Capítulo 10 de A Educação Sentimental de Xavier Renart
Viagem à Ouro Preto, ou Conhece-te a ti mesmo.
Passada a saída de Belo Horizonte, tão cheia de minério de ferro, e a descida da serra com terrenos de pedras e samambaias. Abaixo da serra, ipês já floriam e a moitas de bambu na beira da estrada estavam cheias das flores amarelas do cipó São João. A manhã fria e de uma garoa ainda mais fria ainda em BH, indicava que o clima, que cobria todo estado de Minas Gerais, provavelmente estaria frio, fechado e úmido em Ouro Preto, pontencializando o ar melancólico da cidade. Em cada rua uma sentença, em cada pedra o sofrimento de um escravo. Não haveria luar naquela noite. Só os sinos das igrejas chamando, em lúgubres responsos, pobre Alphonsus, pobre Alphonsus. Munidos de um guia moderno, de informações baixadas na Internet, do Passeio a Ouro Preto de Lúcia Machado de Almeida, e do Roteiro Lírico de Ouro Preto de Afonso Arinos de Melo Franco, os dois últimos emprestados por Tomás à Karine, os quatro estagiários da Maine Coon seguiam de carro observando a paisagem através da neblina da manhã daquele sábado de fins de maio. O Outono é mais uma estação da alma do que do ano, diria Drummond. Realmente. A paisagem os remetia à sensações e memórias ligadas à infância, das viagens com os pais, de um momento na vida onde não existiam tantos problemas ou questões que não se resolvessem ou perdessem o sentido antes de terminar o dia. A ouro preto da infância, no passeio com os pais, A ouro preto da adolescência, do carnaval, da festa do 12, dos festivais de inverno. A Ouro Preto dos distritos, das viagens românticas em casais, onde o sexo era intermediado pelos passeios culturais e pelo bucolismo, Ouro Preto dos orgasmos abundantes, e do amor. Todos aqueles Ouro Pretos estavam sempre presentes a cada nova visita. E dessa vez não era diferente. No carro os quatro iam se lembrando, com a atmosfera que ia se formando com a neblina, o frio, o tempo fechado que remetia à introspecção.
O roteiro a após a chegada à cidade já estava elaborado. Na manhã e tarde do sábado, as visitas às empresas de venda e mineração de pedras preciosas e ouro. À noite, cortesia de Tomás, da Maine Coon, e da Allons, um jantar no primeiro, e mais estiloso, restaurante da badalada rede de restaurantes Libertas, uma das empresas encubadas pela Allons, do curso de Hotelaria e Culinária. Para entrar no clima da cidade, disse Tomas. No dia seguinte, visita aos museus e lojas da cidade, depois volta para Belo Horizonte e elaboração do relatório da viagem já com um modelo das canetas a serem desenvolvidas.
Karine seguia pensando nos personagens do livro de Afonso Arinos. Gostara em especial do Poeta, ou o bom samaritano, alcunha auto-atribuída pelo personagem em um episódio do livro. A biblioteca de Tomas fora aberta para ela pela primeira vez antes da viagem. O professor e chefe a cultivava desde a adolescência, e, apesar de não apresentar volumes antigos ou raros, parecia, pela fala de Tomas, ser fruto de um processo muito lento e sistemático de garimpagem, de intencionalidade de estudo, de uma busca de refinamento de si e da compreensão do mundo totalmente diferentes da forma como o professor aparentava apreciar nas suas aulas – Procurem principalmente artigos na Internet para fazer os trabalhos. De revistas que estejam indexadas, ou que sejam de referência no tema de discussão – Ali, na biblioteca de Tomas, Karine percebia que isso era só o básico, só a introdução, só o mínimo. Existia toda uma cultura, toda uma qualificação como profissional e intelectual que ultrapassava em muito a vida especificamente universitária, com suas demandas específicas e objetivas. Ela, bem como os colegas, obviamente, já possuíam leituras que ultrapassavam os artigos, e mesmo a compreensão dos livros teóricos que eram indicados. Mesmo os livros de estética, de arte ou de design que liam de curiosidade e diletantismo, e para maior erudição ainda não indicavam a experiência que ela pode captar ali naquele momento. Ela percebeu que existia toda uma comunidade de pessoas, que simplesmente relatavam uma vivência cotidiana da experiência estética que possuía uma significação muito mais profunda que a dos textos acadêmicos. E essa era a realmente a Cultura, com uma pregnancia e uma aura de autenticidade que os textos técnicos não possuem e nunca poderão possuir. Uma cultura também simples, palavra de uso cotidiano, que se referia muito mais a uma experiência do que a um conhecimento. Pensava no passeio de Afonso Arinos com o Poeta e o Filósofo. Aquilo era Cultura. Ir ver o já tão conhecido, o já tão entranhado, o já tão presente em si, que era como um conhece-te a ti mesmo disposto em geografias já experimentadas, como o cheiro das madeleines que trazem de volta algo que já está em nós, mas que precisamos procurar ainda mais, algo perdido, mas só porque ainda presente. Cultura.
