Capítulo 9 de A educação sentimental de Luiz Xavier Renart
Um amor que não ousa dizer o nome
Renart caminhava pelo corredor longo e silencioso que levava do elevador para a porta de seu apartamento. Às vezes tinha a impressão de que aquele corredor era como uma espécie de limbo, como um caminho suspenso entre os espaço e tempo no qual ele vivia e um outro espaço e tempo diferente, e a qualquer momento, poderia abrir uma porta e ir parar em um local totalmente impensado ou imprevisto. Ao abrir a porta do apartamento seus devaneios se desfizeram frente à sala tantas vezes vista, pela qual ele entrava para o refúgio de sua intimidade. Ou seria os espaços não íntimos que serviam de refúgio para ele? Os espaços onde havia coisas demais para serem olhadas e que impediam que ele se visse forçado a encarar a sim mesmo, a sentir o próprio cheiro, a sentir o peso do corpo contra o sofá e o colchão macios demais. O fato era que estava cansado. Mais um dia havia sido vencido, e ele estava cansado demais para fugir. Era mais fácil se entregar e ficar à mercê de seus fantasmas, até que o sono libertador viesse salvá-lo e mergulhá-lo em uma espuma morna na qual ele sentia se dissolver aos poucos até o não se sentir mais. Antes disso, porém, algumas coisas ainda necessitavam serem resolvidas.
Retirou um pão congelado cortado em duas partes e uma vasilha plástica do congelador contendo presunto cru cortado em lâminas finas, e outra da geladeira com uma salada de folhas diversas e um pedaço de queijo parmesão e colocou os ingredientes em cima da bancada de granito da pia da cozinha. Retirou de um pequeno armário acima da pia um vidro de azeite de oliva. Deixou os ingredientes lá e foi ligar o laptop. Aguardou um pouco até a tela de abrir e carregar a rede e clicou na sua página de e-mail.
Deixou a página carregando e voltou para preparar o jantar. Sentia o corpo cansado e queria deitar e dormir. Antes, comeria um pedaço de pizza, ou pediria um cheeseburger e um refrigerante, mas a disciplina na alimentação desenvolvida através dos anos desde que sentira que começara a envelhecer falavam mais alto que o cansaço. A conquista de um poder aquisitivo mais alto e a aquisição de equipamentos também. Colocou a ciabata aberta em duas dentro de um pequeno forno elétrico e ligou as trempes de cima e de baixo. Separou com paciência algumas lâminas de presunto do resto do grupo congelado, e colocou em cima do prato que usaria depois. Aproveitou o tempo livre para colocar um grande jogo americano de pano branco com bordados coloridos em formato de flores e rendas brancas, e os talheres em cima da mesa. Pegou uma garrafa com água na geladeira e encheu um copo grande de vidro colorido. Colocou a garrafa em cima em outro jogo americano do mesmo tipo ao lado do anterior e foi tomando um pouco da água, e depois deixou-a no jogo americano junto com os talheres. Retirou o pão tostado, colocou em cima do prato, regou com um pouco de azeite e colocou as folhas da salada e o presunto que estava em cima do prato e regou com azeite novamente. Ralou um pouco de queijo parmesão em cima e recolocou as vasilhas dentro da geladeira e do congelador. Pegou um pequeno potinho plástico na geladeira e retirou umas folhinhas de manjericão a adicionou ao sanduíche. Colocou o prato acima do jogo americano, puxou laptop para frente do prato e começou a comer e olhar os e-mails.
