Viagem por São Paulo: Crônica de neves de antanho (Cap. V)
Enquanto caminhava com trôpegos passos de bebê pela estrada da literatura, tive o enorme prazer de poder me corresponder com um dos maiores gênios que anteriores a mim já a haviam trilhado: o poeta e cantor T….
Na falta de amigos, seus álbuns e poemas sempre estiveram lá para acalentar-me, quando duvidava do mérito com que conquistei meus dons poéticos e pensava em retorná-los às Musas, para não envergonhá-las – sem falha, T… expulsava tais pensamentos pessimistas que pululavam em meu coração com brados de “Fortis in arduis!” e “Per aspera ad astra!”.
Minha cidadezinha teve a honra de ser agraciada por uma visita sua certa vez, quando estava em turnê para promover um álbum recente, e deparei-me com meu mestre (como referia-me a ele carinhosamente) enquanto bebericava um vinho no Bar —. Ainda hoje, depois de tantos anos decorridos desde aquele dia, sou acometido de uma violenta emoção ao lembrar-me da sensação tão solene de estar na presença de um ser tão sagrado a mim pela primeiríssima vez.
O mestre T…, que então contava com 50 e poucos anos de idade, trazia nos cabelos aquela cor beirando o negro e o branco que já começava a coroar-lhe a metade de um século de vida, e os bigodes à la Dalí. Seus olhos cintilavam com a joie de vivre de alguém que conseguia enxergar só o que há de bom e belo em todas as coisas, e um sorrisinho perpassava-lhe os lábios enquanto entretinha seus alterosos pensamentos, aguçados pelo vinho.
Aproximei-me dele tremendo, suando frio, quase derrubando a pequena maleta na qual então costumava carregar meus escritos comigo a todo momento, com medo de importunar-lhe e ser rechaçado como o verme que era ante sua presença – mas cumprimentou-me com uma cortesia que até então não havia eu conhecido por alguém superior a mim (seja por mérito ou qualquer outra razão a mim alheia), tratando-me com um afeto de pai a todo momento.
Sentia-me deslumbrado ao ouvi-lo falar, e cada palavra que saía-lhe da boca era-me como um bálsamo, que revigorava-me as esperanças e alimentava-me ainda mais os sonhos de grandeza que entretinha em meu âmago. Mostrei-lhe meus poemas, e li trechos de minha noveleta; não poupou-me de elogios. “Escreva algo a mim algum dia”, disse-me, “e mande-me uma cópia de teu livro quando publicá-lo!”.
Deu-me seu endereço, para que mandasse-lhe cartas (o que, desde então, passei a fazer de forma assídua), complementando que sua casa estaria de portas sempre abertas para quando quisesse visitá-lo, ou lá pernoitar se o acaso assim o permitisse. Tinha eu, portanto, moradia (e uma das melhores, por sinal) pelo tempo que fosse necessário enquanto semeava São Paulo com meus sonhos.
Bati à sua porta e, tendo a ele escrito de antemão sobre minha viagem, fui recebido com a costumeira cortesia que um mestre proporciona a seu aplicado discípulo. T… era um bachelor à época; portanto, passávamos os dias e as noites a sós, declamando poesia, compartilhando sonhos da mocidade e da velhice, rindo e cantando ao som de música, num verdadeiro idílio que jamais vim a ser capaz de reproduzir com qualquer outro companheiro de ofício de renome maior que o meu. A casa de T… era colorida, e repleta de lugares onde incidia a luz natural; e em meio àquele perpétuo jogo de chiaroscuro, brincando em meio ao Sol e à Lua e sempre na presença da Poesia, que se manifestava a mim numa profusão de cores e melodias mil, sentia-me no palácio de Apolo, sendo abençoado e ternamente amado por ele, que constantemente dava a mim e à minha carreira em estado de gestação grandes amostras de generosidade.
[Continua no Cap. VI]