Karine viajava nos pensamentos das leituras dos dias anteriores. Lembrou-se de Renart. A conversa com ele fora simples, objetiva, sem necessidades de explicações ou de escolha de palavras. A idéia da ida deles naquele momento tinha sido somente de Tomás. Renart e Dorotheia sabiam da necessidade da viagem, mas não estavam tratando do assunto. Tomás decidira pela viagem naquele momento para evitar que, com a vinda do fim de semestre, a cidade de enchesse das festas e eventos, que a descaracterizariam, com pessoas e temas que não eram do cotidiano de ouro preto. Época de provas, ou pior, de estudo para as provas. É poça sem festas, só da Ouro Preto fria, úmida, e das noites sem luar. Não fora preciso abordar o encontro entre eles. Explicara que estava vindo e da conversa com Tomás, e propusera de se encontrarem quando voltarem. Sem datas, sem compromissos ou outras palavras desnecessárias. Conversara mais sobre a viagem em si. A conversa fora rápida, pois iria encontrar com Karine, Theo e Fernanda logo depois. Mas fora uma conversa leve, tranqüila, sem dramas. Estava indo para Ouro Preto. As coisas em Belo Horizonte poderiam esperar.
Carol dirigia, e apesar de das recordações também se apresentarem a cada curva, cada árvore e casa pelas quais passavam, não estava tão absorvida em pensamentos como Karine. Prestava atenção na estrada. Theo, destruído pela noite anterior de bebedeira e farra, se lembrava mais dos porres e das ressacas que tivera, e de todas as vezes que se propusera a não beber tanto mais, até o dia que desistira de evitar a ressaca. Analgésicos, água, e uma manhã de sono até às duas da tarde. Não fora possível nesse dia, então estava um pouco arrependido, e olhava a paisagem mais se preocupando e se localizar para ver se estavam chegando ou não. Fernanda por sua vez, estava apreensiva.