Nada de novo. Já havia olhado o e-mail antes de sair da Faculdade, umas duas horas antes, e ninguém aproveitara o período de chegar em casa da faculdade para lhe mandar nenhum e-mail. Olhou no relógio do computador - 23:34 – se alguém estivesse só esperando sair e chegar em casa para lhe mandar algo já teria dado tempo. E mesmo se mandasse mais tarde, ele não teria a obrigação de ver ainda naquela noite. Abriu outra aba mantendo a do e-mail aberta por desencargo de consciência e foi olhar as notícias do dia. Enquanto lia sem grande interesse, sentia o gosto do sanduíche que preparara, entrecortado por goles de água, que limpavam seu paladar para realçar o sabor da próxima mordida. As texturas gordurosas do queijo e do presunto cru se mesclavam com os tostados do pão e as fibras amargas das folhas. Sentia-se feliz com a comida. Terminou o sanduíche e foi buscar na geladeira dois figos maduros cozidos em redução de vinho do porto que trouxe para a mesa em uma pequena vasilha de cristal para sorvetes com uma colherinha de café. Adorava o figo preparado dessa forma. Lembrava-se dos figos verdes em calda preparados em sua casa na infância. Detestava aquilo. Quando descobriu o quanto os figos podiam ser deliciosos, detestou ainda mais aquele cheiro e aquele gosto sem nome e enjoativo que lhe ofereciam quando criança. Hesitou, mas colocou um pequeno pedaço de queijo gorgonzola que estava na geladeira dentro da vasilha de cristal e se sentou para comer em frente ao laptop. Percebeu que o Chat do e-mail tinha sido ativado.
- Oi Renart, vc ta ai ainda?
- Oi Karine. Tudo jóia? – Não tinha encontrado com Karine a sós desde que eles tinham ficado juntos. Só encontros na faculdade cercados por outras pessoas e com compromissos que os levavam para locais diferentes também com outras pessoas juntas. Já se passara mais de uma semana, e ele percebeu como sua vida andava atribulada.
- Tudo, e vc?
- Tudo bem também. E o pessoal ai?
- Bem também.
- A gente nem teve tempo de conversar né Karine, você correndo para um lado e eu para o outro. Como você está? – Já tinha perguntado isso antes, mas agora era dentro de um contexto mais específico, esperava que Karine compreendesse isso.
- Uai Renart, to bem. Queria era poder sentar para conversar uma hora com vc.
- Claro Karine, mas... algum problema?
- Da minha parte não, mas era isso que eu queria saber de vc.
- Uai karine, da minha parte também não. Eu gostei do que aconteceu com a gente, nós dois somos maior de idade também né, rsrsrssrs.
- É, rsrsrsrsrsrsrs.
- Então, mas eu acho que é isso, vamos conversar sim. Quer combinar alguma coisa para sábado? E melhor que a gente se encontre fora da faculdade que lá ninguém deixa nem eu nem você em paz. Ainda mais esses dias que está tendo a pressão para vocês apresentarem o projeto das canetas. E o pior é que eu tenho que cobrar também, rsrsrsrsrs.
- Tá bom Boss. Mas vamos conversar amanhã, que depois de amanhã eu vou viajar com o pessoal daqui de casa. Viagem de serviço, depois te conto. – Renart já era experiente o suficiente para entender que Karine o queria deixar curioso, e motivar uma direção da atenção dele para ela nesse depois eu te conto. Queria mantê-lo pensando nela. Mas isso nem era necessário. Apesar de não ter se apaixonado, Renart pensava no ocorrido durante essas quase duas semanas.
- Pode ser para almoçar.
- Pode, o que você prefere.
- Hummm... Comida mineira. To querendo comer uma costelinha lá do Libertas já tem quase um mês. Pode ser lá?
- Claro... Você quer que te busque ai na sua casa.
- Ah não, vou andando mesmo, depois vou encontrar com o pessoal lá de casa para comprar coisas para a viagem.
- Ta legal, combinado então.
- Ta, tchau chefe.
- Tchau Karine. Boa noite.
