engarrafar, mais deixei aqui para a gente. É uma novidade. Vocês vão ser os primeiros a tomar.
Renato pretendia mostrar a área de produção da cerveja, mas Carol desaconselhou e falou que achava melhor mostrar mais tarde pois o pessoal estava com fome. Eles então se encaminharam para uma varanda bem tranqüila onde se acomodaram em uma grande mesa com o tampo feito com grossas tábuas de madeira, e cadeiras pesadas de espaldar alto acolchoadas com couro. Um rapaz veio trazendo diferentes tipos de pães com cores, texturas e tamanhos diferenciados, mas todos ainda crepitando e exalando um perfume inebriante de pão fresco, três tipos diferentes de queijos e pequenas potinhos com manteiga e pastas de queijo com ervas.
- Bom gente – Renato começou em tom um tanto quanto professoral – já são quase duas horas da tarde e acho que a gente de ir logo ao começo da apresentação das cervejas. Em primeiro lugar a gente aqui faz todas as nossas comidas também. Os pães são assados aqui mesmo, dentro de uma tradição de associação entre pães e cerveja, pois ambos são na prática, muitos semelhantes, com a diferença de que um está em estado sólido e outro em estado líquido. Os queijos e as carnes são produzidos na fazenda da minha família em Sete Lagoas, e as ervas são plantadas aqui mesmo. Só algumas frutas que ainda não tenho em Sete Lagoas e parte dos grãos e dos tubérculos que usamos para fazer a cerveja, e o lúpulo, é que vêm de fora. Para as harmonizações usamos duas estratégias. Tanto a harmonização por oposição, no caso da cerveja ressaltar o paladar da comida e essa a da cerveja, ou por proximidade, com a cerveja com propriedades sensoriais semelhantes as dos pratos, buscando uma harmonização mais aconchegante. Esse é o caso dessa primeira cerveja que vocês vão provar que são para harmonizar com os queijos. – Continuou falando enquanto os convivas atacavam os pães com os queijos não menos perfumados. Na cerveja, quase sem amargor, contendo diferentes grãos que davam uma base variada ressaltava um suave perfume de rosas oriundos jambo e da batata doce que também compunham o líquido gelado e macio. A articulação do queijo e dos pães com a manteiga branquíssima com a cerveja os relaxou profundamente e os colocou no clima do banquete que viria a seguir. Uma cerveja agora mais frisante, feita a base de maltes de trigo e cevada, aromatizada com guaraná, flores, e um blend de lúpulos mais florais que amargos escoltava agora filés de tilápias frescas assadas com camarões e cebolas e um molho agridoce feito à base de marmelos e jacas. Nessa altura, Renato começou a falar sobre os florais de minas e de como eles serviam de base para articular as sensações organolépticas da cerveja com os efeitos sobre o humor das pessoas, e algo mais. O peixe a e cerveja foram então substituídos por uma cerveja agora mais tradicional de cevada e lúpulos diversos, mas com um pequeno acréscimo de carqueja no lugar de alguns lúpulos amargos. O resultado dava maior leveza para a cerveja, além de uma ar de indefinição na compreensão da cerveja, que era escoltado por tenras lingüiças mista com carne de vitelos e carneiros, acompanhadas com molho de castanha de caju com um suave toque de mostarda. Renato continuava falando, agora sobre a não simetria do barroco mineiro, principalmente a inserção de erros propositais nos projetos arquitetônicos de Diamantina, que se baseavam na humildade perante a perfeição da obra de Deus, e outros aspectos das cidades mineiras.
Como as porções eram generosas, e o serviço da cerveja o era ainda mais, já estavam todos um pouco bêbados. Como estavam com fome pela hora adiantada, e começaram a beber rápido, a cerveja também subiu rápido. Depois que Tomás e Renart haviam comentado e completado partes do que Renato falara, e Carol também o lembrara de algo que falara em outra degustação da qual ela participara, todos já conversavam entre si e não prestavam atenção direito no que Renato falava. Os que estavam engajados em conversas paralelas já se sentiam um pouco incomodados por Renato os estará atrapalhando. Mas tudo corria em um clima de extrema exaltação e felicidade. Renato então, após retirar os pratos e copos com as lingüiças e cervejas restantes, continua, agora já um pouco mais feliz.