Apesar de já estar um pouco mais integrada ao grupo, e de não sentir que iria ser devorada por Carol ou Karine a qualquer momento ou gesto julgado inoportuno, ainda não se sentia como um deles. E agora iria ficar imersa nas atividades do grupo durante o fim de semana. Já estava bem claro para ela, que apesar de terem reservado dois quartos, um para ela e karine, e outro para Theo e Carol, Karine não dormiria no quarto com ela. No entanto ela os acompanharia durante o dia inteiro, em atividades culturais e profissionais, e de noite, na ida ao restaurante, ou na ida a algum outro programa depois. Não conhecia Ouro Preto tão bem como os outros. Não tinha tido namorados sérios o suficiente para viagens às pousadas românticas da cidade ou de seus distritos. Não passara o carnaval nem a festa do doze na cidade, indo somente com a família em viagens na infância ou nos festivais de inverno, geralmente com a mãe, que ia mais com intenções profissionais. Conhecia Ouro Preto mais das viagens de colégio do que de qualquer outra forma. Mas procurara se informar sobre a cidade e sobre a sua história, principalmemente sua história estética. Da ida a casa de Tomas com Karine pegara o Chico Rei, de Agripa Vasconcelos, e o livro sobre Aleijadinho de Rodrigo José Ferreira Bretas. A leitura a fizera se sentir insegura. Tanta informação ainda a ser buscada. Sentira que não entendera o que deveria entender, nem sabia ao certo o que esperavam dela. O frio daquela manhã a lembrava do frio que Galanga sentira no alto das serras quando se perdera. Essa referência à leitura dos dias anteriores a remetera de novo à sua insegurança. Era uma aluna do primeiro período, junto com alunos mais avançados, e que eram destaques no curso. Além disso, se sentia uma puritana no meio do trio que ela, assim como todos, sabia ter uma relação sexual intensa, tanto entre si como com outras pessoas. Ela sentia como se não tivesse deixado ainda de ser a acompanhante da mãe. Sempre uma criança entre adultos. Se aconchegava no casaco de moletom felpudo tomando cuidado para não se esparramar no banco de trás e se apoiar em Karine, que parecia totalmente alheia a tudo olhando para a paisagem da estrada.
A cidade começa a se insinuar aos poucos, Amarantina, Cachoeira do Campo, depois casas espaçadas que iam começando a ficar mais freqüentes pela rodovia dos inconfidentes. O trevo, e a cidade de repente já te engolia, com a arquitetura inicialmente atemporal, nem antiga, nem nova, nem nada, arquitetura Ouro Preto não turística. Ruas estreitas, morros crescentes dando a cidade sua característica tão típica de tridimensionalidade, e então estavam totalmente imersos na Ouro Preto Histórica. Se encaminharam direto para a pousada para deixar as coisas. Carol achou fácil a pousada, no na área central da cidade, na Rua Costa Sena, próxima ao Museu do Oratório. Embora não fosse uma empresa incubada pela Allons, guardava uma história também com a Universidade. Era provavelmente a principal cliente da Pousada Sete Damas. A pequena pousada, localizada em um sobrado de dois andares, com seus restritos seis quartos, era o destino certo de todos os visitantes estrangeiros que vinham à Allons, e estendiam a viagem ao Brasil, também à Ouro Preto. A pousada era de fachada simples, com paredes azuis claras e os detalhes de suas colunas em azul escuro, com portas e janelas em tons de areia. Dois pequenos candelabros de bronze dourados presos na parede da frente iluminavam a fachada durante a noite. Somente uma pequena placa em cobre dourado na parede ao lado da porta de entrada a identificava a pousada como tal. Isso e a porta geralmente aberta. As janelas de cima eram rente à parede, sem sacadas.
A rua estreita já estava se enchendo com os carros estacionados. Pararam um pouco antes da pousada e foram levando as malas até a entrada do Hotel. A entrada combinava com a fachada simples e limpa. O chão de tábuas largas de madeira de aroeira escura era coberto por poucos móveis da mesma madeira, ou sofás em couro marrom quase pretos. As paredes brancas continham quadros de Rugendas, Ender e Pallière. Os quadros arejavam ainda mais o local já arejado, apesar da atmosfera barroca se entranhar nas percepções como sombras que se movimentam quando não observamos diretamente. Atrás de um balcão também de braúnas, com as colunas da madeira ressaltadas, uma simpática senhora de uns cinquenta anos com cabelos loiros e óculos rosa recebeu-os.
- Olá. Já tem reservas?
- Temos sim – Karine falou pelo grupo – Deve estar em nome da Allons.