“Vou encontrar com o pessoal lá de casa depois”. Renart entendeu a frase através da tradução mais clara como “não vou encontrar com você para te dar depois da gente almoçar dessa vez não”. Embora não estivesse preocupado com Karina, pois sentia que ela tinha bastante clareza quanto a si própria e quanto à sua sexualidade para lhe causar problemas, se preocupava com o fato de ter ficado com uma aluna. Ele já havia feito isso antes. Inclusive no caso da sua ex-esposa. Mas era uma coisa totalmente diferente. Um aluno de mestrado, de vinte e cinco anos, dando aula como professor substituto, ficando com uma aluna de vinte e dois era totalmente diferente de um homem de quarenta e sete, já estruturado como professor e como acadêmico, ficando com uma menina dos mesmos vinte e dois anos. Ele sabia que alguns colegas viviam disso, e suas principais relações amorosas, ou sendo menos hipócrita, sexuais, eram com alunas. Mas sempre tivera uma posição um tanto quanto críticas a isso. Lembrou-se da palestra de Tomaz sobre a pederastia heterosexual, dentro de um contexto educacional. Uma educação estética e moral motivada por uma erótica, mas uma erótica bem mais ampla que a genitalidade. Uma instituição educacional. O que Renart poderia fornecer a Karine nesse sentido? Ela transava costumeiramente com uma parceira e um parceiro ao mesmo tempo, e isso era o que ele sabia. Apesar de ser um intelectual de bom nível, não sentia que poderia ser um guia para apresentar a ela um mundo novo de sensações e conhecimentos, e auxiliar para que ela se moldasse como uma intelectual de alto nível, e em troca receber a vitalidade da juventude, a vitalidade que inflaria seus projetos e sonhos com um sopro quente e intempestivo. Não se sentia um guia. Em alguns casos, embora não ficasse inseguro com isso, julgava que Karine poderia ser inclusive mais experiente a ser ela que tivesse algo para apresentar a ele em termos de novas sensações e experiência.
Sentiu o gosto doce e herbáceo do figo com vinho do porto se misturando com o sabor salgado e gorduroso do gorgonzola. Procurou se concentrar nessa sensação gustativa para fugir dos seus sentimentos. Olhou ao redor para seu apartamento. Era um apartamento de dois quartos. Um para ele e outro para área de trabalho, um banheiro, uma sala relativamente grande, e uma varanda com uma vista aberta, sem ser devassada para outros apartamentos próximos. Tinha conseguido nesse tempo em que estava em Belo horizonte construir um ambiente agradável para si. Os poucos móveis deixavam espaço aberto o suficiente para seus quadros, desenhos e fotografias, que ocupavam as paredes, mas sem tornar o ambiente pesado ou com excesso de informação. A casa era mantida arrumada e cheirosa pela Dora, faxineira na qual já tinha confiança, e que arrumava seu apartamento duas vezes por semana. Geralmente só tomava o café da manhã em casa, e às vezes, quando não tinha tempo de jantar, não jantava na rua, comia em casa também um lanche como aquele durante a noite. O resto do tempo, no trabalho. A roupa era lavada e passada na lavanderia. Seu espaço de intimidade era bem estruturado, mas bastante reduzido, e fácil de ser mantido. Vinha investindo nele. Lençóis de algodão mais macios e com textura mais agradáveis, eletrodomésticos em menor quantidade e maior qualidade, poucas panelas, preferência por comidas cruas. Sua casa era basicamente seu local de descanso, e às vezes, trabalho. Em algumas ocasiões, levava alguma mulher para lá, como no caso de Karine, ou no caso de Dorotheia, mas geralmente, preferia ir para a casa da mulher, ou ir para um motel mesmo, quando já tinha a certeza que era somente um descarregar de tensão com alguém que não valia a pena se dar ao trabalho de conhecer, ou principalmente, de se fazer conhecido. Pensou nisso e lembrou dos poucos casos em que isso aconteceu e se sentiu um pouco mal com o fato. Sentia que não estava sendo ele mesmo, que estava fora do seu caminho quando fazia isso. Terminara de comer os figos. Encheu o copo com o resto da garrafa de água e foi para a pequena varanda, levando o copo e uma cadeira, para se refrescar com a brisa que corria naquela noite quente. Não via estrelas no céu avermelhado pela luz da cidade, mas a vista para as luzes dos prédios e do movimento dos carros já o satisfazia. Lembrou-se das noites estreladas de Goiás, mas procurou interromper as lembranças que viriam a seguir. Tomou o resto da água e foi para o banho. Era outro espaço no qual investia. Sabonetes de luxo, toalhas felpudas, e cremes para a pele. O banho princípio morno foi substituído por uma forte ducha gelada para retirar o sabonete do corpo, e refrescá-lo. Com o corpo relaxado e limpo, o sono chegou dominando seus músculos e sua mente. Deitou-se lembrando da palestra de Tomás sobre a pederastia. Um amor que não ousa dizer o nome, diria Oscar Wilde. Naquele momento, pesava sobre ele muito mais o outro dito desse autor, “Todo homem mata aquilo que amam. Alguns o fazem com um galanteio, outros com a face amargurada. Os covardes o fazem com um beijo, os bravos, com a espada”.