- Bom gente, essa agora é o carro chefe da casa. – Começou a falar sobre a cerveja com a qual tinha ganho o principal festival brasileiro de cervejas artesanais, fato do qual se sentia muito orgulhoso e foi explicando sobre a composição da cerveja com produtos exclusivamente brasileiros, com exceção do trigo, mas que tomara o cuidado de procurar um trigo especial argentino, da região da patagônia, com as propriedades específicas que ele queria, e mais os aspectos da comida mineira, dos diferentes modelos de apropriação do território mineiro e de suas comidas e por ai foi.
- Só uma coisa a respeito dessa cerveja. Muitas pessoas a descrevem em função de ser uma cerveja que usa o pequi, e que isso fica meio que um chavão sobre mineiridade. Mas não é só o pequi que está aqui não, temos também, e isso é o principal ponto, a substituição total do lúpulo por um blend de ervas de Minas. Bom, e como a idéia é fazer um resgate da culinária mineira, a gente vai servir ela com um assado de paca e mangaritos cozidos com cajuzinho do campo. Vocês vão ver que maravilha.
As travessas com quatro pacas assadas e já destrinchadas rodeadas pelas pequenas bolinhas de mangarito coizidas com o molho onde se viam filés de minúsculos cajus chegaram exalando um perfume que adentrava tão profundamente nas narinas dos comensais que mesmo os que já se sentiam enfastiados se propuseram a provar um pouco, que logo virava um muito da deliciosa e suculenta carne quase doce das pacas que harmonizada por contraste com a cerveja com o forte sabor do pequi e os armargores misteriosos, explodiam na boca.
Já estavam bêbados a essa altura. Inclusive os próprios convidados. O ambiente de descontração que buscam já estava instaurado na prática, inclusive no que dizia respeito às mãos de Renart que já se repousavam pelas pernas de Karine, que repousava sua mão sobre a mão do chefe e professor, e sob o olhar cheio de ódio de Dorothea, uma das únicas que não estava feliz naquele ambiente. Dorothea não comia já desde o segundo prato, e só provara até à terceira cerveja. Ao serviço da cerveja principal da casa, já estava totalmente desgostosa quanto ao ambiente e quanto à ação de Renart. Os poucos encontros que tiveram foram sendo substituídos por um tratamento respeitoso e amigável de um Renart esquivo e superficial. Ela julgava que isso se devia ao processo de mudança na vida de Renart, que ainda não digerira totalmente o processo de separação e término do casamento. Embora seu julgamento estivesse correto, agora ela percebia elementos para uma outra hipótese explicativa.
Fernanda, embora houvesse se proposto a não beber, ficara tentada com o aroma da cerveja e provara um pouco de cada uma. Embora bebe-se um pouco mais do que um golinho de cada só para provar, não fora o suficiente para se embriagar, mas o suficiente para deixar suas bochechas rosadas. Ela se entretinha com Theo, que já passara do estado de embriagues para o estado de sonolência, pelo excesso tanto da comida, quanto da bebida. Carol também se divertia com Theo, tentando animá-lo com demonstrações contidas de carinho. Seu estado de embriagues a levara a um torpor lânguido onde ela ficara tranqüila, mas sem perder o ar malicioso no olhar, principalmente quando vira as mãos de Renart sobre as pernas de Karine. Olhara primeiro para amiga, e depois para Renart, que procurou o destino daquele olhar de Karine. Carol encarou o olhar de Renart com um sorriso de quem surpreende uma criança fazendo algo ingenuamente proibido, e continuou o encarando de forma desafiadora.
A última cerveja chegara. Apesar de ser uma cerveja doce, não tinha nada das cervejas pretas de sabor tostado. Era mais uma cerveja adocicada com sabor de salada de frutas, ressaltando aromas e sabores de laranjas, bananas, mamões, e maçãs. A cerveja acompanhava um grande Petti Gateau de chocolate branco recheado com calda de cupuaçu, pedaços de morango rodeada de gomos de tangerina sobrepostos por um molho de romãs e hortelãs.