- Ah tá! O Tomás falou que vocês iam vir. – Karine passou os nomes e eles preencheram as fichas. A senhora entregou as chaves dos dois quartos do andar de cima. Os quartos seguiam o mesmo tema da decoração da entrada. Piso em Braúnas escuras, poucos móveis na mesma madeira. A cama chamava atenção por suas configurações robustas. Nela se percebia melhor que os móveis eram modernos, feitos com madeira de demolição. A principal dica eram os colchões tamanho super king, provavelmente inexistentes na Ouro Preto antiga. Fora isso, todo o resto era harmônico, ao mesmo tempo com a cidade antiga, e com a vida moderna. No primeiro quarto reproduções da Danae e outra de Leda, ambas de Corrégio, e no segundo quarto O martírio de São Sebastião, O Rapto de Dejanira, e José e a esposa de Putifar, ambos de Guido Reni. No resto, muito semelhantes. Pequenos criados sem gavetas dos dois lados da cama, um sofá com o mesmo couro do sofá da entrada. Predominava o preto dos móveis, o branco das paredes, e os quadros, que davam alguma cor ao ambiente. No mais, as janelas que davam para a noite de ouro preto. Quartos sem televisão, mas com ar condicionado, que também esquentava. O banheiro era também simples, sem banheira, pisos e bordas em mármore branco com manchas lilases. Parecia ser também um mármore antigo, pelas manchas. As pias eram do mesmo mármore, com cubas e torneiras em um latão de um discreto dourado. O resto em porcelanato branco e vidros âmbar.
Reconhecidos os quartos e deixadas as malas, seguiram para o café da manhã no hotel mesmo. Havia sido combinado já de antemão e o café extra na diária era uma cortesia sempre oferecida aos hóspedes da Allons. Depois ir trabalhar. Theo preferiu ficar um pouco no quarto para curar a ressaca. Não conseguiria comer nada mesmo. Depois comeria uma barrinha de cereais e um suco enquanto iriam às mineradoras.
As três desceram para o salão na parte de traz da casa. Era um pequeno salão com uma mesa grande, com bancos longos sem encosto onde cabiam umas dez pessoas, e mais quatro mesas pequenas com quatro cadeiras. O salão, apesar dos móveis rústicos na mesma braúna, e do espaldar alto das cadeiras acolchoadas com o mesmo couro marrom quase preto dos outros móveis, era muito diferente dos anteriores. Apesar do clima sério, todos os ambientes da pousada possuíam uma certa leveza por causa das paredes brancas e dos quadros com cores esmaecidas, mas vívidas das paisagens e cenas. Além da sensação de limpeza e arejamento, tão discrepantes da maior parte da arquitetura e dos interiores na cidade. Porém no salão de refeições não havia arejamento, havia mais propriamente uma integração com a área externa. Era quase como se tomassem café em um jardim. O salão de pé direito alto, com o teto da madeira aparente do assoalho de cima, era todo aberto em sua lateral para a área ao lado, um jardim, não muito grande, mas que ampliava o ambiente até alto muro de pedras que sumia acima na copa dos ipês amarelos floridos no extremo oposto do jardim, e de um lado, a parte da frente da casa, e do outro, a vista para a parte mais baixa da cidade e para os morros cobertos de pedras e vegetação rasteira. Uma parreira subia pelos galhos dos ipês e já indicava cachos de uvas brancas. Dois bem podados pés de acerola, um de figo, e outro de romãs, completavam as árvores frutíferas do jardim. Um pequeno arbusto de jasmim estava plantado no patamar do jardim, onde dava a vista para o resto da cidade. Foram ver a vista de perto. Perceberam que o terreno da pousada ainda se alongava por mais dois terraços construídos encosta abaixo do morro, onde ainda havia uma horta e no terraço de baixo, dois limoeiros, um de limões sicilianos e outro de limões cravos, um pé de lima da pérsia, e outro de cidra. E encostado no muro de pedra que limitava o terraço de baixo, dois mamoeiros entremeados com uma planta não identificada de folhas verdes escuros e flores brancas, com miolo vermelho e amarelo que parecia aderir à alguma treliça fincada no muro e subia até o arbusto de jasmim.
- São Ora-pró-nobis – Disse a mesma senhora de antes já adivinhando a dúvida pela cara com que as três olhavam para a planta.
- Muito lindo aqui.- Carol disse à mulher - Eu nunca soube dessa pousada antes. E olha que já vim muito aqui em Ouro Preto, e amigos também sempre vinham. A quanto tempo vocês estão funcionando?
