Viagem por São Paulo: Crônica de neves de antanho (Cap. XI)
Até a virada de novembro para dezembro, valendo-me de um dos termos que aprendi ao estudar forçosamente para a magistratura (provando que não sou de todo inútil), Nelly e eu namorávamos de jure. A denominação “namorados”, porém, era empregada por nós muito raramente – e, quando o era, o fazíamos de facto (emprestando mais um termo da magistratura para mostrar-lhe que não guardo qualquer rancor). Nelly não era minha namorada propriamente dita, tampouco eu era seu namorado; éramos irmãos de alma.
Nosso contato físico resumia-se aos beijos que aplicávamos na testa, nas faces, nas mãos um do outro, e quando vinha ela deitar-se em meu colo e eu estudava aqueles cachos de cabelo acastanhados minuciosa e delicadamente. Nunca ousamos tocar nos lábios um do outro – talvez por ambos nos julgarmos sagrados demais ao comungarmos assim dos sacramentos do mais puro e abnegado amor. Para mim, aquela garota era um ser celestial que baixara à Terra após ter sido criado única e exclusivamente para mim – e, presunçosamente (admito-o), quero crer que ela achava o mesmo de mim à época. Nelly era uma santa: e como já disse o poeta, “às santas não amam-se – adoram-se.”
Avançados nesta mútua adoração, sagramo-nos com aqueles apelidos tão comuns entre os amantes, inteligíveis apenas a eles e a seus corações. Passei a ser “querido” para ela; já eu chamava-a de “bebê”. Nos esquecíamos de nossos verdadeiros nomes constantemente, e explodíamos em gargalhadas.
“Por mim, não ligo de ser seu querido enquanto minha vida durar”, dizia-lhe quando isso acontecia.
“Tampouco eu de ser seu bebê”, respondia-me.
Graças aos incontáveis livros que lera (muitos dos quais havia lido eu também), tinha ela uma sabedoria incomparável, ainda que difusa; fruto de leituras indiscriminadas e sem planejamento ou foco prévios. Conversávamos de poesia, literatura em geral, artes, história, geografia – ambos sonhávamos com viagens aos cantos mais pitorescos do mundo, redigindo nossos itinerários imaginosos por diferentes países. Certo dia trouxe ela consigo um guia da França, e mostrando-me fotos das muralhas de Carcassonne disse-me, com estrelas nos olhos:
“Vejo esta cidade em meus sonhos.”
Peguei minha caneta, e escolhendo a mais bela dentre as fotos, desenhei simplistas representações nossas. “Veja, somos nós!”, exclamei entre gargalhadas.
Seria inútil tentar descrever, com a precisão que a cena merece, o jeito que ela sorriu para mim, mostrando aquelas duas fileiras de marmóreos dentes, abraçando-me com aquele jeito de criança…
A noite curvava-se ante nosso domínio; as ruas, durante o dia, eram profanadas pelo vulgo, mas quando o Sol se punha Nelly e eu reinávamos, revestidos da púrpura e das regalias de nossos sonhos e de nosso amor. Sob nossa autoridade, os cinzentos blocos de pedra onde viviam os paulistanos adquiriam encantadoras cores, os miasmas do Tietê transmutavam-se em fantásticas criaturas aquáticas, o futuro abençoava nossa união e Deus nos sorria. Cantávamos, brincávamos, ríamos, sempre em comunhão – sempre em uníssono; cada partícula de meu ser orbitava ao redor daqueles lábios, daqueles dentes perfeitos, daqueles cachos rebeldes, do gracioso e um tanto quanto avantajado nariz de estátua, da voz musical e cadenciada… e principalmente daqueles olhos, tão grandes, tão melancólicos mas imbuídos de pueril doçura…
Então era assim, amar e ser amado…!
***
Um dia disse-lhe:
“Eu sou Musset, e você é George Sand.”
“Se diz isso, não coloca confiança o bastante em nosso amor, querido”, respondeu. “Não se lembra de como terminaram Otávio e Brígida?”
“Como me esqueceria? Mas certo estou de que seremos diferentes; jamais deixarei que nosso amor seja contaminado por intrigas internas ou externas.”
“E ficaremos juntos até sermos um casal de velhinhos excêntricos?”
“Até a morte, e depois dela.”
“Como cadáveres sepultados no mesmo túmulo?”
“Sim, por mais mórbido que isto seja. Use esta sua linda boca para falar de coisas mais belas!”
“Faz parte de minha natureza”, riu-se ela. “Lembra-se? Sou um fantasma.”
“E um dos mais encantadores que já conheci.”
Encerrei o diálogo beijando-lhe a testa, a larga e altiva testa de deusa romana, redobrando a intensidade de meus votos de que daríamos um fim muito mais feliz a Otávio e Brígida em nossa versão da “Confissão de um Filho do Século”.
[Continua no Cap. XII]