Viagem por São Paulo: Crônica de neves de antanho (Cap. IX)
Andei até chegar a um parque que sempre costumava visitar, seja a sós ou acompanhado por T…; à noite, com os postes acesos a iluminar fracamente a vegetação auxiliados pelo pálido luar, achei-o mais belo e pitoresco do que durante o dia.
Sentei-me num dos bancos e lá fiquei a pensar sobre meu fado; por que as Musas visitaram-me, em primeiro lugar? Eu, o mais indigno de todos os poetas, que não consegue nem ao menos fazer sua voz ser ouvida pelas multidões e pena para publicar uma mísera noveleta de pouco menos de 80 páginas? Melhor seria eu voltar à minha cidade e não mais importunar a meu mestre – já abusei demais de sua boa vontade e hospitalidade. Uma carreira na magistratura não me parece assim tão má, de repente…
Tal litania de lamúrias foi interrompida quando ouvi uma voz feminina bem a meu lado:
“Às vezes penso ter vindo da Lua.”
Virei-me, espantado, para saber quem era minha misteriosa (e aparentemente lunática) interlocutora; sem que eu percebesse, sentara-se junto a mim uma garota pálida e pequenina, vestindo uma blusa roxa de longas mangas, calças azuis e sapatos escuros. Seus cabelos, que mesclavam o castanho e o louro, embaralhavam-se numa profusão de cachos que terminavam em graciosos anéis a cair-lhe pouco depois da altura do pescoço. Mesmo tendo eu dirigido minhas atenções a ela, não parava de fitar a Lua; parecia uma criança, mas era apenas três anos mais nova do que eu, como posteriormente veio a dizer-me.
“Tudo aquilo que se perdeu vai parar na Lua”, continuou ela, não permitindo-me adivinhar se falava comigo, ou com a Lua, ou consigo mesma, “li num livro certa vez. Porém, há muito vim a perder-me de mim mesma, mas parei aqui, em vez de lá – por algum acidente, quero assim crer.” Sua voz era doce, muito suave e musical – mas tinha uma perceptível nota pesarosa. “Que acha disso?”
Finalmente ela olhara para mim e pude discernir seu rosto – ovalado, de lábios finos e imensos olhos negros, nos quais uma chispa de tristeza volta e meia se deixava entrever. Senti que aquela garota tresandava a bondade e a melancolia em doses iguais, e que não me proporcionaria perigo.
“Eu acho”, respondi eu, brincalhão, “que uma garota como você não devia sair por aí interrogando o diabo…”
“Não me surpreenderia se ele respondesse às minhas perguntas”, disse-me. “Fi-las a Deus, mas ele nunca me diz nada. Está perdido também?”
“Pode-se dizer que sim… Mas não venho da Lua e tampouco do Tártaro. Sou apenas mais um artista da fome que veio tentar a sorte aqui e saiu decepcionado.”
“Das duas, uma: é poeta ou pintor? Ou ambos?”
“Esboço uns versos de vez em quando. Escrevi uma noveleta mas não há quem a queira nem que fosse escrita com ouro.”
“A poesia é uma arte moribunda, ainda que nobilíssima. Gostaria que me mostrasse algum escrito seu. Devem ser ‘tão alegres quanto Arlequim assistindo ao próprio enterro’.”
“‘Macário’”, sorri.
“Exato.” E encarou-me novamente com aqueles grandes e plácidos olhos tristes. “Me escreverá algo um dia? Nunca ninguém me escreveu nada – se bem que nunca conheci um poeta antes.”
“Tampouco eu conheci alguém que se desgarrou da Lua; mas como posso escrever sobre uma estranha? Precisava conhecê-la para fazer-lhe uma descrição fidedigna.”
“Por que não se desafia?”, questionou, dirigindo-me um terno sorriso de alvíssimos dentes. “Toda produção artística baseia-se no desafio – tente escrever algo com base nas impressões que tem de mim, e não naquilo que de fato sou.”
“Tentarei. Meu parecer é que é uma garota gentil – demasiadamente gentil, porém triste. Tenho razão?”
“Posso dizer o mesmo de você – de outra forma, não teria vindo falar-lhe. Permite-me?”
E, de forma súbita e célere, deitou-se em meu colo. Meu coração batia acelerado; eu jamais havia sentido o toque do sexo oposto antes em toda a minha vida, com exceção das carícias de minha mãe há tantos anos. Nem ao menos C… consentira em dar-me um único beijo ou abraço! E agora lá estava eu, com aquela penserosa e enigmática criança a tratar-me tão intimamente quanto a um irmão! Fiz-lhe tímidas carícias nos volumosos cachos – pareceu não se importunar. Permanecemos em tal atitude por minutos, ambos indispostos a romper o silêncio; finalmente tomei a palavra, depois de muito hesitar:
“Mas quem é você, pequena garota que parece ter sofrido tão desproporcionalmente à idade!?”
“Apenas haverei de dizê-lo se prometer ser meu amigo”, replicou-me com a voz sonolenta. “Não ligo que esteja vestido de diabo; aceita ser meu amigo?”
“Aceito – e não só isso, como lhe aparecerei em minha verdadeira forma!”, ri-me constrangido. As palavras se atropelavam em minha língua. “Por que não me acompanha até minha casa? Já é tarde…”
“Não”, interrompeu-me, “não posso. Devo retornar à minha antes que deem por minha falta. Venha encontrar-me novamente aqui amanhã, sim? Mas posso apenas sair durante a noite…”
“E por quê?”
“Conto-lhe amanhã.” Levantou-se lenta e molemente de meu colo, apertando-me as mãos com ternura. “Obrigada por aliviar-me o peito de minhas tristezas; espero ter-lhe feito o mesmo.”
Deu-me um beijo numa das faces, fazendo com que prontamente se ruborizassem, e seguiu seu caminho. Antes que se afastasse por completo interpelei-a:
“Espere! Não me disse seu nome.”
“É Helena. Helena M…. Pode me chamar de Nelly.”
“O meu é Galaktion. Na verdade é meu pseudônimo; meu verdadeiro nome é —. Chame-me daquele que lhe soar melhor.”
“Gosto de Galaktion. Sabe escolher nomes bem. Até breve, meu precioso amigo! Estarei esperando-o aqui.” E foi-se.
Permaneci sentado, tão rígido feito uma estátua, tentando compreender aquela sucessão de eventos. Teria eu sonhado com aquela criança? Seria alguma aparição fantasmagórica que apenas eu tivera a honra de presenciar? Conjeturei em vão. Meus pensamentos foram interrompidos pela constatação que já estava tarde e T… achava que eu tinha seguido para casa. Corri desembestado pelas ruas até chegar com os pulmões em brasa à morada de T…, que me aguardava na sala, de braços cruzados, como um professor prestes a admoestar (ainda que brandamente) um aluno faltoso.
“Onde esteve?”, perguntou-me de maneira seca.
Não era capaz de mentir a ele – mas, fazendo um ar de mistério, respondi:
“Da mesma forma que fez no baile, saí à procura do amor.”
O semblante desanuviou-se-lhe; eu não sabia mentir-lhe, e ele não sabia zangar-se comigo.
“Amanhã me contará a respeito?”
“Decerto.”
“Vamos dormir, então… Acho que ambos tivemos nossas peripécias por hoje…”
Despedimo-nos, e fui para a cama. Pela manhã, recordei-me de ter sonhado com aqueles olhos – os enormes olhos expressivos e tristes de Nelly.
[Continua no Cap. X]