- Já tem uns cinco anos. – Disse a mulher sorrindo. Ela sabia muito bem porque Carol e seus amigos não conheciam a pousada. A pousada geralmente estava cheia de público corporativo. Na sua maior parte estrangeiros de passagem, como o pessoal que vinha para a Allons. Grupos de adolescentes, ou casais a procura de um ambiente romântico geralmente nem tomavam conhecimento da pousada, principalmente por sua fachada simples, e por sua pouca identificação e divulgação para o público em geral. – Ah gente, desculpa, eu nem me apresentei. Quando você chegaram imaginei que quisessem ir para o quarto logo. Meu nome é Clarissa. Vou estar aqui até às nove da noite. Qualquer coisa que vocês precisarem é só falar. Aliás, vocês vão tomar o café agora?
Pelas roupas de qualidade, a segurança e a dedicação simples e natural que Clarissa tinha na tentativa de deixá-las à vontade, as três perceberam que ela provavelmente seria uma das proprietárias da pousada. – Vamos sim – Carol continuava. – Vamos lá gente?
As quatro se encaminharam para uma das mesas pequenas. A mesa grande estava com um grupo de cinco pessoas, que pelas calças caqui, as blusas brancas, e o pele clara avermelhada pelo sol só podia ser estrangeiros passeando já a algum tempo pelo Brasil. Ouro Preto seria mais uma das etapas da viagem. Outra mesa estava ocupada por duas senhoras com roupas coloridas e sorridentes, que conversavam alegremente enquanto comiam. Um aparador no mesmo estilo e madeira dos outros móveis, coberto com uma longa toalha branca de linho com bordados em estilo Richelieu também brancos e pratas com motivos florais cobria a mesa. Estavam dispostos jarras de cristais grossos, com águas aromatizadas com hortelãs, com canela, ou com um conjunto de frutas contendo kiwis, limões sicilianos e estrelas de carambolas. Jarras semelhantes também continham sucos de laranja e de tamarindo. Todos com frutas frescas, segundo Clarissa. No aparador ainda havia uma máquina de café expresso, onde a própria pessoa preparava seu café de acordo com sua preferência. Um conjunto de biscoitos e roscas, de nata, de cerveja, de fécula de batata, com raspas de limão, de laranja, com nozes e mel, com gengibre, e vários outros. Todos em pequenas porções dispostas em pequenas bombonieres de cristal grossos, no mesmo estilo liso e simples das jarras. Um rechaud com aros e tampa de prata com um mingau quente de aveia que emanava um cheiro irresistível e uma gamela de madeira clara com frutas variadas. completavam o aparador.
- Os queijos, os pães e as geléias estão do outro lado, naquele outro aparador menor – Clarissa indicava um outro aparador semelhante, mas com mais equipamentos onde as comidas não ficavam tão a mostra. – Fazemos também alguns lanches na hora. Estão aqui nesse cardápio. O Antônio vai estar servindo vocês aqui. – Clarissa indicou um jovem mulato magro, com nariz fino e olhos puxados com aparência animada e um sorriso claro de dentes bem conservados. Antônio entregou o cardápio enquanto Clarissa se afastava em direção à recepção da pousada.
Carol foi direto para o suco de laranja. Depois pediu duas torradas com o requeijão da casa coberta com manjericão e yogurt natural batido com mel e pedaços de morango para Antônio. Karine encheu uma pequena vasilha de porcelana branca com mingau de aveia e pegou uma pequena colher também do mesmo material, e um copo de água aromatizada com canela. Fernanda, não sabia direito o que escolher. E como sempre fazia nos buffets de hotéis, procurou comer tudo que podia e não podia. Pediu um croque monsieur para Antônio, que pretendia comer enquanto tomava um suco de laranja, e para esperar pegou um pouco do suco de tamarindo, um copo de água com hortelã, e uns seis diferentes tipos de biscoitos. No aparador fechado de pães pegou também três pequenos pães de queijo assados com bacon e queijo provolone. Karine e Carol olharam para ela, que não se sentindo ameaçada pela primeira vez entre elas, respondeu.
