Viagem por São Paulo: Crônica de neves de antanho (Cap. IV)
Até que viesse a conhecer Kishinev tantos anos depois, julguei São Paulo a cidade mais deprimente que algum arquiteto, de mente e coração envoltos na treva da mais lúgubre e espessa umbra, poderia erguer – mas, nas palavras do Apóstolo, “a luz é sadia a olhos sãos, mas faz mal a olhos doentes”; e tão adoecidos quanto estão os meus atualmente, posso descrevê-la com um maior carinho ao relembrar-me dos bons dias que lá passei.
Como em Kishinev, os prédios retos, angulares e sempre da mesma cor cinzenta fizeram com que me lembrasse de lápides, instruindo seus moradores à inevitabilidade da morte desde cedo, e a visão do Tietê, aquele pútrido rio onde os miasmas da humanidade se concentram, seria um presságio de quando sentei-me às negras margens do Bâc para chorar pela mulher que (mal podia eu prever ao pôr os pés em São Paulo) faria de minha estadia na cidade muito mais memorável – tanto na melhor quanto na pior acepção da palavra –, misturando minhas lágrimas àquelas que formaram aquele malfadado rio em tempos imemoriais, de acordo com a lenda.
Os homens e as mulheres, invariavelmente trajados de preto, em pressa perpétua singravam, semelhantes a fantasmas (todos idênticos com seus semblantes sisudos e estatuescos, inexpressivos nos olhos e nas emoções), as calçadas que, tendo Azevedo as descrito com tanta maestria no “Macário” há mais de 200 anos, talvez resolveram deixá-las tão malcuidadas e intransitáveis como eram naquele tempo intencionando pagar tributo à sua œuvre. Recordo-me de ter tropeçado em duas ou três delas, mas pensando na peça logo em seguida, não permiti-me ficar aborrecido por muito tempo, e até ri de mim mesmo. “Ora! Que falta fazem Satã e seu burro para guiarem a este Macário redivivo…”, pensei, divertido.
Ainda carregava os preceitos cristãos e o amor e temor a Deus com os quais catequizaram-me na infância; assim sendo, após passear um bocado resolvi visitar a Catedral da Sé, onde encomendei-me à proteção do Senhor, orei por aqueles a quem amava e refleti sobre as próximas etapas de minha jornada naquele lugar de prédios, pessoas e céu de cor tão gris – a famosa garoa paulistana veio a me fazer imaginar deveras poeticamente que a cidade trazia seu coração cheio e necessitava prantear. Pois que pranteie! Até as coisas possuem suas lágrimas. Sunt lacrimæ rerum!
Comparo São Paulo àquelas pálidas e melancólicas virgens dos romances que tanto amava; encantadora em seu pesar e solene em seu luto. Já sua companheira Kishinev, em contrapartida, traz em si o cancro da mais pura desolação, roendo-lhe as entranhas e destruindo-lhe as esperanças de uma futura convalescença dia após dia, tornando-a apenas uma sombra daquilo que foi outrora; uma casca desprovida das glórias de seu passado. O cadáver horrendamente putrefato de alguma das supracitadas pálidas e melancólicas virgens, talvez.
De acordo com os correspondentes estados de meu ânimo, comiserei-me da primeira e dediquei uma nênia à segunda, deixando respectivamente a cada uma, à guisa de souvenir, a lembrança do que um dia fui e a relação dos pesares que me tornaram o que hoje sou.
[Continua no Cap. V]