A maior parte dos comensais só provou a cerveja e comeu o doce pela metade. Renato falara alguma coisa brevemente, mas ninguém prestou muita atenção. Já estava ficando tristes de tanto comer. A sobremesa frutada e a cerveja leve lavaram o paladar do grupo e deu uma maior sensação de leveza. Mas só na boca, pois o estômago estava bastante pesado.
Os convidados também pareciam satisfeitos. Antônio Pedro já não conversava mais, embora ainda procurasse manter a atenção ao que ocorria ao seu redor, diferente de Roland, já de olhos fechados, entoando levemente canções em um dialeto estranho, que se assemelhava ao francês. Tomas apesar de ter bebido bem, ainda estava um pouco preocupado com os visitantes, e procurava manter-se atento, embora já houvessem momentos em que fechasse os olhos e se deixasse viajar no leve torpor da refeição pantagruélica. Dorothea só esperava uma oportunidade para se levantar da mesa. Aquela situação toda, a bebedeira, a falta de modos e de solenidade tanto por parte dos seus colegas e alunos quanto por parte dos convidados, além é claro do comportamento de Renart, a deixaram enojada. Só não se permitia levantar e sair dali naquele mesmo instante em função de condicionamentos profundamente entranhados, desde sua tenra infância, sobre como se comportar, principalmente à mesa, e de como não reagir nunca de forma escandalosa, mesmo frente à maior grosseria ou desmedida. Era uma mulher de alto nível. Vinha de uma família conhecida e tradicional. Se Renart queria se chafurdar com alunas pervertidas, o problema era dele. Ela que não se envolveria mais com pessoas com esse tipo de comportamento. De certa forma estava mais bêbada que muitos ali, só que não de cerveja, mas embebida em ódio e desprezo profundo.
O único realmente lúcido e que acompanhava de forma tranqüila o desenrolar dos fatos era João Celestino. Por sua posição na mesa não percebera a mão de Renart, embora percebesse claramente seus olhares e sorrisos, e o olhar de ódio de Dorothea. E se deliciava com isso. Não que não gostasse de Dorothea, nem que aprovasse o comportamento de Renart, mas achava que a colega de trabalho precisa... se reciclar um pouco. Percebendo que os convidados já dormitavam, levantou-se e procurou um Tomas já semi adormecido também e propôs que encerrassem as atividades. Já era quase cinco horas da tarde, e o tempo começara a esfriar. Tomas assentiu e se levantou tentando recompor e conversou com Antônio Pedro se poderiam encerrar o almoço. Este assentiu com um ar ao mesmo tempo satisfeito e aliviado. Roland era só sorrisos, e se levantou também com um pouco de esforço. João Celestino a essa altura já havia resolvido todas as pendências e pagamentos com Renato. Todos já haviam se levantado e se encaminhavam para a rua. O céu começava a apresentar tons de rosa e laranja, em meio a nuvens finas e esparsas. Enquanto o grupo caminhava olhando para esse céu que iniciava seu processo de transformação, só João Celestino, que caminhava observando o grupo que tentava alcançar, percebeu uma Dorotheia que se aproximou de Renart e sussurou dez segundos de veneno no seu ouvido. Este, sob o efeito do veneno, inicialmente ficou paralisado, mas a paralisia logo se transformou em um ar de nojo, desprezo e desconsideração, e seguiu caminhando junto ao resto do grupo.
Lá fora, foram-se dividindo para ver como retornariam. Tomas levaria os convidados. Os alunos iriam juntos no carro de Carol, com Fernanda dirigindo, e João Celestino levaria Dorothea e Renart. Este agradecera à João mas disse que iria com os alunos.
Na ida, João Celestino estava louco de vontade de comentar ou perguntar algo a Dorothea, mas conseguir se conter frente à estilista com a coluna ereta e o ar de superioridade. Só perguntou se de lá ela iria para a Faculdade com ele ou se queria que ele a deixasse em algum outro lugar.
- Pode me deixar em casa, por favor.
- Certo.
Em casa Dorothea não se permitiu sentir mais nada. Tomou alguns remédios, fechou a persiana das janelas do quarto, não deixando entrar mais nenhuma luz, e dormiu profundamente em lençóis importados e aromas de Lavanda de Provence.