- Gente, isso aqui ta com uma cara muito boa. Eu to morrendo de fome, não comi nada antes de vir pra cá.
- As duas riram. Depois seriam vencidas pela qualidade dos pratos e comeriam mais também. Principalmente os biscoitos de nata com nozes e mel, e os biscoitos de fécula de batata. As torradas com o requeijão da casa também foram provadas por Karine, assim como o suco de tamarindo, que todas experimentaram. Naquela manhã fria e úmida, que pedia comidas quentes, elas se empanturravam e deixavam de lado o clima introspectivo e melancólico que a cidade ao redor lhes sugeria. Ainda provariam as águas enquanto Theo, retardatário ressaqueado, engolia com má vontade o croque monsieur recomendado por Fernanda, e tomava uma xícara cheia do perfumado café. Depois arriscou os biscoitos de gengibre e canela, e dos de nozes com mel. Um suco de laranja e um copo grande de água com hortelã. E estava pronto, a ressaca diminuíra a níveis tranqüilamente suportáveis. Saíram então um pouco atrasados para a mineração de topázio imperial, no distrito de Rodrigo Silva.
Na estrada já estavam todos despertos e mais focados nos objetivos propostos pela Maine Coon. A mineração era uma visão nova da cidade. Sempre tinham tido contato somente com os setores da indústria do turismo, nunca com a economia de base da cidade. Os topázios imperiais, antes de lapidados não pareciam tão grande coisa. Fernanda era a única que já tinha algum contato com pedras preciosas nessa situação. Conheceram duas mineradoras e já dava para perceber que os preços e qualidade não diferenciavam muito. Procuraram contatos de mineradoras de outras pedras da região também e de minas de ouro e dos principais ourives. Já tinham esse contato prévio, mas haviam sido instruídos a atualizarem os dados levantados anteriormente. Antes de irem almoçar procuraram também alguns dos garimpeiros que resistiam à falta de estrutura e à pouca sorte no encontrar ouro e pedras preciosas. Havia alguns ainda, mas não sabiam informar muita coisa, além de realizarem sua atividade de maneira extremamente irregular e predatória. Não compensava mexer com eles. Retornaram para Ouro Preto para almoçar e ir visitar os ourives da região.
Eram já duas horas e meia da tarde quando chegaram na cidade. Apesar do café da manhã tardio e reforçado, a estrada de terra cheia de irregularidades, e as caminhadas pelas minas e nas beiras dos rios atrás dos garimpeiros haviam aberto a apetite deles novamente. Dentro do planejamento prévio, seguiram a indicação do livro guia mais moderno que levavam e foram almoçar no restaurante que funcionava na casa onde nascera o poeta Alphonsus de Guimaraens. A idéia era se familiarizar com o que se definira na mente do Belo Horizontino como sendo o típico ambiente tradicional mineiro, e da estética da comida mineira. E era realmente o típico ambiente criado para servir aos esteriótipos. Paredes com cores contrastantes com os batentes das janelas, muitos retratos, imagens sacras, bules e outros instrumentos utilitários que remetiam a uma época pré-eletricidade dispostos nas paredes e balcões de madeira grossa. Os pratos típicos, como os tutus, as carnes de porco, os frangos com quiabo, as couves picadinhas, as laranjas, bananas, lingüiças, moelas, e tudo que sempre foi visto como típico estava disposto em grandes gamelas de mandeira, panelas de pedra, de barro ou de ferro esmaltado, fora os doces, de leite, de frutas, de abóbora, e outros, sempre escoltados por guarnições de queijo canastra. Tudo disposto e quente, pronto para ser servido ao gosto do freguês, na quantidade e combinação desejada. Fora o café no bule com rapadura para adoçar. Ficaram por ali mesmo.O ambiente era agradável e a comida era tudo que esperavam e desejavam de uma comida mineira na hora da fome. Cada um seguiu sua combinação. Dos quatro, somente Karina não era de Belo Horizonte, e questionou um pouco a mineiriadde daquele modelo estético de gastronomia. A conversa do almoço girou em torno do tema, e da identificação desse modelo de gastronomia com o da casa grande, principalmente das regiões produtoras de comida, ou das regiões de diamantina e adjacências. Não deveriam ser o modelo de alimentação na região de Ouro Preto na époco, e principalmente, não eram uma estética da comida mineira atual. Nem mesmo se referiam à tradição do estado. Embora Theo e Fernanda, belo horizontinos mais