Viagem por São Paulo: Crônica de neves de antanho (Cap. X)

Ao cair da noite, segui novamente ao parque e encontrei Nelly sentada no mesmo banco, com as mesmas roupas do nosso primeiro encontro. Carregava comigo minha inseparável maleta contendo meus versos e o manuscrito de minha noveleta.

“Você veio!”, cumprimentou-me alegremente, abraçando-me forte. Sua efusividade sempre pegava-me desprevenido, mas gradualmente aprendi a apreciá-la.

“Não é do meu feitio decepcionar a uma dama.”

“Achei que viria vestido de diabo novamente, entretanto… Se o soubesse, teria trocado de roupa.”

“Decepciono-a?”

“Não. Ainda é um moço bonito, fantasiado ou não.”

O elogio imprevisto fez com que minhas bochechas ficassem rubras. Sentei-me, e outra vez ela veio a deitar-se em meu colo com aquele intempestivo movimento de criança, carregado de inocência.

“Conhece-me faz apenas um dia…”, disse-lhe, pouco a pouco acostumando meu tato com aqueles cachos. “O que diria se eu dissesse que sou um assassino, e nesta maleta trago incontáveis instrumentos para tirar a vida de lindas garotinhas feito você?”

“Não pode matar aquilo que já morreu”, respondeu-me, sorrindo. “E se é mesmo um assassino, deve ser o pior do ramo; procuro-lhe ódio no olhar, mas só vejo ternura quando contemplo seu rosto.”

“É uma menina bem perspicaz, Nelly – não tenho como negar. Mas por que diz que já está morta?”

“Porque estou. Prometi contar-lhe minha história, não? Pois fique sabendo: sou um fantasma. Há exatos cem anos já fui assassinada neste mesmo local, e desde então apareço aqui toda noite, pois não posso descansar em paz no Além enquanto não for vingada.”

“Para um fantasma”, ri-me, “é bem tátil. O que tem você de sobrenatural, tenho eu de assassino.”

Ela suspirou, e a tristeza subentendida em seus olhos tornou-se mais perceptível. “Mas é uma mentira muito mais agradável de se ouvir que a verdade…”

Contou-me, então, sua verdadeira história. Tal como eu, Nelly viera ao mundo sem que o pedisse, sendo criada em meio à frigidez e à apatia de uma família que, igualmente, não tinha pedido por sua vinda – e que não se cansava de lembrá-la disto sempre que punham-lhe os olhos. Ao contrário de suas injúrias recrudescerem-lhe o gênio, porém, sua sensibilidade amplificou-se de modo quase que febril por viver trancada sem qualquer supervisão em meio aos livros, que ensinaram-lhe a sonhar e inflamaram-lhe a imaginação. Enxergando-se como uma daquelas princesas dos contos de fadas, mas querendo manter sua identidade própria, saía de casa escondida à noite sem aguardar por um príncipe que a resgatasse. “A noite não discrimina ninguém”, explicou-me ela, “e estou livre para ser eu mesma.”

Algumas lágrimas vieram a escorrer-lhe dos olhos.

“É o primeiro estranho para quem conto minha história”, chorava, “não sei o que me atrai tanto em você. Nossos pesares são estranhamente semelhantes… Talvez seja isto… Mas se houver algo mais não me importa. Aceita de verdade ser meu amigo?”

Beijei-lhe a testa, respondendo em seguida:

“Não sou seu amigo. Sou seu irmão.”

Abri minha maleta, e com Nelly sem deixar meu colo li alguns de meus versos e trechos de minha noveleta; aqueles olhos cintilando de encanto a cada palavra lida causaram-me uma impressão indelével na alma, e ainda hoje me é custoso tirá-los da memória. Passamos assim o resto da noite a nós destinado: eu lendo a meus próprios escritos com uma autoconfiança que não cria ser capaz de ter, e ela absorvendo a cada palavra, maravilhada, como se ouvisse dos vates o mais afamado…

Nunca tive a chance de dizer isto a Nelly, pois era algo que sempre me escapava quando de fato a via; mas durante o início de nossas relações ela veio a recordar-me de Lady Fuchsia, dos livros de Mervyn Peake – aquela triste princesa gentil, mas negligenciada, percorrendo sozinha os ancestrais salões dos domínios de sua família, ansiando viver eternamente num de seus próprios sonhos…

E, verdadeiramente, tal como Lady Fuchsia, ela fazia com que eu “respirasse feito um afogado”; pois sentia-me como se meus pulmões fossem arrebentar de tanta afeição que lhe dedicava.

[Continua no Cap. XI]

Galaktion Eshmakishvili
Enviado por Galaktion Eshmakishvili em 24/05/2012
Reeditado em 19/10/2022
Código do texto: T3685624
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