típicos estivessem contra essa hipótese, Carol também concordava com Karine, principalmente devido ao período que morara em São Paulo, e freqüentava os restaurantes mais badalados de comida mineira de lá. Comida mais leve, em pratos prontos, sem gordura de porco, e no entanto, sem deixar de ser extremamente saborosa e remeter, talvez mais que o modelo consagrado com o qual se deparavam no momento, às experiências de comer em restaurantes genuínos das roças e cidades do interior de Minas. Não que achassem ruim a comida ou a estética que a rodeava naquela proposta na qual estavam, pelo contrário, mas só questionavam um modelo estético, construído como o representante de uma tradição que sempre foi e sempre será múltipla e rica o suficiente para não caber em estereótipos. Tal concepção estética serviria muito mais, a sistemas de manutenção de grupos já tradicionalmente ligados ao poder e que se valiam dessas estéticas como subterfúgio para se identificarem como representantes da continuidade de uma tradição de liberdade, justiça, e beleza das terras altas de Minas Gerais. Grande mentira contada pela mídia e pelos definidores dos programas oficiais e dos mecenas de grupos culturais. Mentiras contadas por pseudo representantes de famílias pseudo tradicionais cheias de orgulho de terem prosperado com especulação imobiliária em Belo Horizonte, ou com a obtenção de cargos e comissões por serem os primeiros a apresentarem qualificação técnica na nova capital, e que agora construíam estéticas de auto-afirmação, de afirmação de suas raízes, fossem suas raízes ou não, como a definição de mineiridade, como a definição de uma estética mineira. Era como Tiradentes, cidadezinha do interior de Minas Gerais para inglês ver, ou melhor, para servir de cenário para programas de televisão. Frangô avec Quiabô. Minas era muito mais que aquilo. E Ouro Preto, a velha capital, que escapara da transformação em cenário, que escapara da transformação em cidade da festa (embora alguns estudantes obtusos só a tenham percebido dessa forma), cidade inconfidente e de onde brotam sedições estava ali para questionar tudo isso. Mesmo no restaurante com adesão estética à esse modelo, a cidade ainda inspirava o contraponto e a antítese. A cidade abandonada pelo poder, e pelos poderosos, destilava seu rancor, mesmo quando depois paramentada como grande senhora, como dona do Salão de Banquete, discussões culturais e literárias e entrega de medalhas. O ouro retirado, restava-lhe a pedra sabão, tramando tombos e escorregões aos empobrecedores o discurso crítico e ontem, hoje, sempre, e para além de qualquer tradição, livres.
O almoço fora cheio de discussões acaloradas e pratos gordurosos. Terminada a refeição, o café foi necessário para manter o ânimo, e em seguida a visita aos principais joalheiros e ourives da cidade. Os joalheiros, de maneira geral não apresentavam nada de novo. Alguns artigos que eram o mais do mesmo de outra joalherias, e outras produções de mal gosto, feitas para estrangeiros ávidos de um exotismo caricato, facilmente percebido como exotismo, uma pseudo brasilidade, pseudo mineridade, pseudo barroco, frangô avec quiabô, o CD produzido pelo governo de Minas pretenso representante da tradição, de pretensas famílias ilustres, que comemorando os quatrocentos anos de Minas (pretensa quatrocentona) não cita nos seus créditos a banda da cidade de Tomaz, na época a melhor do estado, e que toca no CD. Mas os medalhões da música mineira estavam todos lá, todos citados, recitados e badalados. Todos que já não eram mais jovens, ostentando sua pretensa juventude, e numa total falta de respeito e de vínculo com a Minas real, pela boca de seu representante mais famoso e internacional, solta a pérola “Tocamos com uma bandinha do interior de Minas”. Bandinha do interior de Minas é sua mãe, Sr Frangô Avec Quiabô, a banda tem nome, tem história, e é maior que a sua. Formou e forma centenas, ou milhares de músicos, há mais de 60 anos. Músicos que tocam para mineiro ouvir, e muitas vezes música de graça, manifestação cultural, expressão de si para o outro, Cultura, não a pretensa música mineira, travestimento da mercadoria exótica, facilmente percebida como exótica, ou pretensamente barroca, pretensamente mineira. Nem por isso feia, ou ruim, muito pelo contrário, como a comida gordurosa do restaurante. Mas não era isso que procuravam.
A luz veio como um obscurecimento. Obscurecimento do brilho amarelo do ouro, metamorfoseado em ouro preto. O atelier de Achiles Apolinaire, um idoso senhor francês radicado no Brasil a mais de sessenta anos, e em Ouro Preto a mais de quarenta era o oposto do resto da cidade. A bruma que retornava à cidade quando a tarde começava a ceder, e era mais forte na encosta arborizada que envolvia o atelier e a casa do Achiles, mostrava a Ouro Preto alternativa que podia ter crescido em harmonia com a abertura e a felicidade, sem o peso e a culpa, sem o mofo e a traciturnidade. A casa era clara, arejada, leve, e a bruma tão lúgubre no centro da cidade, trazia alí uma atmosfera de sonho. Era como se ao invés de Alphonsus Guimaraens, a cidade fosse berço de Cruz e Sousa, Ó Formas alvas, brancas. Formas claras / De luares, de neves, de neblinas! / Ó Formas vagas, tinidas, cristalinas / Incensos dos turíbulos das aras.
Achiles Apolinaire ganhara uma certa fama pelos seus azulejos, mas sua arte inquieta não reconhecia especialidades. A certa altura se apaixonara com relógios de carrilhão, e neles, elaborando os mostradores dos relógios começara a trabalhar com o ouro. Na verdade trabalhava com todas as partes do relógio, com exceção de seu mecanismo. Via o aparelho como um instrumento musical, arte pela qual se aventurara também. Queria inserir nos mostradores dos relógios a mesma lógica da marchetaria das madeiras e das incrustações de madrepérolas nas violas. Já vira trabalhos nesse sentido com o ouro, mas a cidade lhe inspirara algo mais original. Usara o óxido de ferro, que era encontrado no ouro da cidade, e que lhe trazia a cor enegrecida, causa do nome Ouro Preto, para produzir manchas aos estilos das rosetas das onças pintadas e causando o efeito do couro dos felinos no ouro dos mostradores. Da mesma forma experimentara o uso de outros materiais, para trazer o branco, o vermelho e o rosa, e as outras cores menos comuns para o ouro, mas em nuances indefinidas como um céu de fim de tarde. Era uma das coisas mais bonitas que eles já haviam visto. No dia seguinte, nas igrejas onde o ouro se mostrava como um peso, como uma culpa, as cores e levezas dos trabalhos de Achiles Apolinaire os lavariam com a brisa das coisas novas. Bem mais tarde, Karine relatando sobre esse momento se referia ao poema O Corvo, de Poe, onde, já que o Nunca Mais era sempre a resposta, caberia mudar então a pergunta para um algúrio que melhor lhe valesse, como Dionísio frente ao coro das rãs. Mas naquele momento, no atelier cercado de verde, de brumas, e do frescor do fim da tarde de uma outra Ouro Preto, começavam a vislumbrar uma expressão para a questão que os trouxera ali. Ficaram conversando e absorvendo as histórias com o velho artista até o fim da tarde, e depois foram direto para a pousada descansar. A noite traria novas questões a serem trabalhadas, novos medos a serem superados, novos brekekekex, coax, coax.